Rui Lages (Braga, 1 de Dezembro de 1950) : O herói local

Por a 1 Dezembro 2022 09:12

O entusiasmo percebe-se bem quando fala: não para e as recordações fluem ao mesmo ritmo com que, durante 25 anos “consecutivos”, como faz questão de frisar, correu nas pistas, nas rampas e nos ralis. Ou seja, muito depressa. Rui Lages continua como sempre o conhecemos; um colosso, sem papas na língua e com ideias muito claras sobre como as coisas devem ser feitas. Neste caso, corridas, campeonatos e afins. Esta é a crónica possível de uma carreira recheada de sucessos.

Rui Lages, um dos pilotos mais multifacetados da história do desporto motorizado nacional, faz hoje 72 anos de idade.

Antonino Rui Pires Lages, de seu nome próprio, nasceu no primeiro dia de Dezembro de 1950 e, após uma primeira experiência numa “gincana” organizada por alunos de um colégio bracarense, estreou-se “oficialmente, com licença e tudo”, em Outubro de 1971. Com um NSU TT 1300, fez o “Nacional de Iniciados”, lutando contra pilotos como Rui Sampaio ou Rui Gonçalves, que então estavam também a dar os primeiros passos, em ralis “de quilómetros ‘roubados’, com médias de 60 km/h nas ligações, nessa altura impossíveis de cumprir.” Depois, e até 1996, foram “25 anos consecutivos”, de que hoje muito se orgulha, pois acredita que, em Portugal, “são poucos os que podem gabar disso”, correr um quarto de século sem parar e “sempre com licença desportiva.”

Ao longo desses anos, passou por quase tudo: “Fiz pop-cross, autocross, rampas, ralis, circuitos, até perícias. Tive a sorte de ter estado presente na melhor época de sempre de automóveis em Portugal, a década de 80 e parte da de 90. Corri em pistas para homens, como Vila Real, que marcava a diferença. E onde, depois de um [piloto] estrangeiro e de Manuel Fernandes, sou o piloto que mais corridas ali ganhou. Corri em Vila do Conde, uma pista sem interesse e só com uma única curva de verdade, a da Seca, onde o truque era nunca levantar o pé, mesmo quando o carro começava a abanar por causa dos ventos laterais, que eram ali sempre muito fortes. Quem não tinha medo, continuava a fundo, quem tinha medo, levantava o pé… e era acidente de certeza! Mas Vila do Conde, mesmo sem condições, era única, pela proximidade do público, que enchia as bancadas e vinha até ali, de uma forma que só se via nessa altura nas rampas e no Rali de Portugal.”

Depois, em 1996, foi a paragem definitiva, o pendurar do capacete e das luvas, sem lugar para amargura e saudade: “Como tudo na vida, temos um prazo de validade e o meu chegou nessa altura. Não estava velho, tinha 45 anos, mas os mais novos começaram a ‘bicar-me’ na cabeça e eu não sou daqueles que está ali para encher, para fazer número. Sempre gostei de andar depressa mas, nessa altura, reparei que as curvas começavam a aparecer depressa demais…”

Foi nessa altura que Rui Lages abraçou a tempo inteiro o associativismo desportivo, como membro da direção do “seu” Clube Automóvel do Minho, em que esteve até 2009, também sem parar Hoje, continua sem parar, mas os automóveis estão mais longe no horizonte. Apenas um pouco, contudo.

Nos últimos anos, foi convidado “pelo José Ramos, da [Rádio] Comercial, para fazer duas vezes [as 24 horas de] Fronteira. Gostei muito, mas fiquei por ali…” E, há dois anos, “o antigo presidente da Câmara [Municipal] do Porto, o Rui Rio, convidou-me para fazer o Circuito da Boavista, com os carros do [João] Anjos. Foi divertido, mas pronto: acabou!”

Mas, aquilo que poucos sabem é que a derradeira prova de Rui Lages, em 1996, foi num local improvável para quem, como ele assume sem rebuço, não gosta de estar “longe do [seu] quintal”: “Acabei a minha carreira desportiva com o [Toyota] Carina, em Macau, na Corrida da Guia. Foi a última corrida oficial da minha vida de piloto.”

O Team CAM, o tal que marcou um época

Rui Lages, que tem a certeza de que “não existem bons pilotos sem bons mecânicos” e que o seu sucesso a eles se deve, pois sempre teve a trabalhar consigo “bons mecânicos”, foi um dos fundadores do Team CAM, “a primeira equipa a sério depois do 25 de Abril e que marcou uma época nos automóveis. Até então, não tinha havido nada, com exceção do Team Torralta e o Team CAM, que surge com sócios do Clube Automóvel do Minho, começou logo da melhor forma. Essa era uma altura em que era mais fácil arranjarem-se apoios. Não havia TV, existiam menos jornais, havia mais focalização nas corridas de automóveis. No nosso primeiro ano, eu ganhei o Troféu Toyota e o AX e o Adriano [Barbosa] foi campeão [Nacional de Produção, em 1988].”

