Jean-Louis Schlesser: Tão versátil quanto um SUV
No dia em que completa 76 anos, nada melhor que recordar Jean-Louis Schlesser, daqueles, hoje cada vez mais raros, pilotos capazes de correr – e de vencer – em tudo o que é sítio. Desde as pistas às picadas africanas, desde os pequenos monolugares de F3 aos grandes protótipos de Grupo C, Schlesser colecionou triunfos atrás de triunfos, tornando-se num piloto verdadeiramente versátil. Em linguagem dos automóveis, pode dizer-se que Schlesser é como um SUV premium – o cúmulo da versatilidade.
Jean-Louis Schlesser nasceu em França, mas cresceu em Marrocos, onde o seu pai trabalhava como engenheiro agrícola. Muito jovem, correu em bicicletas e depois em motos. Tinha esta inspiração no seu tio Jo, que era então um grande nome em França, para onde regressou em 1963, com a intenção de prosseguir os estudos. Durante os anos seguintes, dedicou-se a estes e, entretanto, o seu tio e referência perdeu a vida num acidente no GP de França, em Rouen-les- Essarts, em 1968.
Pouco depois, Jean-Louis entrou para a vida militar e foi apenas após esta que se inscreveu numa escola de pilotagem, em Le Mans. Corria o ano de 1970 e, ao mesmo tempo que aprendia os truques das pistas, fazia algumas provas de ralis regionais.
Finalista na escola, tentou fazer a Fórmula Renault no ano seguinte mas o dinheiro não chegava. Então, continuou a fazer ralis aqui e ali ao mesmo tempo que trabalhava como piloto de testes em diversas marcas de automóveis e empresas que preparavam carros de competição. E foi só em 1978, já com 30 anos, que deu pela primeira vez nas vistas, ao partilhar o título de Campeão Nacional de F3 com um tal de Alain Prost. Mais uma vez parado nos anos seguintes, em 1981 conseguiu ser piloto oficial da Martini no Europeu de F3. A sua carreira estava finalmente lançada mas, com 33 anos, era já demasiado velho para muita coisa. Mesmo assim fez segundo nesse ano nas 24 Horas de Le Mans e, em 1982, fez parte do Europeu de F2 com um Maurer oficial, mas não pontuou, tendo sido por duas vezes sétimo classificado (Spa e Mantorp Park). Mesmo assim, no final do ano, foi convidado pela Williams para testar um F1. Depois disso, a sua carreira nunca mais parou de crescer.
Um self made man em África
Jean-Louis Schlesser estreou-se no Dakar em 1984, mas foi a partir de 1990 que começou a participar com regularidade. Ao volante de protótipos de duas rodas motrizes (buggies) de sua autoria, foi-se tornando cada vez mais competitivo até conseguir a proeza de vencer à geral pela primeira vez em 1999, feito que repetiu no ano seguinte. Amante confesso das paisagens e das longas tiradas africanas, depois que a prova atravessou o Atlântico e se fixou na América do Sul, Schlesser demonstrou o seu desagrado com a situação da forma mais radical possível: deixou de participar no Dakar, que segundo ele tinha perdido todo o encanto e o espírito original, e lançou-se na criação e promoção da Africa Eco Race, onde corre atualmente e é pedra basilar do crescente sucesso que esta nova maratona africana (“Os outros caminhos do Dakar”) cada vez mais possui e que já venceu por cinco vezes consecutivas, entre 2009 e 2013.
Piloto sempre veloz e determinado, seja qual for a competição em que participe, Jean-Louis Schlesser venceu entre 1998 e 2002 o Campeonato do Mundo FIA de Ralis TT (FIA Cross Country Rally World Cup) à geral, bem como por cinco vezes (2003, 2004, 2005, 2011, 2012) na categoria 2WD (duas rodas motrizes), onde se incluem os seus buggies – o primeiro dos quais estreou na Baja Portugal 1000 de 1992, vencendo-a perante a forte armada dos Citroën ZX Rally Raid, com um carro de duas rodas motrizes e correndo a solo. Além disso, venceu ainda o Troféu FIA de Ralis TT nas duas rodas motrizes entre 1993 e 1997.
Ui! Que mau feitio!
Jean-Louis Schlesser nunca foi um cavalheiro. Nem quando era o namorado de Jutta Kleinschmidt, na altura em que ela pilotava um dos seus buggies – a relação azedou de tal forma, porque a senhora era incapaz de o seguir no deserto, que terminou rapidamente… pouco antes da mesma senhora vencer o Dakar, em 2001, ao volante de um Mitsubishi Pajero.
