WEC: 55 voltas em Le Mans, sem trocar de pneus

Por a 4 Novembro 2020 16:54

Longe vão os tempos que o mundial de endurance nas suas diferentes iterações e as 24 Horas de Le Mans eram também uma guerra dos construtores de pneus. Hoje, na classe rainha, a Michelin tem o monopólio, mas por si só a sua missão foi simplificada, pois a arte de dominar a “magia negra” tem um impacto muito mais vasto do que aparenta.

Por muitas vezes descoramos a importância dos pneus nas corridas. São naquelas quatro “borrachas” que um carro assenta e o comportamento deste “envoltório deformável e elástico que se prende à jante das rodas de certos veículos” tem uma influência brutal em qualquer resultado. Tal como acontece com o automóvel, também aqui nos deparamos com uma tecnologia em constante desenvolvimento e que não pode fugir aos desafios do mundo em que vivemos.

Um dos maiores desafios que a Peugeot Sport se prepara para enfrentar neste seu regresso às corridas de resistência, planeado para 2022, são os pneus. A Michelin é o único fornecedor da nova categoria LMH e na última semana de Outubro, em Paul Ricard, os técnicos da marca de Clermont-Ferrand iniciaram os trabalhos em conjunto com os técnicos da Toyota, no primeiro verdadeiro teste do novo “Hypercar” do construtor nipónico. Os técnicos da Michelin e os congéneres da Toyota Gazoo Racing têm trabalhado em conjunto no desenvolvimento de pneus para as corridas do FIA WEC ao longo dos últimos oito anos.

Nos últimos três anos, os TS050 Hybrid foram mesmo os únicos protótipos híbridos na grelha de partida e requeriam um pneu 31/71R18 diferente dos LMP1 não-híbridos, por serem o carro mais potente da grelha de partida, por terem uma distribuição de pesos diferente e por terem quatro rodas motrizes. Esta aproximação, a que não é alheia a mão de Pascal Vasselon, o director técnico da Toyota Gazoo Racing e ex-responsável pela Michelin no mundial de Fórmula 1, permitiu à Toyota encaixar um “know-how” e uma experiência nesta área que hoje os coloca em teórica superioridade técnica face a quem venha a enfrentar nesta categoria.

Apesar de ter ao seu serviço um departamento técnico muito capaz e com vários elementos com tremenda experiência nas corridas de resistência, muitos deles trabalharam no projecto 908, a verdade é que a Peugeot se apresenta sem qualquer base de referência no que respeita aos pneus. Para compensar, e já a pensar nesse obstáculo, o programa da marca de Sochaux foi pensado para que o novo carro inicie o programa de testes no final de 2021. “Não subestimamos esta tarefa”, disse Olivier Jansonnie, director da Peugeot Sport, numa entrevista recente. “As pessoas que estão envolvidas na classe LMP1 têm mais experiência dos actuais pneus e estão bastante confortáveis em procurar soluções através de simulações, mas colocar um número no tempo por volta? Por agora, não vamos ser capazes de fazer isso”.

Apesar de começar mais tarde e não ter tantos elementos disponíveis como aquela que será a sua maior concorrente, o lado francês está ainda assim numa posição menos desfavorável. “Temos o mesmo conceito da Toyota e a Michelin tem uma família de aplicações optimizadas para os quatro rodas-motrizes”, afirma o responsável pelo projecto desportivo do FIA WEC da Peugeot Sport que também prevê dificuldades para os organizadores que terão que implantar equilíbrio de performance através de um BoP: “Para equilibrar [carros com] outras medidas de pneus e aqueles carros que correm apenas com tracção traseira, essa parte [garantir um BoP correcto] é que será difícil de ajustar” Com menos dados em mãos, a Scuderia Cameron Glickenhaus e o Team ByKolles irão igualmente arrancar com uma desvantagem ainda maior e o facto de terem limitadas possibilidades de testar antes do arranque da temporada de 2021 em nada ajuda.

