Baja Portalegre 500: A crónica de José Megre em 1987
Pioneiro é uma palavra de sentido vago numa sociedade de tecnologia massificada, onde tudo está inventado e onde as condições de vida são sensivelmente melhores do que há apenas três ou quatro décadas atrás. No dicionário Priberam da Língua Portuguesa, um pioneiro é “alguém que desbrava regiões incultas, que vai à frente, que prepara os resultados futuros”. E no caso do todo-o-terreno em Portugal, não são muitas as personalidades além de José Megre ou Pedro Villas Boas que podem receber o rótulo de pioneiros, desbravadores, visionários.
É por isso que em vez de enumerar à distância as vicissitudes de colocar de pé uma prova como o ‘1º Rali Maratona Portalegre’ no ido ano de 1987, talvez seja mais útil (e justo) dar a palavra ao ‘pai’ do TT nacional. A crónica que segue foi escrita e publicada por Megre no livro Aventura 87, como rescaldo da primeira edição da prova alentejana, publicada pela primeira vez no jornal AutoSport em 2011, que recordamos agora, 35 anos depois.
“É difícil escrever objetiva e desapaixonadamente sobre uma prova a que se está ligado desde o seu início. A criação de alguma coisa nova, mesmo que seja idêntica no seu espírito a outras que já existem, não é fácil e necessita de uma grande motivação e dedicação.
600 quilómetros disputados ao cronómetro do princípio ao fim, para automóveis e motos, qualquer percurso secreto sinalizado com flechas, quatro pontos de assistência sem neutralização. É este o segredo das provas tipo Baja de que a nossa Maratona foi o primeiro exemplo em Portugal.
Tivemos que adaptar a ideia ao nosso País, encontrar os apoios logísticos, financeiros e pessoais necessários, torná-la aceitável pelas autoridades federativas e ‘vender’ a ideia aos concorrentes, patrocinadores e órgãos da comunicação social. O enorme puzzle que constitui a montagem da prova ao nível técnico, desde a rede rádio, os meios aéreos, a articulação de todos os controlos, a balizagem dos caminhos, a montagem do dispositivo no dia da Prova, o policiamento dos controlos de intersecção, as equipas dos controlos de passagem (alguns horários para poder neutralizar a prova em caso de emergência), os postos de controlo de cruzamento com a estrada de alcatrão, a colocação dos Bombeiros, GNR e médicos e, acima de tudo, os guardas dos caminhos, voluntários locais, ambulâncias, de cuja responsabilidade dependia o fecho do circuito, ou seja, impedir que outras viaturas se intrometessem no itinerário da prova. Foram várias noites a pensar na melhor maneira de o fazer, muitas viagens a Portalegre para contactar os responsáveis pelas autarquias e os clubes locais, inúmeros contactos pessoais, «briefings» com os intervenientes, explicações de vários tipos, reconhecimentos constantes do percurso.
É que ninguém tinha visto qualquer coisa de parecido com o que se ia realizar. Tivemos de explicar a ideia a autoridades intervenientes, concorrentes e membros da organização. Em muitos, senti muito cepticismo. Mas, junto com o Pedro (ndr, Villas Boas), conseguimos ultrapassar as várias dificuldades e realizar com sucesso 1.° Rali Maratona em Portugal. Portalegre foi o distrito eleito pelos apoios de vária natureza que ali conseguimos.
Uma outra dificuldade que não dimensionámos à partida foi a alteração do estado dos caminhos devido às chuvas que se abateram sobre a região nos três meses que antecederam a prova. Várias vezes mudámos o percurso. O Pedro Villas Boas passou horas e horas a tentar arranjar a solução, ensaiando várias hipóteses e ficando longos períodos preso no lamaçal, donde só sairia altas horas da noite auxiliado pelos grandes entusiastas locais. Até ao último dia hesitámos em dois pontos que acabaram por ser ‘tratados’ à última hora, mas que se traduziram num sucesso! Um deles foi a passagem da Ribeira de Seda, que variava de altura todos os dias. Acabou por ser necessário descarregar na véspera da prova pedras no leito do rio, trabalho desenvolvido pela Câmara de Alter, o que permitiu a passagem dos carros de duas rodas motrizes mas que dificultou o equilíbrio dos motociclistas. O outro foi uma Ribeira que desagua na Barragem do Maranhão, próximo de Benavila. Talvez o ponto mais crítico da Prova, pois a única solução era introduzir 17 km de alcatrão, o que queríamos evitar a todo o custo. Tivemos vários problemas à passagem desta ribeira quando fazíamos os reconhecimentos e, inclusive, no dia em que marcávamos com setas o itinerário. Acabámos por resolver o assunto numa visita de emergência ao Presidente da Câmara de Avis, que em meia dúzia de horas construiu uma verdadeira auto-estrada no local! Ao menos, os habitantes também beneficiaram!
