Vila Real: Os primórdios de uma história inigualável
O Portugal dos anos 20 estava mergulhado num verdadeiro caos político, social e económico, por isso não é difícil perceber por que motivos as manifestações automobilísticas nacionais até ao início dos anos 30 eram esporádicas e de pequena dimensão. No entanto, foi neste difícil contexto que alguns entusiastas transmontanos organizaram, em Setembro de 1920, o Circuito de Trás-os-Montes, centrado em Vila Real. Muitos destes homens estiveram ligados, tanto como organizadores ou participantes, ao Rali Nacional de Automóveis e ao I Circuito de Trás-os-Montes, organizado cinco anos depois com base em Chaves, e que formalmente inaugurou o conceito de rali em solo português. Um destes homens, Aureliano Barrigas, com formação em engenharia e praticante de diversos desportos, havia fundado em 1922 o Sport Clube de Vila Real, e a partir de 1928 começou a estudar a possibilidade de criar uma prova automóvel em Vila Real, já que este desporto não tardara a tornar-se o seu favorito. Juntamente com o seu pai Manuel Lopes Barrigas, Luís Taboada e o então Presidente da Câmara Municipal de Vila Real Dr. Emídio Roque da Silveira, Aureliano Barrigas começou a estudar uma forma de criar um circuito nas estradas em redor da cidade…
No entanto, a situação económica da época não o permitiu, e só em 1930 a cidade decidiu formalmente avançar com a organização do circuito para o ano seguinte, no contexto das festas da cidade, lançando para tal um imposto de $40 por cada quilograma de carne para o seu financiamento. É de salientar que 1931 marca o nascimento das competições em circuito portuguesas, destacando-se as provas em Lisboa, no Campo Grande, e a primeira versão do Circuito da Boavista. A organização estava ao encargo da comissão de festas da cidade, embora com algum apoio do ACP, e o traçado partia da Avenida Almeida Lucena, junto ao Jardim da Carreira, no centro da cidade, dirigindo-se pela actual N2 até ao Quartel de Infantaria nº13, desviando então para a N15 para atravessar o rio Corgo na ponte da Timpeira, encaminhando-se depois para uma rapidíssima descida que levava até Mateus, regressando então em direcção à cidade pelas ruas que davam para a estação de comboios, atravessando a ponte metálica sobre o Corgo para entrarem na cidade e virarem à direita para a meta, num perímetro total de 7.150 Km. Rápido e extremamente técnico, o Circuito de Vila Real tinha como grande particularidade usar na sua maioria estradas não asfaltadas, pavimentadas pelo omnipresente macadame de então, e por cruzar duas passagens de nível sobre a linha do Corgo, que à data levava os passageiros do Peso da Régua até Chaves.
A vitória na primeira edição coube ao conceituado volante nortenho Gaspar Sameiro, e de imediato Vila Real revestiu-se de enorme sucesso, tanto desportivo como económico, animando os organizadores a prosseguir com a sua obra e a tentar asfaltar a maior extensão possível do circuito, já que as estradas macadamizadas criavam muitos problemas aos concorrentes devido ao desgaste dos pneus e ao imenso pó que levantavam. O sucesso da primeira edição contribuiu muito para uma lista de inscritos de maior qualidade em 1932, levando de vencida a prova o mais novo dos irmãos Sameiro, Vasco, que não tardaria a impor-se como o melhor piloto do pelotão nacional nos anos seguintes e como o mais internacional dos volantes portugueses no período entre guerras.
1933 trouxe a primeira alteração ao traçado, já que a entrada na reta da meta deixou de ser feita através da Rua Alexandre Herculano. Ao invés disso, os pilotos seguiam em frente pela calçada de São Pedro para virarem à direita na Travessa Cândido dos Reis, naquela que viria a ser chamada curva do tanque, devido aos despistes ocorridos no ano anterior, o que aumentava o traçado para cerca de 7.200 Km. Também é de assinalar a crescente extensão do tapete de asfalto nas estradas fora da cidade, tornando o circuito mais rápido e menos perigoso. Ironicamente, 1933 foi marcado por uma drástica redução do número de concorrentes, e mais uma vez Vasco Sameiro impôs-se facilmente. Contudo, as coisas melhoraram na temporada seguinte, que assistiu também à estreia das motas na pista transmontana. Outro dado importante era a crescente vontade da organização em internacionalizar o circuito, não só devido ao seu percurso extremamente desafiante e elogiado por todos os ases do volante, mas também pelo enorme apoio das gentes da cidade e coordenação com os poderes políticos e económicos locais. Porém, o desastre ocorrido no Circuito de Espinho desse ano, que provocou cinco mortos e um elevado número de feridos, levou a Secção Norte do ACP a interromper o seu apoio às provas de circuito, provocando um interregno em Vila Real. Este viria a ser muito benéfico para a organização, que pode dedicar o ano de 1935 ao alcatroamento total do traçado, assim como a avançar de vez para o sonho da internacionalização e alargar o programa desportivo, o que implicou uma quantia bem mais avultada. Se bem que muito incipiente, esta internacionalização foi conseguida com uma equipa oficial da Adler na categoria Sport e alguns volantes ingleses na categoria Corrida, mas o domínio voltou a caber aos pilotos nacionais. 1937 destacou-se sobretudo pela brilhante vitória de Casimiro de Oliveira em Jaguar SS-100, a primeira vitória daquela marca fora das ilhas britânicas, o que valeu ampla publicidade ao carro e um enorme reconhecimento ao piloto. A prova ainda se realizou em 1938, isto apesar de a conjuntura internacional ser cada vez mais desfavorável – o intensificar da Guerra Civil Espanhola e os avanços da Alemanha para a Áustria e Checoslováquia deixavam antever uma crise muito séria – e internamente o desaparecimento do Dr. Emídio Roque da Silveira foi um rude golpe na articulação entre as diversas entidades que contribuíam para o circuito. Com apenas uma corrida no programa, Vasco Sameiro conseguiu a sua quinta vitória, mas em 1939 a conjuntura tornou inviável a continuação do circuito de Vila Real.