André Couto: “Sonhava vencer Macau desde miúdo. Teve um significado especial”

Por a 7 Novembro 2018 15:20

Passaram vinte e cinco anos desde que André Couto deixou o pequeno enclave português de Macau à conquista das pistas na Europa. No “velho continente” celebrou alguns triunfos, mas foi no Oriente que construiu um nome que ainda hoje é sinónimo de rapidez e que está intrinsecamente ligado ao Circuito da Guia. Dentro de semana e meia, vamos vê-lo novamente a correr em Macau, no WTCR, já que é um dos seis wildcard.

Texto Sérgio Fonseca

André Couto é provavelmente o piloto português de velocidade mais subvalorizado, não só da sua geração, mas também da atualidade. O facto de residir no distante Macau, um antigo território ultramarino português localizado no mar da China, e ter feito uma boa parte da sua carreira a milhares de quilómetros da pátria-mãe afastaram-no sempre um pouco do claustrofóbico automobilismo nacional e nem sempre os resultados que obteve no outro lado do mundo tiveram o reconhecimento merecido.

Contudo, a onze mil quilómetros de Lisboa, naquele pedaço de terra na foz do Rio das Pérolas a que os portugueses chamavam carinhosamente a “Pérola do Oriente”, o piloto português que corre com a licença desportiva da Associação Geral Automóvel Macau-China – daí o facto de o vermos a competir com a bandeira da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) – continua a ser um filho da terra, um herói e um desportista de eleição.

Não há semana do Grande Prémio de Macau em que o nome do piloto luso que fez parte da família Toyota no Japão não salte para as capas dos jornais e é por ele que os 500 mil habitantes de Macau torcem no fim-de-semana mais agitado do ano na “Meca” dos jogos de fortuna e azar.

No ano em que celebra vinte e cinco anos desde a sua primeira participação internacional em provas de automobilismo e depois de uma paragem forçada de nove meses, Couto está de volta à competição após o acidente mais grave desde o dia em que, à socapa dos pais, começou a conduzir o kart do amigo André Santos algures em Coloane.

Descida ao Inferno

Naquela tarde de Julho, já lá vai mais de um ano, a humidade estava no pico da época das monções e as condições meteorológicas estavam instáveis na cidade continental chinesa adjacente a Macau. Após a entrada do primeiro safety-car para remover um concorrente imobilizado numa zona perigosa do Circuito Internacional de Zhuhai, no recomeço da primeira corrida do fim-de-semana, com a maioria dos carros do Campeonato da China GT montados em slicks, a chuva resolveu aparecer. Antes do diretor de corrida interromper as hostilidades, Couto teve uma saída de pista numa zona muito pouco propícia a acidentes, tendo o Nissan GT-R Nismo GT3 da equipa chinesa Spirit Z Racing colidido de frente com violência nas barreiras de proteção a mais de 170 km/h.

Após a chegada dos paramédicos, o piloto saiu de um carro que nunca mais voltaria a correr contrariado e pelo próprio pé, apesar de estar visivelmente em dificuldades. Couto foi rapidamente transportado para o hospital mais próximo, onde fez os primeiros testes, para, um dia depois, ser depois transferido de avião para Hong Kong. Couto teve uma fratura por compressão na L1. “O cenário não era bom. Não era muito favorável”, admite hoje o piloto. “Felizmente fui muito bem tratado e acompanhado em todo o processo pelos médicos do St Teresa’s Hospital em Hong Kong.”

O primeiro vencedor português do Grande Prémio de Macau da era moderna e vice-campeão do Super GT na classe principal (GT500) em 2004 reconhece que a recuperação poderia ter sido mais rápida, mas Couto optou por “não ir à faca” e aceitou o penoso desafio proposto pelos médicos.

“Surgiu a possibilidade de não fazer a cirurgia. O médico perguntou-me se eu aguentaria completamente imóvel durante dois meses numa cama de hospital e eu concordei”, explica o piloto que para a temporada de 2017 tinha um acordo para disputar a totalidade das provas Campeonato da China de GT, algumas rondas do campeonato Super GT, com um Porsche, e poderia também participar em mais corridas do Pirelli World Challenge, depois de ter estado em Lime Rock a defender as cores da Bentley Team Absolute.

A temporada de 2017 terminou abruptamente mais cedo, mas até 2018 arrancar houve que pacientemente reprimir ainda muito sofrimento.

Nunca desistir

Depois de dois meses numa cama do hospital da antiga colónia britânica, Couto regressou ao seu Macau, onde com fisioterapia e muita dedicação conseguiu superar as dificuldades que o destino lhe colocou novamente à frente.

“A parte mais difícil foi mesmo ficar imóvel durante dois meses”, afirma Couto que foi buscar força e inspiração ao filho Afonso. “Mas se o Afonso aguentava aqueles tratamentos todos e nunca desistiu, eu também sou capaz de superar isto. Era assim que eu pensava.’”

