MEMÓRIA: Telefónica/Dakar 2004: Nem a neve faltou…

Por a 15 Janeiro 2024 10:39

Há precisamente 20 anos, o Dakar chamava-se ‘Telefónica/Dakar’ e tinha a Mitsubishi como equipa a bater. Nesse ano, a caravana contava apenas quatro portugueses, a prova prometia ser uma das mais duras edições de sempre, no regresso prometido à África Negra.

Mesmo sem a emoção de outros anos, fruto da ausência de Carlos Sousa, todas as atenções do Mundo desportivo centravam-se já no início de mais um “Dakar”, sucedendo-se as apostas em torno dos vencedores de cada uma das classes, mas também no que poderiam fazer os quatro lusos que integravam o numeroso pelotão.

Pela primeira vez em Clermont-Ferrand, 500 equipas deram o primeiro passo rumo a Dakar, tendo pela frente um longo e penoso percurso que, reza a história, apenas alguns privilegiados conseguiram cumprir na totalidade. A maioria deles transportava na bagagem apenas o desejo de pisar o palanque da chegada, junto às margens do famoso Lago Rosa, seja em que posição for.

Mas outras havia que partiam com ambições bem mais elevadas. Nos automóveis, a Mitsubishi era uma dessas equipas. Apesar de já ter conhecido o sucesso por oito ocasiões – as últimas três de forma consecutiva – a fortíssima formação liderada por Dominique Serieys regressava a África determinada em ampliar o seu palmarés. E acabou por consegui-lo…

De olhos postos na vitória estavam também outras equipas com cunho oficial, caso da Nissan, que em 2004 manteve a aposta no ‘jovem’ Giniel De Villiers e no experiente Ari Vatanen. A estes dois repetentes juntavam-se duas novas caras no Nissan Rally Raid Team: Yves Loubet e Colin McRae – sendo que no caso do escocês, ex-Campeão do Mundo de Ralis, esta participação representava o seu “batismo de fogo” nas areias do deserto.

Um pouco mais comedidos, até devido às limitações do seu orçamento, estiveram os homens do Team X-Raid, a equipa responsável pela inscrição dos BMW X5 – por certo os carros mais “convencionais” de todo o pelotão oficial. Provando a velha máxima de que “em equipa que ganha não se mexe”, Grégoire De Mévius e Luc Alphand – o francês que fez história na edição anterior, 2003, quando pela primeira vez levou uma viatura Diesel à vitória numa etapa, eram os responsáveis por uma mais fiável ofensiva às duas favoritas formações japonesas.

Mais difícil de analisar eram as perspectivas da Volkswagen e do Team Schlesser-Ford. No caso da Volkswagen, reinava a expectativa em torno da estreia do Race Touareg de motorização diesel, entregues a Jutta Kleinschmidt e Bruno Saby, curiosamente, dois pilotos que já tinham triunfado no Dakar, ambos ao serviço da

Mitsubishi.

Elisabete Jacinto, Paulo Marques e Bernardo Villar…mas havia outro

Em 2004, a representação lusa no “Dakar” foi das mais reduzidas de sempre, contando-se apenas quatro pilotos em duas frentes da competição. No feminino, Portugal esteve representado uma vez mais por Elisabete Jacinto, que pela segunda vez na sua carreira se aventura aos comandos de um camião, perseguindo um feito inédito para uma mulher nesta classe: atingir a meta em Dakar. Nos automóveis, Paulo Marques e Bernardo Vilar uniram esforços e formaram uma inédita equipa de ex-“motards”, dividindo etapa a etapa a condução do Nissan Patrol GR do Agrupamento T2.

José Lopes foi o quarto português…

Apesar de não viver em Portugal, mas no Senegal, assumia-se orgulhosamente as suas origens, nomeadamente com a colocação da bandeira das “cinco quinas” no Nissan Patrol GR que partilhava com o piloto Abdou Thiam, no denominado “Proyecto Dakar”. Descoberto no decorrer das verificações técnicas e administrativas, José Lopes posou por momentos para a câmara do jornalista Pedro Barreiros, numa pausa em que aproveitou ainda para explicar que durante muito tempo viveu em França, até que há quatro anos se decidiu mudar de “armas e bagagens” para o Senegal, onde descobriu as corridas de todo-o-terreno, no papel de navegador. O “Dakar” de

2004 representava a sua estreia em grandes eventos internacionais, daí que o sonho fosse precisamente que a aventura terminasse naquela que é agora a sua “segunda casa”. E assim foi… ou quase!