A lama acabou por ser o grande quebra-cabeças, pois estava em jogo a realização da prova já que era difícil neutralizá-la no caso de ninguém passar por um determinado local. Em muitos sítios houve grandes dificuldades que não prevíamos, pois a passagem de vários carros fazia abater as estradas em troços onde nunca pensámos que tal sucedesse. Por isso, só (cerca das 19h30) quando a primeira moto e o primeiro carro (cerca das 22h00) cortaram a meta respirámos aliviados e nos passou o peso das nossas preocupações. Dei nessa altura um abraço ao Pedro, que só ele e eu compreendemos.
Efetivamente, várias vezes durante o dia tivemos de alterar pequenas passagens e algumas foram os próprios concorrentes que as encontraram naturalmente. As máquinas das várias Câmaras e tractores particulares andaram todo o dia a acudir aqui e ali para desenterrar automóveis e jipes, ficando muitas vezes eles próprios atolados. Nós próprios, e para grande gozo dos concorrentes, ficámos irremediavelmente atascados, o Pedro e eu, cada um no seu jipe, às 6 da manhã, quando tentávamos socorrer alguns concorrentes ainda em situação difícil. Só com a ajuda do comandante Belo Morais e três enormes carros de Bombeiros com guincho conseguimos sair da posição difícil em que nos encontrávamos ainda às 10 da manhã! Quase não tive tempo de me despedir do Patrick Zaniroli (piloto e organizador pioneiro do TT francês, ndr) e tomar banho antes da distribuição de Prémios. Foi a vingança dos concorrentes que sofreram a dureza da Maratona! É, pois, evidente que não poderemos continuar a correr este risco. Em 1988 iremos organizar a prova no Verão, livre de lamas e atolanços, permitindo, assim, aos duas rodas motrizes uma hipótese maior de se classificarem honrosamente. E depois, as provas do tipo Baja são todas ao sol, com calor, pó e uma grande dureza no terreno!
Um facto relevante no 1.° Rali Maratona de Portalegre foi o número de inscritos: 230 no total, com um leque enorme de pessoas, desde o endurista de primeiro plano ao veterano piloto de Ralis. Idades dos 18 aos 50, homens e mulheres, com e sem qualquer experiência de competição, tanto em automóveis como nas motos. As viaturas inscritas iam desde o Citroën Mehari e 2 CV até ao Ford RS200 (que não alinhou), o Peugeot 205 GTI, o Citroën Visa Chrono, passando pelos UMM normais e muitos carros com mais de 15 anos. Um verdadeiro espetáculo!
E se nas motos os vencedores foram os previsíveis, embora houvesse grande luta do princípio ao fim, nos automóveis só algum tempo depois de chegar o 1.° concorrente se soube quem ganhara a prova! Um duelo de mais de 12 horas seguidas entre uma viatura de duas rodas motrizes e dois jipes, um deles completamente de série, que viria a ganhar! Não poderíamos pedir mais! Tudo correu bem melhor do que poderíamos imaginar! Julgo que concorrentes, patrocinadores e todos os membros da Organização que tanto nos ajudaram ficaram satisfeitos. Vamos lamentar bastante não poder organizar, em 1988, a prova internacional em conjunto com as motos, mas o facto é que tudo fizemos para o conseguir, sem sucesso. A evolução do nosso Rali Maratona seria a da internacionalização, tentando bater o número de inscritos da 1ª edição. Por razões diversas, que não interessa aqui referir, adiámos o projeto para 1989.
