Entrevista a Bruno Correia: “Em seis anos chegámos a um nível, que não imagino hoje o mundo sem a Fórmula E”

Por a 3 Maio 2020 12:11

Já lá vão 11 anos desde o momento em que o embate do Safety Car com o BMW de Franz Engstler na jornada de Pau em 2009 do WTCC levou a FIA a procurar e posteriormente escolher um piloto de Safety Car permanente. Escolheu Bruno Correia, que numa década viu a vida dar algumas voltas.

Bruno Correia continua de pedra e cal no seu trabalho de piloto do Safety Car no FIA Fórmula E, continuando a ser um entre muitos que contribui para que possamos ter espetáculos das corridas o mais normais e seguros possível. Até porque a Fórmula E é uma competição muito específica, já que se baseia em circuitos montados em pouco tempo no centro das cidades, e por isso é fácil que pormenores importantes sejam descurados e Bruno Correia é um dos elementos mais importantes na resolução do ‘detalhe’ que faz toda a diferença.

Há muito faz o mesmo trabalho e a Fórmula E continua a ser a sua competição ‘primária’, pois aí mais do que em circuitos convencionais, é preciso muita competência, e depois de há muito conhecerem a forma como Bruno Correia abraçou a sua função e o profissionalismo que demonstra na sua execução, levam-se a ser há muito um elemento imprescindível naquela complexa engrenagem.

A Fórmula 1 e o WEC continuam a ser as disciplinas que não ‘faz’, e mesmo assim não deve haver – se calhar não há mesmo – alguém que já tenha rodado em mais pistas. Os seus anos continuam a ter 36 a 38 fins de semana ocupados e mesmo assim, pelo meio continua a alimentar a sua paixão pelo karting.

Recordando um pouco a sua história, começou no karting, quando passou para as pistas, andou um pouco na sombra do Pedro Lamy e Pedro Couceiro, ganhou a Fórmula Ford em 1994, chegou a testar um Fórmula 3, foi para os Estados Unidos, na mesma altura que João Barbosa, mas não teve tanta sorte. A sua vida dos últimos anos tem-se ‘chamado’ BMW i8 Safety Car e ainda recentemente a BMW renovou a sua parceria com a Fórmula E por mais três anos.

Há uns bons quatro anos que não tínhamos uma conversa, e algo que lhe continua marcado com força na memória foi o incrível acidente de Nicolas Prost e Nick Heidfield logo na primeira corrida da história da Fórmula E. Falou-se do possível impacto que o coronavírus pode deixar no desporto automóvel, e por fim explica porque se continua a considerar um privilegiado neste mundo motorizado. Pelo meio, muitos e bons temas que até metem uma super modelo da Victoria Secret, Alessandra Ambrosio. Não sabe quem é? Vá ver ao Youtube…

Bruno, a última vez que te entrevistámos foi durante as 24 Horas do Nurburgring em 2016. Como tem sido a tua vida daí para cá? Continuas de BMW e às vezes na ‘frente’ de algumas corridas…

“É verdade, sempre pronto quando é necessário para liderar! A BMW estendeu recentemente o acordo para mais três temporadas com a FIA Fórmula e. Anunciou esta renovação num bonito evento durante o E-prix da grande capital do México”.

Ainda te recordas do primeiro impacto na tua primeira corrida de Fórmula E?

“Curiosamente, tenho aproveitado esta pausa forçada, e através do arquivo que a Fórmula E disponibilizou no seu site, para rever todas as corridas e relembrar esta incrível experiência. Em Pequim, recordo que todo aquele incrível esquadrão de pilotos saíram pela primeira vez à pista, atrás do Safety Car. Depois ainda fiz primeira intervenção na seguda volta do E-Prix! Lembram-se do final, última curva, última volta? Prost e Heidfield? Ficou para a História!”

Quantas já fizeste, tens essa contabilidade feita?