Dakar começou com a neve, antes de rumar a Marrocos…

Depois da neve, chuva e sol da Europa, a caravana do “Dakar” preparava-se para as prometidas dificuldades das 14 etapas africanas entre Tânger e Er Rachidia, num total de 75 km ao cronómetro. Peterhansel (Auto), Pujol (Motos) e De Rooy (Camiões) comandam para já as respectivas classes.

Pelo quarto ano consecutivo, Mitsubishi e KTM dominaram, mas agora com dois novos intervenientes: Stéphane Peterhansel, nos automóveis; e Joan Roma, nas motos. Precisamente, dois dos grandes azarados do último ano! Nos camiões é que nada mudou, tendo Vladimir Tchagin confirmado o “tri” para a Kamaz.

Vitória de Peterhansel

Para a pequena caravana de sobreviventes deste “Dakar”, ficou um longo e penoso percurso, muito suor e sacrifício, muitas alegrias, outras tantas decepções. Recordações que o tempo se encarregará de apagar ou, pelo menos, de aligeirar, ou não fosse por isso que todos dizem querer regressar, após tantos dias de pesadelo.

De resto, glória aos vencedores e honra aos vencidos. É que desta vez, felizmente, não existiram nem cenas menos próprias entre adversários, nem tão pouco golpes de teatro com a meta a vista. E embora tivesse reinado alguma previsibilidade, em especial nos automóveis, a verdade é que nas motos a emoção e a incerteza quanto ao vencedor durou praticamente até ao fim. Mas vamos por partes.

Nos automóveis, e apesar de todas as ameaças da concorrência, a verdade é que a Mitsubishi voltou a reinar, garantindo aquela que foi a sua nona vitória na prova – quarta de forma consecutiva. A supremacia dos novos Pajero Evolution nunca chegou a ser posta em causa, daí que a luta pela vitória cedo se tenha transformado num duelo particular entre Stéphane Peterhansel e Hiroshi Masuoka. Pelo menos, até a Mitsubishi o ter permitido. Depois do problema com a transmissão do seu carro, na oitava especial, o japonês bem tentou recuperar parte do atraso de uma hora para o piloto francês, mas a paragem de dois dias, decretada pela organização, em nada o ajudou. Aliás, nem a Masuoka nem mesmo a Peterhansel, que com a vitória já assegurada, por ordem da sua equipa, teve depois que fazer uma corrida de gestão, lutando sobretudo para não perder a concentração. Após seis triunfos nas duas rodas, Stéphane Peterhansel vingou assim o azar do ano anterior, quando deixou escapar um merecido triunfo na penúltima etapa.

Ainda em relação à Mitsubishi, uma nota de destaque para o soberbo desempenho da alemã Andrea Mayer que mesmo assumindo o papel de assistência rápida em pista, chegou ao fim no quinto posto. Maior surpresa foi por certo o terceiro lugar de Jean-Louis Schlesser, não tanto por o francês ter alguma vez constituído uma séria ameaça aos dois “Mitsu Evo Boys”, mas sobretudo porque o veterano piloto do “buggy” azul se impôs a todas as restantes formações de fábrica, sem dúvida com meios bem superiores aos de Schlesser.

Nissan foi a equipa que mais desiludiu

Tal como em 2003 passado, o Team X-Raid, responsável pela inscrição dos BMW X5, voltou a estar em excelente plano, conseguindo colocar Luc Alphand na quarta posição da geral, tendo o francês somado mais duas vitórias em etapas, após a estreia no ano passado. Apenas por manifesto azar, a equipa falhou um dos seus objetivos traçados para esta edição, o de colocar os dois carros no “top five”. Grégoire De Mevius deitou tudo a perder nesta última semana, nomeadamente na especial de sábado, quando capotou o X5 e gastou quase mais três horas que o vencedor para cumprir a especial, caindo por isso para oitavo da geral.

A Nissan, por seu lado, foi talvez a grande desilusão deste “Dakar”, não tanto por culpa dos seus pilotos, mas antes devido à pouca fiabilidade das suas Pick Up, facto bem testemunhado por Ari Vatanen (que acabaria por desistir ingloriamente, após embater numa árvore), Colin McRae (20º) e Giniel De Villiers.