Mas contamos ainda trazer a Portugal, no próximo ano, alguns convidados estrangeiros para observarem a prova a título reservado, tal como fizeram este ano, em que compareceram para além de Zaniroli, Martine de Cortanze, motociclista do Dakar, François Vinent, piloto, braço direito de Sabine e ex-organizador da Baja Espanhola, e ainda o piloto Jean-Pierre Kurrer. Quanto à prova em si, ela poderá ser apreciada pelo evoluir da classificação. Nos automóveis a liderança mudou várias vezes. Ernesto Neves/Carlos Barbosa, vítimas de furos sucessivos devido a um problema de suspensão; Francisco Romãozinho/Mário M. da Silva com um problema num apoio do motor, os irmãos Mello Breyner com uma avaria elétrica; Pedro Cortez/Nuno Coelho, atolados quase uma hora; e, finalmente, Santinho Mendes e o seu filho, batidos em cima da meta por não se terem apercebido que António Bayona se aproximava perigosamente, para vir a ganhar a prova na última meia hora! Para lá destas histórias pelo 1º lugar, temos de realçar as performances de várias equipas que aqui se revelaram e que conquistaram os dez primeiros lugares da geral. Quase todos desconhecidos, na maioria a disputar a sua primeira prova. Para completar os casos mais inéditos, não podemos esquecer o Fiat 127 normal que completou toda a prova e o piloto R. Casimiro que disputou a prova sozinho de automóvel!
Os resultados demonstraram a própria filosofia dos Ralis Maratona: qualquer um pode ganhar, qualquer carro pode acabar, e os privados têm uma grande palavra a dizer, pelo nivelamento que se produz nos concorrentes. Que enfrentam quase 600 km ao cronómetro, em percurso secreto, sem paragens ou neutralizações, onde todo o tempo perdido em assistências, reabastecimentos, avarias e enganos do percurso contam para o tempo gasto na prova e, por isso, para a classificação final.
Nas motos, as surpresas não terão sido tantas e revelaram a verdade desportiva da competição e os melhores pilotos nacionais, amadores e enduristas. Em primeiro lugar, devemos citar e apreciar o esforço físico e moral dos pilotos que completaram a totalidade da prova, ou seja, a solo, sem um segundo piloto a repartir a condução, sendo assim obrigados a conduzir, sem parar, mais de 10 horas. Mesmo assim, alguns deles conseguiram ótimos resultados na classificação geral: António Lopes (Honda) 2º lugar, João Lopes (Honda) 3º, Bernardo Corvinho (Yamaha) 4°, Bernardo Vilar (Yamaha) 7° e vários outros dos nossos melhores nomes do Enduro. António Lopes, ao fim da primeira volta, ocupava mesmo o 1° lugar da geral, a um minuto da dupla Paulo Marques/Marcos Carvalho, em Aprilia, que viriam a vencer a prova brilhantemente com 11 minutos de avanço sobre o 2º classificado, António Lopes, que conseguiria 33 minutos de avanço sobre o seu primo, João Lopes.
Para nós, organizadores, a prova das motos foi um sucesso. Sem acidentes de realce, agrupou motociclistas de várias idades e origens no desporto motorizado. Por exemplo ‘Mêquêpê’ e Manuel Costa Félix, nossos companheiros dos primeiros passos no todo-o-terreno, ocupavam um brilhante 9º lugar da geral ao fim da 1ª volta e, que se não fosse um lamaçal a poucos quilómetros do final, teriam atingido um esplêndido6º da geral. Quase todos pareceram ter gostado do que lhes tínhamos proporcionado e raros foram os pilotos que não nos felicitaram no final. Note-se ainda que o vencedor das motos completou a prova em 9 horas e 16 minutos, à média de 60 km/h, enquanto o melhor carro, o Mitsubishi de Baiona, levou mais duas horas e 40 minutos, não passando de uma média de 46 km/h. (…)
Depois de tudo acabar, o vazio que se criou foi mais forte que o alívio que senti por tudo ter corrido bem. E, imediatamente, me veio à cabeça a vertigem de para a próxima época fazer isto e aquilo de outra maneira, de endurecer, de internacionalizar, de corrigir os erros, de fazer vibrar mais concorrentes, o público, todos os entusiastas e os órgãos da Comunicação Social. Fiquei contente, pois achei que o Rali Maratona de Portalegre marcou uma nova era do automobilismo e motociclismo de competição em Portugal. Para 1988 queremos mais de 300 concorrentes! Precisamos de todos para afirmar definitivamente a nossa prova!”