“Simples, fiz todas as que tiveram lugar na Fia Fórmula E até ao momento! Agora, estou a aproveitar o ‘lay-off’, para fazer a lista de todas as intervenções do Safety Car desde sempre neste campeonato. E ainda não terminei (risos…)

Qual é a parte mais difícil da tua vida profissional? As viagens devem ser uma seca…

“Tu também já andas por este mundo há algum tempo! Encontrámos-nos a última vez no WTCR/24 Horas de Nurburgring na Alemanha em 2016, não foi? As viagens são sempre a correr, tornam-se aborrecidas, mas quem corre por gosto não cansa, verdade? Em 2018/19 fiz uma média de 150 voos por ano, o que é bastante! A família e a casa fazem-me falta, muitas vezes. Estas missões são duras, com jornadas diárias longas e quase sempre com fusos horários diferentes, mas com os anos, aprendi a conciliar a vida profissional com a pessoal.

E nem sempre é fácil…

Em que país é que se come melhor?

“Em Portugal, em casa, obviamente! Sou um ‘bom garfo’, mas se tivesse que eleger um país lá fora, talvez escolhesse o Vietname, Japão e o Chile, pois também têm bons produtos e culinária de muita qualidade”.

Para além da Fórmula E, o que fazes mais tendo em conta a tua ligação à FIA?

“Mantenho as minhas funções no FIA WTCR desde 2009 e que gosto imenso, mas com prioridade para a FIA Fórmula E pelos motivos óbvios. Contudo, faço anualmente mais eventos relevantes de carácter internacional. Gostaria de me envolver futuramente nas inspeções de circuitos, até porque já contabilizo corridas em mais de 120 pistas a nível mundial”.

Tens algum receio do que pode acontecer ao desporto motorizado mundial com a crise que poderá deixar o coronavírus?

“Obviamente haverá impacto de grande dimensão a curto prazo, porém o automobilismo continua a ser uma enorme plataforma para desenvolvimento e divulgação de imagem das marcas. Basta olharmos para a FIA Fórmula E e para o número de construtores envolvidos, e as mudanças do sector nos últimos cinco anos, que nos afetam a todos nós diariamente”.

Que balanço fazes desta tua aventura na Fórmula E?

“Considero-me um privilegiado por fazer parte dela. Tem sido uma grande aventura a todos os níveis. Ninguém está preparado para uma mudança tão grande de paradigma do desporto motorizado, que agora também é elétrico. Preparou-me ainda mais como piloto e profissional, e acompanhar o recém nascido até onde chegou hoje, deixa-me, honestamente, muito honrado. Os desafios são grandes, e como iniciámos esta entrevista, começam logo nas viagens!”

Ninguém imaginava o sucesso que a disciplina iria ter?

“Penso que a Fia Fórmula E teve um ‘master plan’ extremamente bem pensado e executado. Além disso, o interesse inicial de grandes parceiros tecnológicos, pilotos e equipas de todo o mundo, corridas justas, em ambientes nunca antes imaginados, fez o ‘barco’ zarpar a todo o gás.

Após seis anos, chegámos a um nível, que não imaginava ser possível hoje o mundo sem a categoria eletrificada da Fórmula E.

Penso que muito em breve mais marcas se juntarão…”

O que te parece a Extreme E?

“O Extreme E tem o mesmo fundador da Formula E, o Alejandro Agag e uma boa equipa por trás. Têm feito um grande trabalho no desenvolvimento do Todo o Terreno 100% elétrico. Já conta com grande mediatismo, e um grupo de pilotos e equipas interessante.

Importante será saber o formato das provas, pois a causa, é já por si muito importante para o planeta”.

A F1 e a Fórmula E irão convergir cada vez mais, fala-se muito do que poderá acontecer na sequência desta ‘rota de colisão’?

“Não acredito que isso venha a acontecer. A F1 será sempre uma categoria rainha, assim como a Fórmula E, porém noutro campo dentro do mesmo. A eletrificação irá estar presente em ambas, mas a Fórmula E é 100% elétrica e evoluiu desde sempre nesse sentido.

Nós levamos as corridas às pessoas nas principais capitais do mundo, que é uma característica que com a Fórmula 1 seria difícil.