Tal como no ano anterior, o sul-africano foi o que melhor se adaptou a estas condições, vindo a terminar no sétimo posto da geral. Apenas um lugar atrás de Bruno Saby, o melhor dos representantes da VW. A marca de Wolfsburg não teve também uma estreia fácil com o Race-Touareg, cedo ficando afastada das posições cimeiras.

Mas depois da polémica troca de motor no carro de Jutta Kleinschmidt, a alemã não mais parou de impressionar, provando que a VW poderá mesmo regressar em 2005 para (tentar) vencer.

Dos quatro portugueses que se apresentaram este ano à partida do “Dakar”, apenas um não chegou ao final, precisamente o menos conhecido entre nós: José António Lopes, um imigrante no Senegal que o AutoSport descobriu em França, no decorrer das verificações técnicas. Ironia do destino, desistiu precisamente na…

última etapa. É o que se chama “morrer na praia”. Quanto às outras duas equipas, o balanço final acaba por ser largamente positivo, sobretudo para Elisabete Jacinto, uma vez que talvez se esperasse um pouco mais da dupla Paulo Marques/ Bernardo Villar.

Villar e Marques muito satisfeitos

Paulo Marques e Bernardo Villar, juntos sob as cores do Team Moto Compra & Venda, concluiram a primeira participação em conjunto num 25º posto, um resultado que, embora fique aquém do “top 20” que almejavam é, no entender dos pilotos, resultado dos sucessivos problemas por que passaram: “Sabíamos que tínhamos um carro ‘privadíssimo’, logo, estávamos limitados no nosso andamento. Depois, alguns azares em etapas que nos estavam a correr bem, fizeram com que perdêssemos muito tempo para recuperar já na parte final, quando começamos a rubricar boas classificações nas etapas.

Acredito que, não fosse a falta de tracção no início, a falta de experiência com a pressão dos pneus, o tempo perdido com a roda que saiu e, anteriormente, a barra de direcção partida, teríamos terminado entre os 20 primeiros”, explicou Bernardo Villar.

Quanto a Paulo Marques, o piloto de Famalicão revelou estar satisfeito com o resultado, tão só e apenas por tratar-se da sua estreia no “Dakar” ao volante de um automóvel: “Foi tudo diferente. Chegar tarde ao acampamento, fazer dunas de noite, ler notas, conduzir, enfim, algo que nunca tinha feito na minha carreira. Por isso, penso que a nossa ‘aliança’, minha e do Bernardo, foi um êxito pois chegamos ao fim bem classificados, com o carro intacto e sem mazelas… ao contrário do que me aconteceu no ano passado! Sabemos que com mais experiência podemos fazer melhor e é isso que vamos procurar conseguir este ano”.

Elisabete entra para a história

Nunca, em 25 anos de competição, o “Dakar” assistira a uma mulher terminar a prova aos comandos de um camião. Depois de em 2000 ter triunfado na Taça das Senhoras em moto, Elisabete Jacinto acreditou que era capaz de o fazer. Após uma primeira experiência efetuada em 2003, três meses após ter completado o respetivo exame de condução, a piloto portuguesa não só ultrapassou essa promessa, como terminou a edição de 2004 no 26º lugar absoluto, entre os 63 camiões que partiram de Clermont Ferrand e os 39 que chegaram ontem a Dakar.

Um feito que entra para a história da prova, associado a outro não menos importante, já que pela primeira vez um piloto junta no seu palmarés o êxito no “Dakar” aos comandos de uma mota e ao volante de um camião.

“Estou naturalmente muito feliz por ter cumprido a minha promessa de conseguir terminar o ‘Dakar’ aos comandos de um camião, até porque, e a opinião é unânime, este foi um ‘Dakar’ dos mais duros de sempre. Felizmente, fui capaz de ultrapassar todas essas dificuldades e apenas sinto a mágoa de saber que poderia ter obtido resultados bem melhores. Poderá ser defeito, ou feitio meu, mas sou uma lutadora e para mim só faz sentido entrar neste tipo de competições para levar as minhas capacidades até ao limite. Nas motos só podia contar comigo, mas aqui não estava sozinha”, explicou Elisabete Jacinto.

Contudo, a portuguesa acabou por não ser nada feliz com a escolha da equipa: “Sofri muito do ponto de vista psicológico ao perceber que tinha ao meu lado pessoas que não estavam minimamente empenhadas no sentido da competição, mas isso é uma situação que está ultrapassada e para o próximo ano haverá muito mais rigor nessas opções”, prometeu. E cumpriu…

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