Arrogante e mal educado, são muitos os pilotos que dele têm más recordações. No Dakar nunca praticou o ancestral espírito do mesmo, a entreajuda, optando sem hesitar e sem quaisquer escrúpulos por deixar plantados nas dunas ou nas estepes quem precisava de auxílio.
Ricardo Leal dos Santos foi um dos muitos pilotos que tiveram razões de queixa de Schlesser – ou dos seus muchachos que, invariavelmente, alinhavam pela mesma bitola do chefe de fila. São dele as palavras que se seguem, por demais ilustrativas dos seus “encontros imediatos” com os carros “do senhor Jean- Louis”: “Esta etapa, tal como a anterior, foi marcada por muito pó e muito calor.
Hoje partindo mais à frente, já não tive tantas ultrapassagens para fazer, mas isso voltou a acontecer de novo com os camiões. Tive de ultrapassar mais de uma dezena deles. Com campo mais aberto, pude ter mais atenção à navegação e já me perdi muito menos do que ontem, mas a etapa era muito manhosa. A cena mais caricata, e por sinal bastante infeliz, passou-se com o buggy pilotado pelo Thierry Magnaldi, que não esteve com meias medidas. Deu-me duas buzinadelas, eu comecei a abrandar e levei logo uma cacetada por detrás. Eu percebo que ele estivesse com pressa, mas há limites para tudo. É a terceira cena que tenho na minha carreira com os carros do senhor Jean-Louis. Em 2003, o Serviá ia acabando com o meu Dakar de quad. Tive de ser assistido na pista e o meu quad ficou quase desfeito. Mesmo assim, consegui levá-lo até ao fim. No Master Rally, na Rússia, foi o próprio Schlesser que também encostou o buggy à traseira do meu quad, numa zona onde eu não tinha hipótese de encostar mais cedo, como se pode ver pelas imagens da televisão. Parece que tenho mel”.
O Senhor das pistas
Jean-Louis Schlesser foi um piloto capaz de ganhar em todos os tipos de terreno. Desde as areias africanas às provas de gelo e de ralis o francês passou também com sucesso pelas pistas. Sem falar das suas experiências nos monolugares, em especial no seu início de carreira, antes de se dedicar a tempo inteiro às provas mundiais de TT, nomeadamente ao Dakar, Schlesser passou com distinção nas provas com carros de turismo e de sport. Em 1985 venceu o Campeonato de França de Turismo, com um Rover Vitesse da Tom Walkinshaw Racing (TWR), a mesma equipa com que, ainda nesse ano, correu no Campeonato do Mundo de Sport, ao volante de um Jaguar XJS. E com que, em 1986, fez algumas provas do BTCC, novamente com o Rover.
Mas foi quando se juntou à Sauber-Mercedes, em 1988, que escreveu as suas melhores páginas nas pistas. Logo nesse ano, além de ganhar a Supercup (competição de sport-protótipos que substituiu o lendário DRM), foi segundo no Mundial de Sport, título que conquistou nos dois anos seguintes 1989 e 1990, fazendo equipa com Mauro Baldi. Em 1991, ainda na Sauber- Mercedes, correu ao lado de Michael Schumacher.
Schlesser fez por várias vezes as 24 Horas de Le Mans. Em 1981, foi segundo com um Rondeau M379C/Ford, partilhado com Philippe Streiff e Jacky Haran e, em 1983, terminou em décimo com um Porsche 956. Ainda com um Porsche 956/962, em 1982 e 1984 desistiu e não alinhou na edição de 1985, depois de uma colisão durante os treinos, entre Kenny Acheson e Dudley Wood. Em 1986, alinhou em Le Mans com um Jaguar da TWR, partilhado com Derek Warwick e Eddie Cheever, abandonando na sequência de um acidente devido a um furo.
Depois da TWR, correu em 1987 com a Kouros Racing Team, fazendo apenas a prova de Spa com Mike Thackwell e ao volante de um Sauber C9/Mercedes, terminando em sétimo. Este resultado garantiu-lhe um acordo a tempo inteiro com a Sauber/Mercedes logo a partir de 1988. Neste ano, recusou correr em Le Mans, por a considerar uma pista demasiado perigosa! Vencedor de quatro provas do Mundial de Sport em 1988, foi campeão no ano seguinte com outras cinco vitórias – tendo sido obrigado a regressar a Le Mans, que não pontuava para o campeonato e onde foi quinto, fazendo equipa com Jean-Pierre Jabouille e Alain Cudini. Em 1990, fazendo equipa com Mauro Baldi, repetiu o título, com mais seis triunfos, ao volante do Sauber C11/Mercedes. No ano seguinte, com Jochen Mass, não ganhou nenhuma prova subindo apenas duas vezes ao pódio. Voltou a Le Mans, assinando a pole em conjunto com Mass e Alain Ferté, no novo Sauber C291, mas a quebra do motor levou-o ao abandono, na que foi a sua última participação na prova francesa.