Enquanto os construtores fazem os seus cálculos, a Michelin vai preparando o que está por vir, um futuro que irá ter impacto directo no desenrolar das corridas. Aliás, há quase uma década que o fabricante de Clermont-Ferrand tem a solução para uma das maiores tormentas do produto que comercializa: os furos. Um furo numa pista como o circuito de La Sarthe pode comprometer uma corrida, não só pelos estragos que faz se o pneu rebentar, mas também pelo tempo perdido. A Michelin Motorsport desenvolveu uma tecnologia capaz de suprimir essa debilidade há quase uma década, no entanto, tem ficado na gaveta.

O conceito estudado passaria por colocar um selante no pneu, que o tornaria resistente aos furos – um gel no pneu que enche e mantém a pressão. Esta opção foi refinadacom a Audi, mas acabou por ser colocada de lado, pois obrigaria a adicionar 200g em cada pneu, quase o equivalente a um quilograma ao peso total, o que pelas contas de quem as faz, custava cerca de meio décimo de segundo. Como a Audi, na altura, colocava três carros em pista, o risco de um furo acontecer a cada um dos três carros era pequena, esta solução acabou por ir para a gaveta.

Para justificar os elevados custos deste desporto os fornecedores precisam cada vez mais de mostrar que a tecnologia usada na competição automóvel pode espelhada no dia-a-dia. Há uma coisa que Matthieu Bonardel, o Director da Michelin Motorsport, espera livrar-se a curto prazo: os aquecedores de pneus. “Espero que as próximas duas gerações de pneus não tenham problemas em aquecer”, disse aos jornalistas durante a última edição das 24 Horas de Le Mans. Os actuais pneus, mesmo os altamente sofisticados da classe LMP1, foram desenhados para serem aquecidos antes de enfrentarem as agruras do asfalto, caso contrário, precisariam de muito mais tempo para atingir a temperatura ideal.

No entanto, projetar um pneu para aquecer em condições frias vai evitar o uso de tecnologia que torna o pneu muito aderente quando está quente. Não é tão bom e o pneu passa mais tempo quente do que frio, o que não é uma troca que se queira fazer para se enfrentar a concorrência. “Os pneus ficarão um ou dois segundos mais lentos”, afirma Matthieu Bonardel. “Mas se fizermos alguma pesquisa sobre o assunto e se decidirmos que é o que queremos fazer, podemos reduzir a compensação ao longo dos próximos quatro anos a talvez até zero”. Visto que a classe dos hipercarros é um monopólio da marca do Bibendum, aplicar esta medida seria relativamente, se não existisse um problema.

Quando desenharam os regulamentos a implantar a partir do próximo ano, o Automobile Club L’Ouest e a FIA fizeram contas para que estes novos LMH fossem mais lentos que os LMP1-H, apontando para tempos por volta muito semelhantes aos actuais LMP2. Se os LMP2 ultrapassarem os Hipercarros, com certeza que não vai ser bom para a imagem campeonato. “Os dados dizem que ainda hoje, com pneus atuais, com o peso, potência e o que temos em mente, em Le Mans deve estar tudo bem. Mas temos de ter cuidado com as pistas de baixas velocidades, para não reduzir muito o desempenho ou os LMP2 ficarão mais rápidos”, diz o responsável francês.

Atento à situação o ACO terá pedido à Goodyear para construir um pneu mais lento para a categoria LMP2, algo que obviamente não será do agrado de uma marca que venceu as 24 Horas de Le Mans à geral pela primeira vez em 1965, na altura equipando um dos Ferrari 250 LM da North American Racing Team (NART). “A única forma de fazer isto é, se o ACO disser para acabar com os aquecedor de pneus. Se ninguém usar aquecedor de pneus e todos aceitarem perder um ou dois segundos por volta, podemos parar de usá-los. Temos de considerar onde estaremos daqui a 10 anos”, resume o responsável francês.

Para se perceber a qualidade dos pneumáticos disponíveis na actualidade, basta lembrar que o recorde nas 24 Horas de Le Mans de durabilidade de um jogo de pneus foi obtido este ano. O facto da prova ter sido realizada em Setembro terá ajudado. Contudo, não deixa de ser espantoso que Gustavo Menezes, num Rebellion R13 Gibson LMP1, ter completado55 voltas, o equivalente a cinco turnos de condução, sem trocar de pneus. Isto, a uma média de velocidade superior aos 240km/h numa distância superior de Bragança a Portimão.

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