Couto reconhece que houve momentos em que viu a vida a andar para trás e as dúvidas se começaram a apoderar do seu espírito otimista. “Vês o tempo a passar e começas a pensar na vida. Chegaste aos quarenta, a recuperação nunca será como se tivesses vinte, o que vais fazer daqui em diante se tiveres que parar de correr”, questionava-se. “Mas depois, vim para Macau, comecei a fisioterapia e as coisas começaram a melhorar. Ao princípio foi difícil, porque estava muito perro. Qualquer movimento provocava-me imensas dores. Tive a sorte de ter o apoio dos amigos e da família, especialmente da minha mulher, a Graça, que estve sempre ao meu lado e que ia todos os dias depois do trabalho a Hong Kong para me ver. Sem este apoio tudo teria sido muito mais difícil de suportar e superar.”

A evolução foi muito positiva e o recobramento gradual. Aos poucos o piloto que nunca descurou o trabalho de ginásio em mais de duas décadas de automobilismo ao mais alto nível foi recuperando as valências, sempre com o pensamento num eventual regresso ao cockpit de um qualquer carro de corrida.

“Tinha muitas interrogações de como seria o regresso à competição. Foram quase nove meses parado. Tinha dúvidas a passarem-me pela cabeça constantemente. Havia muitas incertezas como estaria a nível de performance”, consente.

Todas essas dúvidas se dissiparam quando em março voltou ao volante de um GT3 e, perante uma concorrência robusta e igualmente bem apetrechada, rapidamente mostrou que aqueles nove meses de baixa nem uma milésima lhe roubaram.

Época em alta

Assim que recebeu alta dos médicos, no início de janeiro, Couto foi tentar materializar os contactos ainda feitos quando estava na fase de recuperação. Mas em janeiro já a maior parte dos bons volantes do campeonato Super GT, onde Couto não esconde que gostava de regressar um dia, já estavam ocupados. Todavia, as boas relações e amizades que sempre manteve na região deram-lhe a oportunidade de voltar ao campeonato de resistência japonês Super Taikyu, campeonato que conhecia do tempo do Toyota Supra HV-R híbrido que venceu as 24 horas de Tokachi em 2007. “Não é o Super GT, mas é também um campeonato muito bom, com pilotos ex-Super GT e marcas com apoio oficial”, explica o piloto de 41 anos.

A Phoenix Racing Asia e o “Gentleman Driver” de Taiwan Jeffrey Lee, um ex-adversário de Couto na Taça Audi R8 LMS e proprietário de um dos três Audi R8 LMS GT3 da equipa J-Fly, acreditaram na recuperação total do português desde a primeira hora e não se arrependeram. Logo na prova de abertura, nas 5 Horas de Suzuka, Couto foi o segundo mais rápido na qualificação e só uma estratégia menos feliz, a que se juntou a superioridade clara dos Nissan GT-R Nismo GT3 das equipas locais, o impediu de subir ao pódio no aclamado regresso às pistas.

Com duas das seis provas do campeonato Super Taikyu ainda por disputar, uma em Motegi e outra em Okayama, a J-Fly Racing by Phoenix Racing Asia ocupa o terceiro posto no campeonato onde os GT3 perfazem a classe principal de longas grelhas de partida que têm uma diversidade colorida de carros de GT e Turismo. “Tem sido uma época muito boa. Uma luta muito renhida entre Audi e Nissan. As vezes eles são melhores, outras vezes somos nós. Os Audi são muito fortes em curva, mas o Nissan tem um binário muito bom e é muito forte em 3ª e 4ª velocidades, assim como lá em cima”, destaca.

Embora ainda se ressinta ligeiramente de algumas mazelas do acidente de há um ano, o andamento Couto não o acusa, bastando para isso conferir as posições da folha de tempos das 5 Horas de Autopolis, onde o piloto luso fez a volta mais rápida da corrida. Mesmo nas 24 Horas de Fuji, a prova rainha do campeonato disputada em Junho em que subiu ao pódio ao lado de Shintaro Kawabata, Jeffrey Lee e Alessio Picariello, fisicamente “senti-me bem. Pensava que ia ser muito mais difícil. Fiz vários turnos durante a noite e fui o mais rápido em pista. O único problema que tive foi mesmo uma intoxicação alimentar…”

Na equipa de bandeira de Hong Kong, Couto encontrou o compatriota Ruben Silva, o seu antigo engenheiro na Taça Audi asiática, competição onde foi vice-campeão em 2014, num final polémico, em que o título foi atribuído ao malaio ex-Fórmula 1 Alex Yoong já na secretaria.