O Team CAM, equipa que se destacava pelas cores garridas dos carros – o amarelo e verde do CAM – teve como principais pilotos, além de Lages e de Adriano Barbosa, o malogrado António Vasconcelos, David Rodrigues e Rogério Peixoto. “Acabou quando acabou a Falperra. Quase logo a seguir, abandonei as corridas.”

E, com isso, terminou uma época que pode chamar-se de ouro no automobilismo nacional: “Hoje, não é fácil voltarmos. Os clubes não conseguem apoios sérios para organizarem provas e, além disso, é preciso gente que saiba mesmo de automóveis. E não o que se vê hoje…”

Rui Lages e o “Chevette”: “A minha asneira nos automóveis!”

Quem hoje olha para as fotos de Rui Lages em longas derrapagens com o Vauxhall Chevette, nos troços de terra que lhe davam mais gozo fazer, numa rampa acima ou no asfalto estreito de Vila do Conde, pensa logo qualquer coisa no género: “Mas que grande carro era o Chevette! E espetacular!”

No entanto, para Lages, nada foi menos verdade; na realidade, considera hoje o Chevette como “o pior erro” de toda a sua carreira. E explica porquê: “Foi a minha asneira nos automóveis! Ao contrário do [Chevette] do MêQêPê, que era de fábrica, ex-Pentti Airikkala, o meu foi todo feito em casa, em Braga. Comprei um motor, peças várias de um [Vauxhall] Viva e foi assim que foi montado. Enquanto andava, andava depressa, mas partia a maior parte das vezes.”

Mesmo assim, com o Vauxhall Chevette, Rui Lages não se cansou de fazer “maluquices”, como ele próprio define as peripécias que assinava ao volante do carro inglês: “Não tinha travões! Tinha à volta de 190 cv, uma força brutal, mas não travava. Mas eu só percebi o que tinha ali, quando o Manel [MêQêPê] me deixou experimentar o [Chevette] dele. Trocámos de carro e, no final, vi que tinha ali um verdadeiro autotanque e que o dele era uma autêntica maravilha. Ele nem queria acreditar que eu conseguia andar com andava com um carro assim…”

E “andar assim” com o Vauxhall Chevette foi, por exemplo, num “Rali de Portugal, ter feito o segundo tempo na Lagoa Azul, com a estrada molhada, na que era então a primeira classificativa da prova. Depois, em Montejunto, eu e o MêQêPê, no outro Chevette, para grande espanto de todos os outros, incluindo as equipas de fábrica, andámos nos dez primeiros. Aliás, tudo correu bem até ao Caramulo… onde tudo acabou!”

Rui Lages correu com o Vauxhall Chevette “durante quatro anos, mas, depois, cansei-me a passei a fazer Troféus mais a sério.” Seja como for, ele que nunca correu na Madeira ou nos Açores, ainda levou o Chevette “por uma ou duas vezes” a Jarama, nos arredores de Madrid, para duas provas em que os resultados foram maus, naquelas que, “com um Rias Bajas”, foram as suas únicas internacionalizações:” Nunca fui muito de sair do meu ‘quintal’…”

“Mister Troféu”

Rui Lages define-se como, acima de tudo, “um piloto de Troféus”. Admite, claramente, sem hesitações ou lamentos, que nunca fez um Campeonato Nacional de Velocidade a lutar pelo título porque nunca quis: “Nunca me preocupei com isso. Nunca fiz um campeonato para ganhar. Nunca comprei ‘cavalos’; para isso, teria que ir comprar os carros lá fora e, além do mais, não tinha dinheiro que chegasse.”

Assumindo-se como “um pouco comodista”, o piloto de Braga diz-se também como um piloto que gosta “de lutas na pista. O que mais gozo me dava era ver um piloto à minha frente e ter que o bater. Enquanto não o batesse, não levantava o pé. Era isso que me dava prazer nas corridas.” E confessa ainda: “O piloto que mais vezes bati, com quem mais vezes lutei, foi o Mário [Silva]. Claro que lute com outros, todos eles muito bons, em duelos que nunca irei esquecer na vida e que me encheram as medidas. Não esqueço o ‘Manel’ Fernandes, o ‘Toni’ Rodrigues, os irmãos [Alcides e Jorge] Petiz, o Duarte Guedes, o [Manuel] Mello Breyner, o PêQêPê. Tantos… Foram pilotos que me marcaram e que, além disso, marcaram uma época de ouro do nosso automobilismo. Dava-me gozo batê-los!”