Em 1994, venceu a primeira edição da Classic Rally Masters, na Corrida dos Campeões (RoC), com um Porsche 911 pré-1965. Nas pistas geladas, ganhou em 1992 as 24 Horas de Paris, bem como, em 2000, a Super Final do Troféu Andros no Stade de France.
Jean-Louis Schlesser nunca foi um cavalheiro. Nem quando era o namorado de Jutta Kleinschmidt, na altura em que ela pilotava um dos seus buggies – a relação azedou de tal forma, porque a senhora era incapaz de o seguir no deserto, que terminou rapidamente… pouco antes da mesma senhora vencer o Dakar, em 2001, ao volante de um Mitsubishi Pajero.
Arrogante e mal educado, são muitos os pilotos que dele têm más recordações. No Dakar nunca praticou o ancestral espírito do mesmo, a entreajuda, optando sem hesitar e sem quaisquer escrúpulos por deixar plantados nas dunas ou nas estepes quem precisava de auxílio. Ricardo Leal dos Santos foi um dos muitos pilotos que tiveram razões de queixa de Schlesser – ou dos seus muchachos que, invariavelmente, alinhavam pela mesma bitola do chefe de fila.
São dele as palavras que se seguem, por demais ilustrativas dos seus “encontros imediatos” com os carros “do senhor Jean-Louis”: “Esta etapa, tal como a anterior, foi marcada por muito pó e muito calor. Hoje partindo mais à frente, já não tive tantas ultrapassagens para fazer, mas isso voltou a acontecer de novo com os camiões. Tive de ultrapassar mais de uma dezena deles.
Com campo mais aberto, pude ter mais atenção à navegação e já me perdi muito menos do que ontem, mas a etapa era muito manhosa. A cena mais caricata, e por sinal bastante infeliz, passou-se com o buggy pilotado pelo Thierry Magnaldi, que não esteve com meias medidas. Deu-me duas buzinadelas, eu comecei a abrandar e levei logo uma cacetada por detrás. Eu percebo que ele estivesse com pressa, mas há limites para tudo. É a terceira cena que tenho na minha carreira com os carros do senhor Jean-Louis. Em 2003, o Serviá ia acabando com o meu Dakar de quad. Tive de ser assistido na pista e o meu quad ficou quase desfeito. Mesmo assim, consegui levá-lo até ao fim. No Master Rally, na Rússia, foi o próprio Schlesser que também encostou o buggy à traseira do meu quad, numa zona onde eu não tinha hipótese de encostar mais cedo, como se pode ver pelas imagens da televisão. Parece que tenho mel”.
O erro que não cometeu em Monza
Jean-Louis Schlesser teve dois momentos na sua careira em que passou pela F1. Uma passagem tão fugaz quanto polémica – e, apenas por isso, ficou na história da F1. Ou, melhor dizendo, no folclore da F1. Sobrinho de Jo Schlesser, o grande amigo de Guy Ligier que morreu carbonizado num acidente no GP de França de 1968, a sua carreira teve uma breve ‘estadia’ nos monolugares, quando competiu na F3. Depois em 1983, tinha ele já 35 anos – embora, nessa altura quando ainda pensava que a idade não era um posto, dissesse que tinha nascido em 1952, quatro anos mais tarde do que na realidade aconteceu! – tentou qualificar-se para GP de França, sem conseguir, ao volante de um medíocre March- RAM 01/Ford Cosworth. Uma desilusão completa para si, pois, uma semana antes, em Brands Hatch, com o mesmo carro tinha terminado no sexto lugar a Corrida dos Campeões, depois de largar de 13º e último. Assim, decidiu esquecer-se que a F1 existia.
