“Mestre” Eduardo deixou-nos

Por a 25 Março 2023 12:40

Uma das referências do desporto motorizado deixou-nos. O “Mestre” Eduardo, a alma da Garagem Aurora, faleceu aos oitenta anos, não resistindo à doença que lhe roubou a vida, mas que nunca lhe roubará um legado ímpar.

Não é fácil conquistar a unanimidade, especialmente no nosso país e mais ainda no desporto motorizado. Mas o “Mestre” Eduardo conseguiu-o. Não foi por acaso que passou a ser chamado de “Mestre”.

Eduardo Santos, nasceu há 40 anos, no Porto. E nas últimas décadas, confundiu-se com a própria história do desporto motorizado em Portugal, fruto da sua arte. Sim, arte, pois o que ele fazia com os automóveis era também uma forma de arte.

“Costumo dizer que já com sete anos queria ser mecânico de automóveis. Comecei aos 14. E aos 25, tomei conta da Garagem Aurora”,

Como tudo começou?

“Lembro-me de que quando vim para esta casa, o meu patrão já dava assistência ao Ferrari do José Nogueira Pinto. Só que para muita pena minha, ele parou de correr pouco depois e a casa fez um interregno no que se refere à assistência de carros de corrida. Nessa altura, já eu tinha percebido do que realmente gostava”.

Mas o destino estava traçado. “Quando o meu patrão adoeceu, tinha eu aí uns 25 anos, ele convidou-me para ficar à frente da garagem. Aceitei sem pensar muito”.

O motivo pelo qual o espaço ficou conhecido por Garagem Aurora “é uma história triste. Já se chamava assim antes de eu vir para aqui. O meu patrão era casado e tinha uma filha. Mãe e filha chamavam-se Aurora e acontece que elas falecerem no espaço de 15 dias, devido a uma infeção, após uma estadia no Gerês. Quando ele depois constituiu a garagem, penso que lhes quis prestar uma homenagem. É daí que advém o nome. E eu nunca o alterei”.

Já à frente da oficina, recebeu o primeiro convite. “Foi na altura em que aparecerem os Fórmula V. Lembro-me que havia uma corrida em Vila do Conde, em 65 ou 66 e alguns pilotos que eram meus clientes pediram-me ajuda. Lá aceitei e, confesso, gostei realmente daquilo”.

De tal forma que não demorou muito em meter “mãos à obra”, elaborando um Fórmula V – que mais não era do que um monolugar com mecânica VW. “Queria divertir-me um pouco… ser piloto. Só que quando o carro – batizado de ‘Aurora V’ – estava já a ser ultimado, apareceu um cliente, o Fernando Albuquerque, que se mostrou interessado em comprá-lo. Aliás, fez toda a questão que ficasse para ele. E lá foi a carreira de piloto num instante. Nem sei dizer se guardo alguma amargura por não ter tido a oportunidade de correr. Penso que se existe, não é muita”, acrescentou.

A paixão de uma vida

Paixão é um termo muito usado nisto das corridas e a cada carro preparado pelas mãos do “Mestre” Eduardo, era mais um poema de amor a uma disciplina por vezes cruel, mas sempre bela.“Uma verdadeira paixão… A paixão de uma vida inteira. É algo difícil de explicar. Por exemplo, começar a construir um carro a partir do nada. Saber que tudo é feito por nós. Foi isto que sempre me entusiasmou na minha profissão: Poder mexer nos automóveis”.

Recordou que a primeira vitória surgiu “no circuito da Granja do Marquês, por intermédio do Rui Carvalho”. Mas as vitórias em série aconteceram um pouco mais tarde, em finais da década de 60, com Manuel Nogueira Pinto, precisamente, “o filho do José Nogueira Pinto, aquele do Ferrari. “Um dia, comprou um Porsche 911 R e pediu para eu lhe dar assistência. Nessa época, já tinha alguma experiência com a marca, já tinha mexido nalguns… Mesmo assim, fui com ele para a Alemanha e tirei um curso para ter outro tipo de conhecimentos, mais aprofundados. Não era preciso fazer o carro a partir do ‘zero’, mas apenas transformá-lo. Logo no ano de estreia do 911 R, o José Nogueira Pinto foi campeão. Nessa temporada, ganhámos tudo. Tudo mesmo. Depois, ele trocou o 911 por um Carrera 6. O mesmo carro com que apareceria, também, o Carlos Santos, o pai do Carlos Filipe Santos. É o que faz andar aqui há tantos anos… passamos por várias gerações de pilotos”.

E depois dos Porsche… “vieram os Porsche”, gracejou. “A partir daqui é que começa a era dos Aurora Porsche. Se eles eram muito diferentes uns dos outros? Não… eram mais ou menos iguais. Qual o eleito – porque há sempre um! -, de entre todos os Porsche? “O 993. Para mim, é o último dos Porsche. A razão é simples. Foi efetivamente o último a sair com motor refrigerado a ar. Além disso, é lindo!”. Mas as saudades batiam mesmo “por um Carrera 6 que um dia transformei em ‘barchetta’. Se pudesse voltar atrás, teria guardado um. E nunca o vendia. Por dinheiro algum”. O “Mestre” Eduardo não disfarçava o sorriso genuíno de quem ama o que faz.

