Brasil, o novo mundo

Por a 16 Junho 2020 10:58

A uniformização de regulamentos e a adjudicação de um número limitado licenças nas categorias de sport-protótipos a nível mundial trouxe consigo estabilidade e concorrentes, mas retirou todo o engenho e grande parte da magia de uma categoria cuja história até aqui tinha sido escrita por aventureiros, mentes brilhantes e verdadeiros apaixonados. Não foi por acaso que um quase desconhecido campeonato em Terras de Vera Cruz saltou, de um momento para o outro, para as luzes da ribalta.

Nenhum aficionado actualmente ficará embevecido por um LMP2 ou um LMP3, a cruel verdade é essa. Por isso mesmo, quando as primeiras fotos do novo e exuberante q.b. protótipo construído por Tarso Marques surgiram nas redes sociais, em tempos de confinamento e de marasmo no automobilismo, o mundo “descobriu” a Império Endurance Brasil. Num país em que a Stock Car é a categoria rainha do automobilismo, o campeonato de provas de resistência que nasceu no Rio Grande do Sul pelas mãos da APE (Associação dos Pilotos de Endurance), está cada vez mais consolidado como uma competição importante, atraindo equipas e pilotos conhecidos de todo o Brasil. O formato de provas de longa duração – quatro e seis horas – junta carros de Turismo, GT e Protótipos, com vários pilotos bem conhecidos do automobilismo mundial, como Ricardo Maurício, Tarso Marques, Daniel Serra, Marcos Gomes, César Ramos ou Xandinho Negrão.

A verdade é que no sul do Brasil, as equipas sempre tiveram a tradição de fabricar e alterar os seus carros ao nível quase de pequenos construtores. Foi talvez assim que as provas de resistência se mantiveram vivas nos circuitos da região, ressuscitando a nível nacional em 2015. “Até há pouco tempo os protótipos importados eram proibidos nas provas de longa duração no Brasil, o que levou ao surgimento de diversas soluções locais, sejam elas por iniciativas individuais de uma equipa ou desenvolvimentos de construtores brasileiros, como a Metalmoro”, explica o engenheiro Daniel Vieceli, acrescentando que “estes carros têm sempre disputado as vitórias contra GTs de marcas como Ferrari, Porsche ou Audi, porém, com a chegada de modelos GT3 modernos a partir de 2017, os protótipos que competiam até então tornaram-se obsoletos. Isso motivou equipas e fabricantes locais a desenvolver novos carros como o AJR, Sigma e DTR, além do TMC M1 que deve estrear em 2020.”

Com três categorias de protótipos – P1, P2 e P3 – o que não faltam são produções nacionais, algumas bastante artesanais, outras com um nível de tecnologia respeitável, e acima de tudo, com linhas inspiradoras. Principal categoria entre os protótipos, a P1 é a que tem os carros mais velozes da pista, e reúne os melhores protótipos construídos no país, porém carros importados como os Ginetta G57/G58 e carros homologados como LMP3 também podem participar. Os carros mais impressionantes são mesmo os protótipos de chassis tubulares construídos localmente, como o Metalmoro JLM AJR, vencedor da categoria rainha o ano passado e que é comercializado por cerca de 80 mil euros, o espectacular Sigma, de motor Audi V8 4,2 litros turbo, ou o DTR, desenvolvido em Novo Hamburgo por Eduardo ‘Dudu’ Dieter e Francesco Ventre.

A categoria P1, encarna o espírito “Fórmula Libre”, permitindo conceitos inovadores como o DRS ou uma motorização híbrida. Além dessa liberdade técnica, a categoria também não tem qualquer restrição quanto ao fornecedor de pneus. Por sua vez, a categoria P2 é uma espécie de categoria legado, pois após 2018 ficou evidente que a chegada de novos e mais evoluídos modelos, como o AJR, deixou ultrapassados na categoria principal diversos protótipos de construção mais antiga. Com isso, a categoria P1 sofreu uma mutação em 2019, e o regulamento vigente até 2018 passou a ser utilizado para formar a P2. Já a categoria P3 fica para os protótipos mais acessíveis e artesanais.

A aposta no “made in Brasil”

Na teoria, seria muito mais fácil para o campeonato brasileiro de resistência “per se” abraçar um modelo europeu, mas o que se serve no velho continente, nem sempre é a melhor opção na América do Sul, onde o engenho e o maquinismo já estão enraizados há décadas. “Inicialmente era por uma questão de regulamento, porém hoje acredito que o factor determinante é o custo”, interpreta Daniel Vieceli. “Importar para o Brasil é muito caro – entre impostos e outras despesas, a estimativa é que o custo para importar um carro de competição esteja entre 60% e 100% sobre o preço de venda no país de origem – além da moeda brasileira estar desvalorizada frente ao euro e ao dólar. Desta forma, um protótipo brasileiro como o AJR ou Sigma tem um custo bem interessante se comparados a carros como Ginetta G57 ou Ligier LMP3.”