Não estou a ver a Fórmula 1 a competir no centro de Paris ou Hong-Kong. Haverá sempre espaço para as duas categorias”.

Apareceu o Extreme E, agora o Pure TCR: que outras novas disciplinas achas que podem surgir, tendo em conta que estás rodeado de gente que só olha para a inovação e o futuro?

“Sem dúvidas que o automobilismo está a mudar nesse sentido, muito derivado ao sucesso da Fórmula E. Podemos falar hoje de E-Karting, da Jaguar i-pace que vai na sua segunda temporada como categoria de suporte da Fórmula E, Ralicross elétrico, e a lista segue por aí.

Estamos num momento de transição que deve ser levado com cautela, pois motivações como a sustentabilidade, poluição e a tecnologia por si só não chegam. Existem grandes desafios para o sucesso nesta área. Basta lembrar o ceticismo com que a Formula E foi, e ainda o é, encarada por muita gente no setor.”

Fascina-te a tecnologia da Fórmula E. queres falar um pouco dela e dar exemplos?

“Atingimos uma maturidade, ou digamos adolescência muito rapidamente. Chegamos em alguns casos a estar próximo dos dez segundos mais rápidos por volta no mesmo circuito com o Fórmula E Gen 2 (2ª geração do monolugar de Fórmula E). Importantíssimo salientar, que não tivemos grandes problemas técnicos nem de segurança. Cada construtor pode trazer a sua unidade motriz, que tem que desenvolver dentro de moldes da FIA, com a bateria, níveis de potencia e regeneração, chassis e pneus iguais para todos.

É muita tecnologia, software e estratégia para se ser o mais rápido em pista difíceis em circunstâncias idênticas.

Prova disso, e se não estou em erro, foi temporada passada, onde tivemos oito pilotos, oito equipas e oito poles diferentes, nas primeiras oito corridas”.

Tendo em conta que os pilotos não falam muito disso, por motivos óbvios, consegues explicar em termos gerais o que são as táticas de gestão de corrida, quando acelerar, quando poupar, para os leigos perceberem melhor?

“A Fórmula E é diferente de qualquer outra categoria, pelo facto de ser 100% elétrica e de se poder controlar uso de potência de forma diferente. As dificuldades começam na qualificação em que os pilotos tem disponível 250 kw, potência que raramente podem utilizar.

As pistas são novas para muitos, com níveis de aderência diferenciados no traçado (melhorando durante o evento), e onde existe muito para testar em pouco tempo. Com a introdução de um carro por piloto, ao invés dos dois carros como nas três primeiras temporadas, passou-se para uma bateria por carro e bem mais potentes. Há que gerir duas passagens pelo ‘Attack Zone’ durante cada E-Prix. Tudo isto torna a gestão das baterias muito mais precisa, para não acontecer o que aconteceu no ano passado no México com o Pascal Wherlein e o Lucas Di Grassi em cima da meta ou mesmo com o Sébastien Buemi, que ficou pelo caminho.

A percentagem da energia das baterias das outras equipas já não está disponível durante a corrida e passa tudo a ser um jogo.

As travagens têm que ser mais prolongadas e com muito ‘lift & coast’ (desacelerar antes de travar para regenerar energia para a bateria) o que tornam as ultrapassagens e toques mais propícios. Temos ainda o fator da temperatura, que é muito importante, aliás como acontece nos telemóveis. Enfim, há que economizar o ‘gasoil’, aliás, fazer render a bateria (risos)…”

Já tiveste alguns momentos tensos, com o Safety Car em pista?

“A operação do Safety Car já por si é um momento tenso, tanto na sua entrada como na sua saída de pista. Eu estou com uma percentagem média de uma intervenção por E-Pprix, e com tantas intervenções, já passámos por algumas ‘fininhas’! Revi há pouco tempo a segunda temporada completa no site da Fórmula E, e lembro-me de disputar a travagem da última curva com o Lucas Di Grassi que liderava a corrida na altura em Paris. Acabei por levar a melhor e ganhar a corrida, pois acabou atrás de Safety Car, mas tive que ir às boxes antes da bandeirada…lol”

Qual é o teu local preferido nesta tua aventura na Fórmula E?