Foi isso, justifica com um entusiasmo inequívoco, que o levou a optar, a certa altura da sua carreira, pelos troféus monomarca: “Na pista, ganha o que tiver mais ‘unhas’ e isso só se via mesmo a sério nos Troféus [monomarca]. Havia luta direta entre os pilotos e era sso que marcava a diferença. Fiz quase todos. Só não fiz os Renault [Clio e Mégane] e BMW. De resto, estive em todos e só não venci no [VW] Polo, porque parti um pé em Vila Real, no que foi o único acidente da minha carreira que me levou, durante alguns meses, à cama de um hospital. [v. AutoSport Histórico nº 1870, “O Último Circuito de Vila Real”]. Ganhei o Mini, o [Citroën] Visa e AX, o [Toyota] Starlet e Carina, o [VW] Golf. Penso que só o Mário [Silva] tem mais vitórias em Troféus e isso porque ele fez os Renault.”

Quando se começava… por baixo

Sem medo das palavras, crítico atento da atualidade, nomeadamente no que respeito diz ao automobilismo, Rui Lages recorda, com uma certa amargura, como eram as “coisas” no seu tempo. Em especial, as exigências que eram pedidas quando um jovem se queria iniciar nas “corridas” e pelas quais teve que passar: “Era preciso ter-se um aval, alguém que garantisse que sabíamos guiar. E não estou a falar da carta de condução, nada disso. Por exemplo, o ideal seria sermos sócios de um clube [de automobilismo].” Depois, passava-se pelo crivo da “iniciação”: “Era obrigatório fazermos os Iniciados. A seguir, vinha a Promoção e só então o nacional. Não éramos obrigados a fazer a Promoção, podíamos ‘saltar’ logo para o Nacional, mas tínhamos que trazer as bases de trás.” Ou seja, o campeonato de Iniciados, “que hoje tanta falta faz aos automóveis!”

Hoje não é “nada assim”, constata com uma certa desilusão e, até, desencanto: “Hoje, iniciados é coisa que não há. Hoje, qualquer piloto tira uma licença e, se tiver dinheiro, mesmo sem ter corrido em algum lado, compra um bom carro e vai logo andar depressa. E muitas vezes nem sequer sabe as bandeiras! E isso é perigoso! Um piloto tem que ir para a pista a saber o que está a fazer, tem que guiar descontraído! Tem que saber gerir a máquina, não é ir para ali de qualquer maneira!”

E remata, com pragmatismo: “Mas enfim, as coisas são como são…” E é bem verdade mudam-se os tempos…

O menino “Iur Segal”

Rui Lages começou, muito jovem, com um NSU TT 1300, no campeonato de Ralis de Iniciados de 1971. Nessa altura, era frequente, tantas vezes para “esconder” dos pais uma paixão que nem sempre era bem compreendida, os jovens “aprendizes de pilotos” correrem por trás de pseudónimos; o bracarense não foi exceção e o que escolheu foi “Iur Segal”, um acrónimo do seu nome próprio: “Primeiro, fui ‘Iur segal’, mas o nome foi por água abaixo, pois bati na Cabeira, logo no segundo rali que fiz e a minha mãe ficou a saber. Até porque nem sequer era difícil, pois ‘Iur Segal’ era ‘Rui Lages’ ao contrário. Depois, como achava que ‘Segal’ era giro, fiquei ‘Segal’ até 1974 ou 1975, quando passei a ser o Rui Lages.”

Rui Lages, que nunca fez “karting” “na vida, a não ser picardias entre amigos, mais tarde”, fez a sua primeira prova, não em 1971, mas sim “em 1968 ou 1969. Mas, oficialmente, com licença desportiva e tudo, foi em 1971. E só parei 25 anos depois, em 1996, sem nunca ter interrompido. Por isso, sou o piloto português que mais anos correu de seguida, 25 temporadas completas.”

Mas, voltando atrás no tempo, recorda aquela prova de perícia, “uma gincana”, como gosta de lhe chamar, em que usou um VW “Carocha” 1200: “Nem tinha carta [de condução]! Foi no Colégio D. Diogo de Sousa, em Braga, uma brincadeira organizada pelo Quina Falcão.” Na verdade, esta foi uma, digamos (a palavra é nossa) “alternativa” ao que era costume os jovens fazerem. E que era “fugir com o carro dos pais, sempre que podia, para ir com os amigos para uma estrada de terra e fazermos ‘corridas’ do ponto ‘A’ ao ponto ‘B’. Era essa a nossa diversão e com, nessa altura, os carros eram maioritariamente de tração atrás, estava garantido o máximo de gozo.”

Por isso, durante a sua carreira, especialmente no início, na fase “pré-troféus”, o que o “seduzia” eram mesmo as estradas em terra: “Gostava de andar de lado, depressa mas de lado. Mas depois tudo ficou mais difícil, começou a aparecer o asfalto em todo o lado e, mais tarde, com os parques naturais, ficou complicado correr em muitos sítios.”

Texto de Hélio Rodrigues

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