A nova geração de protótipos brasileiros não é feita de aparelhagem improvisada, nem fruto do talento de artesãos de chapa e máquina de solda. O novo TMC M1, que está a ser construído pela equipa do ex-piloto de F1 Tarso Marques e do seu irmão Thiago, no Paraná, e que mais parece ter saído do videojogo Gran Turismo, mostra bem a liberdade técnica do regulamento da Endurance Brasil, mas também a tecnologia envolvida nos dias de hoje. Para além da aerodinâmica arrojada que lhe dará certamente o título de próximo “batmobile”, este protótipo que terá um motor V6 e uma caixa-de-velocidades Hewland de 6 velocidades, tem uma monocoque em fibra de carbono, a primeira a ser construída no Brasil e as suas linhas aerodinâmicas super arrojadas foram projectadas em CFD. Estes são argumentos fortes e que coloca o “produto nacional” a par com o que vem de fora.

“Também pesa nessa escolha, entre um carro local ou um de fora, o facto do regulamento do Endurance Brasil apresentar poucas limitações, permitindo às equipas maior liberdade para projetar difusores, aerofólios e praticamente todos os componentes, inclusive soluções como asa traseira móvel e outros conceitos aerodinâmicos proibidos nos regulamentos da FIA/ACO, tornando os carros projetados no Brasil potencialmente mais velozes”, esclarece o nosso interlocutor e autor do blog nivelandoengenharia.com.br.

O melhor exemplo de que o que é “made in Brasil” é bom, está na Metalmoro. A empresa do ex-piloto Juliano Moro foi quem mais investiu nesta disciplina na última década e no final de 2019 já tinha comercializado oito unidades do seu último modelo, com a curiosidade do mesmo protótipo (fechado) ter sido vendido com três diferentes opções em termos de motor.

A ameaça estrangeira

Não foi por acaso que, em 1971, António Carlos Avallone, um dos pioneiros construtores de protótipos no Brasil e representante da Lola Cars no Brasil, avançou com um requerimento na CND para impedir que fossem concedidas novas licenças de importação, aproveitando o decreto-lei que proibia a importação de artigos que tivessem um similar fabricado no Brasil. Essa medida ajudou a fomentar a indústria local na época.

A chegada de protótipos europeus continuará a ser sempre uma séria ameaça à indústria “canarinha” e à sua criatividade. “Quando estas marcas europeias decidem desenvolver um carro, não desenvolvem para fazer meia dúzia, mas fazem para vender setenta por ano”, adverte o jovem engenheiro Pedro Fetter que desenhou o Sigma.

Em 2019 o importador da Ginetta no Brasil, o brasileiro residente nos EUA, Adolpho Rossi, conseguiu trazer um G57, um carro que na Europa foi banido do VdeV Endurance Series e que não é mais que o LMP3 da marca inglesa equipado com um motor V8 Chevrolet LS3 6.2-litros. Para fugir às pesadas taxas de importação, que podem elevar o custo de 60 a 100% de um carro que custa acima dos 200 mil euros, é possível introduzir os modelos ingleses no país lusófono através de regime temporário. Depois de um ou dois anos, o carro terá que regressar aos EUA ou à Europa, podendo o seu proprietário aproveitar para fazer uma revisão ou um “update”, antes do retorno ao Brasil.

Igualmente interessada na categoria estará a Oreca. O poderoso aglomerado de Hugues de Chaunac tem um representante oficial no Brasil desde o final de 2017. A Oreca não tem qualquer protótipo que encaixe no regulamento, mas fornece os motores que equipam os LMP3 e a oferta dos franceses, através do importador local, será o Ligier LMP3 com o bloco V8 Nismo VK50 V8 que equipa todos os carros da categoria mais baixa de protótipos do ACO.

Quando em 2018, as partes interessadas abriram o campeonato aos protótipos estrangeiros, o objectivo era assim proporcionar a evolução dos carros locais, tendo como barómetro o melhor que se faz no mundo. No entanto, ninguém poderá esconder uma certa apreensão na implementação desta medida. “Penso que esse era um receio da organização, tanto que os protótipos importados passaram a ser permitidos apenas a partir de 2019. Atualmente, o regulamento permite a participação de carros como os Ginetta G57 P2 e G58 ou modelos FIA LMP3 sem os restritores de motor. Particularmente, a chegada de um modelo Ginetta G57 na temporada passada mostrou que é possível ter uma competição equilibrada contra os carros locais, além de ter motivado as nossas equipas e construtores a buscar novas soluções de aerodinâmica e de preparação de motores para manter a competitividade. Ainda assim, modelos mais sofisticados como os LMP2 são proibidos buscando manter o equilíbrio da disputa e evitar uma escalada de custos que possa prejudicar a categoria”, conclui Daniel Vieceli.

Enquanto o que é “nacional é bom” durar no Brasil, nós cá, a sete mil quilómetros de distância, vamos arregalando o olho com as obras irreverentes de quatro rodas do “novo mundo”, relembrando com a nostalgia o passado não muito longínquo das corridas de protótipos cá no “velho mundo”.

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