Porém, em 1988, a Williams deu-lhe uma segunda oportunidade de entrar numa grelha de partida de um GP de F1. Nesse ano, a McLaren, com Ayrton Senna e Alain Prost, estava a ganhar todas as corridas e, no GP de Itália, todos esperavam que esse domínio continuasse. Mas isso fez esquecer por completo a presença, no 22º lugar da grelha de 26 carros, de um neófito que, um dia antes de completar os 40 anos, ia finalmente estrear-se na F1. O seu nome era Jean-Louis Schlesser e estava ao volante do Williams FW12/Judd habitualmente pilotado por Nigel Mansell, que estava doente.
Na corrida, Senna tomou a dianteira logo na partida, depois de ter feito a pole position, e seguia calmamente a caminho de novo triunfo, seguido à distância pelos dois Ferrari de Gerhard Berger e Michele Alboreto. Quanto ao bom do Schlesser, tinha conseguido subir até ao 11º lugar. No início da penúltima volta, foi apanhado pelo líder, que procurou dobrá-lo, pela segunda vez na corrida. Percebendo a aproximação de Senna, no final da reta da meta, deixou espaço para ele passar pelo interior da curva da chicane do Rettifilo mas, no processo, bloqueou os travões…. e acertou em cheio no McLaren, que fez um pião e ficou plantado na areia da escapatória, com um furioso e estupefacto Senna lá dentro. Schlesser continuou e terminou a prova em 11º, correndo depois a pedir umas chorosas desculpas ao brasileiro, embora não concordasse mesmo nada quando lhe disseram que a culpa era toda sua. Este incidente, ridículo e que bem espelhou a postura de Schlesser em corrida, permitiu uma emocionante ‘dobradinha’ da Ferrari em casa, duas semanas depois da morte de Enzo Ferrari. E impediu que a McLaren ganhasse todos os 16 GP dessa temporada.
Palmarés no Dakar
21 participações; 2 vitórias à geral; 7 vitórias à classe (2WD); 15 vitórias em etapas
1984 – Paris – Dakar: Abandono (Lada)
1986 – Paris – Algiers – Dakar: Abandono (ARO 4×4)
1990 – Paris – Tripoli – Dakar: DC, c./Alain Lopes (Mitsubishi Pajero)
1991 – Paris – Tripoli – Dakar: Abandono, c./Jean Da Silva (Buggy-Schlesser-Original)
1992 – Paris – Sirte – Cape Town: Abandono, a solo (Buggy-Schlesser- Original)
1993 – Paris – Dakar: 14º (1º 2WD), a solo (Buggy-Schlesser-Original X.301)
1994 – Paris – Dakar – Paris: Abandono, a solo (Buggy-Schlesser-Original X.401)
1995 – Granada – Dakar: Abandono, c./ Bob Willis (Buggy-Schlesser-Original)
1996 – Granada – Dakar: 14º (1º 2WD), c./ Bob Willis (Buggy-Schlesser-SEAT X 903)
1997 – Dakar – Dakar: Abandono, c./ Philippe Monnet (Buggy-Schlesser-SEAT X 902); 1 v. em etapas
1998 – Granada – Dakar: 5º (1º 2WD), c./ Anne-Chantal Pauwels (Buggy-Schlesser Original X 903)
1999 – Paris – Granada – Dakar: 1º, c./P. Monnet (Buggy-Mégane-Schlesser- Renault X 301); 2 v. em etapas
2000 – Paris – Dakar – Le Caire: 1º, c./ Henri Magne (Buggy-Mégane-Schlesser- Renault X 301); 2 v. em etapas
2001 – Paris – Dakar: 3º (1º 2WD), c./H. Magne (Buggy-Mégane-Schlesser- Renault X 301) 7 v. em etapas
2002 – Arras – Madrid – Dakar: Abandono, c./H.Magne (Buggy-Mégane- Schlesser-Renault X 301)
2003 – Marseille – Sharm El Sheikh: Abandono, c./Jean-Marie Lurquin (Ford Raid X 202)
2004 – Téléfonica Region d’Auvergne – Dakar: 3º (1º 2WD), c./J.M.Lurquin (Ford Raid X 202)
2005 – Téléfonica Barcelona – Dakar: Abandono, c./François Borsotto (Ford Raid X 822)
2006 – Lisboa – Dakar: 6º (1º 2WD), c./F. Borsotto (Ford Raid X 824); 1 v. em etapas
2007 – Lisboa – Dakar: 3º (1º 2WD), c./ Arnaud Debron (Buggy Original X 826); 2 v. em etapas
2008 – Lisboa – Dakar: Prova anulada (c./A.Debron, Buggy-Schlesser-Ford).
Grande piloto …..mas muito má personalidade onde valia tudo para ganhar .