“O meus locais preferidos talvez tenham sido Punta del Leste e Hong Kong. As pistas são próximas aos hotéis e existem boas opções ao redor a todos os níveis.”

A a que menos gostaste?

“Sem duvidas Berna na Suíça. Pista e gente muito complicadas!”

Como vês a evolução que a Fórmula E tem vindo a ter?

“Penso que estamos a dar uma passo de cada vez, porém no sentido certo e de forma controlada. Nunca é fácil colocar um programa desta dimensão em andamento, mas sublinho que todos os envolvidos estão extremamente dedicados para o sucesso da categoria. Basta olharmos para todos atores deste campeonato mundial da FIA (para o ano). E alguns, são mesmo de Hollywood!”

Conheces bem os pilotos todos, com qual te dás melhor? Porquê?

“Sim, conheço bem todos e conversamos bastante. Obviamente, que me dou melhor com o António Félix da Costa, pois já nos conhecemos há muito tempo e não tem como não gostar dele. Enorme piloto português e ‘gente finíssima’ dentro e fora de pista! Líder atual incontestável na Fórmula E!”

Tens alguma história engraçada com algum?

“Tenho várias, são muitos anos! Lembro-me por exemplo da primeira vez que o Eduardo Mortara correu na Fórmula E e nos encontrámos.

Foi num briefing de pilotos, e ele dizia que tinha ficado maluco a andar atrás de mim no GP de Macau. Não me recordo se foi quando ganhou a Taça do Mundo de F3 ou de GT, e salvo erro, eu tinha um gordo Bentley de volante à direita como safety car.

No circuito da Guia em Macau tem que se andar depressa, mas travar também! Levo 11 anos a conduzir o Safety Car por lá e conheço bem os cantos da ‘casa’! Outra mais recente foi quando levei o Felipe Massa numa volta no Safety Car em Roma, quando ele ainda não corria na Fórmula E. Existe um salto depois da subida, que levanta as quatro rodas do BMW i8. Foi a fundo, e foi engraçada a reação dele pela surpresa!”

Achas que cada vez mais ex-F1 irão para a Fórmula E? Ouvi dizer que ‘paga’ logo a seguir à F1…

“É isso está a acontecer. Basta olhar para o campeão atual da Fórmula 2, Nyck De Vries, que milita na Fórmula E, na Mercedes junto ao Stoffel Vandoorne, ex-colega de Fernando Alonso na Mclaren F1. Sei que são muitos os pilotos interessados neste momento, pois é o sítio certo para se estar. A grelha dos 24 pilotos neste momento é fortíssima, e acho que não envergonhariam em nada na F1”.

Por fim, falemos de histórias para terminarmos num registo mais engraçado. Conta-nos algumas histórias daquelas que ninguém vê pela TV, mesmo que tenhas de deixar nomes e equipas de fora. Histórias para nos rirmos ao lê-las…

“Os ‘passenger rides’ ou as voltas VIP como lhe queiram chamar, que faço todas as corridas com o BMW i8 nos E-Prix são Top.

Lembro-me no Uruguai de levar a super modelo da Victoria Secret, Alexandra Ambrosio, e depois ela levar-me a mim, com emoção, a cortar chicanes e tudo mais. Mas não se ‘excitem’, tínhamos passageiros e está tudo no Youtube!

O ano passado no Mónaco, o nosso querido presidente Jean Todt mal viu o novo safety Car I8 Roadster descapotável disse-me logo: “Bruno, quero dar uma volta contigo hoje.” O pior é que foi no início da corrida, e quase a iniciarem-se os procedimentos! Era o Diretor de Corrida a mandar-me voltar, eu a acelerar, e o presidente a acenar e a mandar andar mais devagar! No fim deu umas belas risotas e correu bem, mas fotografias nunca mas enviaram…”

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