Uma legião de pilotos

Além das histórias deliciosas dos Porsche, havia também que falar nos “troféus”. Estávamos no início da década de 80: “acabaram os Grupo 5 e começaram a surgir os vários troféus Toyota, depois BMW. E com eles, uma ‘mão-cheia’ de pilotos com quem tive a honra de trabalhar”.

Um compasso de espera. Tirou uma folha de papel do bolso, com uns rabiscos, impercetíveis. “Trabalhei com muitos. Não ligue à ordem: Álvaro Parente, Ni Amorim, António Rodrigues, Fernando Faria, Manuel Rodrigues, Carlos Rodrigues… Espere, tenho mais aqui: Carlos Azevedo, Rufino Fontes, Clemente Ribeiro da Silva, Joaquim Moutinho, Carlos Barbot, Fernando Silva, entre outros”.

O problema era destacar algum. Recusava-se a fazê-lo. Mas… “Não queria, a sério que não. Mas todos sabem que uns estavam realmente acima da média, casos do Joaquim Moutinho, António Rodrigues, Álvaro Parente e, claro, do Carlos Rodrigues. Mas há outros que me impressionaram igualmente, por serem lutadores. Nesse ponto, destaco o Rufino Fontes”.

Quase sem esperar por nova pergunta, entrou na década de 90. “É quando surge o Sierra RS 500 do Carlos Rodrigues. Era uma novidade. Lembro-me que o carro estava montado de uma forma muito esquisita e tivemos muitos problemas, nomeadamente com o turbo. Mas no último ano que correu, penso que em 1992, vencemos dez das 12 corridas do campeonato.”

Momentos duros

Nem só de sorrisos eram feitas as recordações do “Mestre” Eduardo. Há uma delas que, por certo, teria preferido apagar da sua memória. Resume-se ao dia do incêndio na antiga Garagem Aurora. Um dia que o marcou para sempre. A sua face ficou subitamente carregada, sem o sorriso. Sem hesitações, atirou a data, a hora em que tudo terá começado: “Estávamos todos a trabalhar na oficina. Era o dia 16 de julho de 1981, e pouco passava das 10h30 da manhã. Nisto, ouviu-se uma explosão. A garagem começou a arder…Perdi tudo, tudo. Os carros, os meus arquivos pessoais. Mas o mais marcante, claro, o meu sobrinho. Ainda hoje é difícil esquecer o que se passou naquele dia”.

Os Clássicos eram os seus melhores “poemas”

A idade avançada permitiu a Mestre Eduardo, entre outras coisas, observar a fantástica evolução dos automóveis… Mas a sua preferência ia para os Clássicos: “é a mecânica a que estou mais habituado. Não digo que não conseguiria preparar um carro mais atual, mas por certo perderia dez a 20 horas nele… ao invés de poder resolver um qualquer problema em uma ou duas horas, caso se tratasse de um carro mais antigo”. Além disso, mostrava-se desiludido com as eletrónicas… “vieram destruir muita coisa. Para mim, isso já não é mecânica”. E não hesitava em criticar a parca fiabilidade dos carros atuais: “tendo em conta a proporção de automóveis que existem hoje em dia nas nossas estradas, e o número reduzido dos que circulavam há um bom par de anos, certamente repara que existem cada vez mais pronto-socorros. É sinal que avariam muito mais, não é?. Para além disso, no passado, um pouco de arame, uma chave de fendas, um pedaço de fita isoladora, e tudo se resolvia. Agora, só mesmo numa oficina da marca, com um ‘check-up’ completo.” Outros tempos…

O “Mestre” Eduardo era um apaixonado pela sua arte, que fez como ninguém. Era também um apaixonado pela velocidade, em detrimento dos ralis: “se reparar bem, no futebol existem sempre dois jogadores a disputar uma bola. É nela que se centram todas as atenções. Nos Ralis, há um único piloto à procura do melhor tempo, não há disputa. Já na Velocidade, todos procuram o mesmo, há sempre lutas em pista, quer seja entre o primeiro e o segundo, ou mesmo entre o último e o penúltimo. É isso que me entusiasma na Velocidade.”

Mestre Eduardo era um dos ‘magos’ da marca Porsche reconhecido em todo mundo. O seu “palmarés” supera o de todos os pilotos e equipas que ajudou ao longo da sua vida. Um homem, que pelo seu talento, dedicação e paixão atingiu a imortalidade. Tal como as obras de arte que criou.

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Homem_do_Leme
Homem_do_Leme
1 ano atrás

Grande mestre! RIP

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