GP Macau: Porquê que os chineses não quebraram uma tradição portuguesa com mais de 60 anos
Os motivos que levaram os chineses a não quebraram uma tradição portuguesa com mais de 60 anos
Realiza-se no próximo fim-de-semana o 67º Grande Prémio de Macau, um relevante legado desportivo e cultural deixado pelos portugueses no sul da China e que desde 1954 se realiza sem interrupções. Apesar dos constrangimentos causados pela pandemia do novo coronavírus, e quando o mais fácil seria mesmo cancelar a edição deste ano, a administração chinesa do antigo território ultramarino português não virou as costas ao evento.
[rl_gallery id=”481623″]
Desde o início, o Governo liderado pelo novo Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, esteve ao lado da realização do evento, isto apesar da esperança de contar novamente com as Taças do Mundo da FIA se ter dissipado com o passar do tempo. Primeiro, a Eurosport Events optou por cancelar as suas rondas asiáticas, dada as limitações dos voos intercontinentais, depois a Comissão de GT da FIA decidiu contra a realização da Taça do Mundo este ano, com a justificação do número excessivo de provas internacionais na segunda metade do ano. A corrida de Fórmula 3 ainda se manteve à tona até ao final do verão, quando ficou claro que ninguém entraria em Macau sem estar sujeito a uma quarentena obrigatória de catorze dias num hotel da cidade. O Grande Prémio de Motos foi o último a cair, pois alguns concorrentes ainda tentaram contornar este obstáculo, como o português André Pires que iria participar com uma equipa técnica completamente diferente, mas não foi possível garantir um quórum mínimo aceitável e a corrida também foi cancelada.
Para colmatar a ausência de competições internacionais, visto que os residentes na China Continental não precisam de cumprir quarentena para em entrar na RAEM, a Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau preencheu o programa com cinco corridas de automóveis fortemente apoiadas em campeonatos chineses. O Campeonato Chinês de F4 substituiu a F3, enquanto os concorrentes do TCR China ajudaram a encher a Corrida da Guia e os do Campeonato da China de GT a Taça GT Macau. Para além do decréscimo da qualidade do programa, a organização viu-se de baixo de fogo da opinião pública local, que colocou em causa os protocolos de segurança, o orçamento de 26 milhões de euros, uns meros 2 milhões a menos que o ano transacto, e ainda o facto dos estrangeiros (pilotos e membros das equipas) estarem autorizados a entrar no território para o evento em regime especial de interesse público, ao contrário dos trabalhadores não residentes estrangeiros.
A economia de Macau, altamente dependente do turismo chinês e dos resultados dos casinos, sofreu a bom sofrer com a quebra do número de visitantes. Com a imposição de restrições fronteiriças e com a suspensão dos vistos turísticos da China, cuja emissão foi retomada recentemente, as receitas totais dos casinos em Macau registaram uma quebra de 90% em Setembro, em relação a igual período de 2019. Macau registou 46 infeções com o novo coronavírus desde o início da pandemia e nenhum óbito, nem nunca detetou qualquer surto comunitário, não existindo há meses qualquer caso activo. O Grande Prémio assumiu um papel preponderante para mostrar ao mundo que Macau é um sítio seguro, principalmente para aqueles provenientes da China Continental.
“A realização desta prova como programado é uma oportunidade de promover positivamente Macau, para demonstrar o nosso controlo da epidemia através da nossa capacidade de organizar um Grande Prémio e, assim, restabelecer a chegada de visitantes”, explicou aos jornalistas Pun Weng Kun, o actual Coordenador da Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau. “Esta confiança na cidade e o consequente desejo de visitá-la, abrirão o caminho para a recuperação da indústria do turismo na cidade, tendo um impacto positivo nas tradicionais férias turísticas como o Natal, o Ano Novo e o Festival da Primavera, atraindo assim mais visitantes a Macau.”
Ao fim de vinte anos, esta foi a primeira grande dificuldade que o Grande Prémio enfrentou sob a administração chinesa e seria uma clara demonstração de fraqueza caso a prova fosse cancelada. A verdade é que sob a administração portuguesa, o evento passou por todo o tipo de peripécias e tormentas, desde ameaças terroristas (quando em 1967 um grupo maoísta quis impedir a participação dos pilotos chineses), às diversas crises do petróleo (com sério impacto no automobilismo em todo o mundo), a adversidades climáticas (em 1987 o Tufão Nina obrigou que as corridas principais tivessem de ser realizadas na segunda-feira seguinte) e questões de segurança do circuito (ao longo dos anos houve diversas quezílias entre as entidades federativas portuguesas e a então FISA).
Isaías do Rosário, membro fundador do Automóvel Clube de Macau e ex-concorrente do PTCC, acredita que também há motivos desportivos para que se faça a edição deste ano. “Não posso afirmar, ou mesmo confirmar, mas há dias percebi ou apercebi-me que houve pressão dos pilotos locais para que não fosse cancelado, pois é uma oportunidade para eles poderem vencer em corridas que habitualmente não o conseguem fazer”, explicou ao AutoSport o habitual comentador da prova na Teledifusão de Macau. “Claro que a organização fala nos aspectos económicos, etc., o que não deixa de ser verdade, mas continuo a achar que o mais sensato, tal como aconteceu com os Jogos Olímpicos, seria adiar. No próximo ano fazer-se-iam dois (fins-de-semana seguidos, sendo o primeiro correspondente à 67ª edição e o da semana seguinte à 68ª edição. Assim também não se interrompia o Grande Prémio das motas”.
Ainda assim, contraventos e marés, a RAEM não mediu esforços para organizar o Grande Prémio deste ano, apesar de ter encurtado de quatro para três dias o fim-de-semana de corridas. Assim, o programa mais pequeno desde 1966 fica preenchido pelas corridas de F4, GTs, Guia, a Taça de Carros de Turismo de Macau para pilotos locais e a Taça GT – Corrida da Grande Baía que é uma mistura de carros GT4 e viaturas provenientes do defunto troféu Lotus. Para evitar grandes concentrações de pessoas, o número de espectadores foi limitado a apenas dez mil dos catorze mil lugares disponíveis, para além do número de passes atribuídos às equipas ter sido reduzido a quatro por viatura. Apesar da clara vontade de restringir ao máximo o acesso ao já por sim muito exíguo paddock localizado nas traseiras do Terminal Marítimo do Porto Exterior, a verdade é que presença das tradicionais “pit girls” não foi proibida.
O evento, que será o primeiro desde 1986 que não terá um piloto português residente na metrópole à partida, não só representa um impulso bem-vindo para as muitas empresas locais, que beneficiam da mostra anual do desporto motorizado, como também surge como a oportunidade ideal para mostrar ao mundo que Macau continua a ser um destino seguro, empolgante e único para os visitantes. Ou o automobilismo não servisse para isso mesmo, para enviar uma mensagem positiva, seja qual for o destinatário…