“A equipa é como uma família. Há um perfeito entendimento entre todos e uma relação muito boa, dentro e fora das pistas”, enaltece o piloto do Audi R8 LMS nº81. “É muito bom ter o Ruben a trabalhar comigo. Para além da excelente relação de amizade que temos, ele é o meu Mourinho, o meu ‘driver coach’. Conhece-me muito bem e ajuda a puxar pela minha confiança.”

Olhar para trás

Com mais de duas dezenas de temporadas a competir nos maiores palcos do desporto automóvel, Couto guarda para si várias recordações, desde dos tempos em que João Barbosa (sim, o piloto) era o seu “driver coach” no karting, à vitória na Fórmula Opel-Lotus na sua primeira corrida em Portugal, mais precisamente no Autódromo do Estoril, ou a conquista, no circuito de Magny-Cours e na companhia de Manuel Gião, da Taça das Nações EFDA da Fórmula Opel para Portugal em 1995.

Aliás, 1995 foi um ano muito marcante para Couto, pois foi aquele em que se estreou no Grande Prémio de Macau de Fórmula 3, uma prova inesquecível, porque “no ano anterior eu andava de um lado para o outro nas boxes a pedir para tirar fotografias com os pilotos e um ano depois, estava ali a lutar lado a lado com eles”. Com apenas 18 anos, Couto chegou mesmo a liderar uma corrida que foi ganha por Ralf Schumacher com quem travou um acesso duelo. “Foi nesse evento que eu percebi que conseguia fazer isto!”

Porém, a melhor memória é mesmo a vitória em 2000 no Circuito da Guia, que para além de ter sido o troféu de maior prestígio conquistado por Couto na sua carreira, foi também um marco inolvidável para a comunidade portuguesa residente em Macau numa altura em que especialmente precisava de momentos de afirmação como este.

“Teve um sabor muito especial. Tinha tentado várias vezes e por isto ou por aquilo nunca tinha acontecido e nunca porque bati, mas sempre por pequenos problemas. Sonhava vencer o Grande Prémio desde miúdo. Foi uma vitória que teve um significado especial”, atesta o piloto que foi vice-campeão italiano de Fórmula 3 em 1997 e que tem um espaço seu no Museu do Grande Prémio.

Há outra vitória que Couto também não esquece e foi aquela obtida em 2015 na categoria GT300 do campeonato Super GT com o Nissan GT-R Nismo GT3 da equipa Gainer. Porquê? “Era algo que me estava atravessado e pela forma como o conseguimos. Pontuamos em todas as corridas. Já tinha sido vice-campeão na GT500 e finalmente consegui o título que me faltava…”

Futuro sem levantar o pé

Mesmo tendo outras ocupações no desporto automóvel, ora testando supercarros elétricos (ver caixa), ora ensinando pilotos menos experientes ou que estão a dar os primeiros passos, Couto não tem, por agora, planos para pousar o capacete e deixar as pistas. Muito pelo contrário. Terminadas as férias de verão com a família em Portugal, Couto foi convidado pela equipa MacPro Racing Team para conduzir o Honda Civic TCR desta pequena estrutura de Macau no campeonato TCR China na nova pista de Ningbo.

O próprio não esconde que gostava de “voltar um dia ao Super GT”, mas diz-se bastante satisfeito se “continuar no Super Taikyu”. Com uma reputação muito boa num continente em franca expansão, no que respeita aos desportos motorizados, o piloto da RAEM não fecha as portas a outros projetos.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), Macau irá ultrapassar o Qatar e será o território com o maior rendimento per capita a partir de 2020. Mas enganam-se todos aqueles que pensam que basta os pilotos locais abanarem a árvore das Patacas para os patrocínios caírem que nem frutos maduros.

“Sempre foi e continua muito difícil”, rebate Couto. “Todos os anos a história repete-se. As empresas grandes de Macau não se importam muito com o automobilismo. Sinto que é preciso fazer um muito bom trabalho e apresentar bem os projetos para cativar o seu interesse”, sendo que praticamente o seu único interesse está “no fim-de-semana do Grande Prémio”.

Depois de ter estado na edição passada do Grande Prémio de Macau confinado ao papel espectador, Couto quer retornar à prova que lhe é tão querida já este ano. “Estou em negociações. Fazia todo o sentido regressar à Taça do Mundo FIA de GT”, diz Couto que em 2016 terminou no 12º lugar com um Lamborghini Huracan GT3 da FFF Racing Team.

Mas há outra corrida que Couto também vai querer manter-se na linha da frente e essa é a de continuar a alertar para a importância de ser dador de medula óssea. Usando a sua popularidade e contactos no meio desportivo, e sem nunca esquecer a luta que travou o intrépido Afonso, Couto continua empenhado em proporcionar momentos especiais a todas as crianças que diariamente tentam vencer esta dura batalha.

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