WRC, Rali Sanremo 1986: Markku Alen graças a Cesare Fiorio
Nada foi normal no Rali de Sanremo de 1986. E o que deveria ser um “duelo franco-italiano”, depressa se transformou na ‘bronca da desclassificações dos Peugeot’ e em mais um triunfo de Markku Alen, mas agora ‘graças a Fiorio.
Pelo menos, foi assim que o AutoSport relatou o que sucedeu nas estradas italianas, nesse mês de Outubro do ano de 1986. Na Primeira Etapa, correu tudo de acordo com o esperado –e, uma vez mais, como noutras ocasiões ao longo da temporada, assistiu-se a uma luta cerrada entre os homens dos Lancia Delta S4 e os do Peugeot 205 Turbo 16. Enfim, o tal ‘duelo franco-italiano’ elevado ao seu mais alto nível. E com vantagem para Andrea Zanussi que, com um dos Peugeot, comandava na frente do seu colega de equipa, Bruno Saby O primeiro dos Lancia era Massimo Biasion e estava em terceiro lugar. Tudo começou, então, a conjugar-se para o desfecho que se seguiu… e para o qual confessadamente Fernando Petronilho tinha sido alertado: ‘Vais ver que até ao fim do rali ainda vai explodir uma ‘bronca’ monumental. Aguarda…’
Petronilho aguardou. Viu desistir, na Segunda Etapa, Timo Salonen e Markku Alen atrasar-se. Mas, no ‘finalzinho’, o desfecho pendeu exatamente para… Alen, ‘graças a [Cesare] Fiorio’, então o diretor desportivo da Lancia. Por isso, a legenda da foto na página de abertura da reportagem em que se viam ‘Alen e Kivimaki no pódio para celebrar uma vitória que tinha muito pouco a festejar’.
E com razão pois, apesar de se aguardar ‘com um certa curiosidade a edição desse ano do rali Sanremo’, onde ‘a Peugeot, já detentora do título mundial desde os Mil Lagos’ ia jogar a casa do adversário de toda a temporada, o resultado final não foi o esperado. Até porque, no que dizia respeito aos Pilotos, tudo estava em aberto, entre Juha Kankkunen (Peugeot) e Markku Alen (Lancia).
As imagens futebolísticas usadas por Petronilho espelham bem o que sucedeu: ‘quando o ‘encontro’ decorria já na sua fase final, eis que o ‘árbitro’ [FIA] decidiu ‘expulsar’ a equipa adversária [Peugeot] do ‘relvado’, ficando uma única [Lancia] dentro das ‘quatro linhas’.
Mas, ‘como este ‘jogo’ só terminava quando a equipa ‘bem comportada’ [Lancia] marcasse um ‘golo’ e perante todo um ‘meio terreno’ desguarnecido [sem adversários], o ‘treinador’ [Cesare Fiorio] decidiu operar uma verdadeira revolução tática, passando o ‘avançado’ [Massimo Biasion, que liderava no início do último dia] para ‘guarda redes’, não tocando no ‘meio campo’ [Dario Cerrato], mas permitindo que o ‘guarda redes’ [Markku Alen] surgisse agora a frente para fazer um ‘golo’ [vencer a prova] que, de outra forma, parecia estar totalmente fora do seu alcance.’
Portanto, depois do domínio da Peugeot, no início, ‘impondo a sua maior potência nas difíceis estradas de asfalto que rodeiam [a cidade de] Sanremo’, a partir do momento do ‘primeiro desequilíbrio’ [o troço que foi anulado e penalizou os Peugeot de Saby e Zanussi] e, mais tarde, após a exclusão dos Peugeot, a Lancia ‘ficou com a faca e o queijo na mão, fazendo a ‘sandwich’ que muito bem quis, acabando o vencedor por ser encontrado por via ‘administrativa’, sendo de saudar a grande disciplina tática de que [Massimo] Biasion deu mostras, depois de ser espoliado da sua segunda vitória no Mundial e esta precisamente em terras italianas.’
Para o AutoSport, o final do rali de Sanremo ‘foi uma noite sem história’ e onde ‘foram protagonistas algumas cenas verdadeiramente incríveis’ (..) ‘que acabaram por deturpar uma classificação que seria totalmente diferente sem esses condicionalismos.’ Afinal, esse Mundial de 1986 bem pode colocar-se dentro daquele ditado que diz que ‘quem nasce torto, cedo ou nunca se endireita.’ E, apesar deste desfecho ‘artificial’ do Sanremo, Kankkunen sagrou-se mesmo Campeão do Mundo de Pilotos, na frente de Markku Alen.
A bronca que afastou os Peugeot
A Peugeot vencer em Itália, terra da Lancia, era como se se metesse uma… lança em Itália! Pois iria ser isso mesmo que iria suceder, não fosse terem sido descobertas piedosas e convenientes anomalias nos… Peugeot 205 Turbo 16. Desta forma, o pódio de chegada em Sanremo foi todo, imagine-se!, ocupado por Lancia… Delta S4. O AutoSport viu assim a ‘coisa’ – uma das mais estranhas que aconteceram na História do WRC (ou, já agora), dos ralis).
“A desclassificação da Peugeot”
Era este o título – sem mais nada, além da descrição puramente jornalística da questão. Nada de palavras como ‘bronca’, ‘vergonha’, ou algo do género. Não senhor, que disso não reza nenhuma das duas páginas escritas sobre o assunto e assinadas por Fernando Petronilho – que, muitos anos mais tarde, numa entrevista a propósito da sua passagem como Diretor do AutoSport, assumiu ter sido esse um dos seus piores e mais penosos momentos na sua longa carreira de jornalista, quase sempre ligado aos ralis.
Factualmente, os Peugeot foram impedidos de iniciarem a derradeira Etapa, ficando-se pelo final da 3ª. Nessa altura, estava tudo em aberto, na luta pela vitória, com Juha Kankkunen – que liderara entre as PEC 16 e 29 – sozinho contra os Lancia de Miki Biasion e Markku Alen, enquanto, mais atrás, na luta pelo 4º lugar, estava outro Peugeot, o de Andrea Zanussi. Bruno Saby estava muito atrasado, depois de ter passado brevemente pelo comando da prova. E Timo Salonen tinha mesmo abandonado, após despiste.
Depois de ‘uma noite de merecido repouso’ e de ‘uma manhã de quinta-feira (…) cinzenta’, nada fazia prever o que, depois da habitual reunião dos comissários desportivos, iria suceder ‘à hora de almoço’, quando rebentou aquilo que, enfim, Petronilho chamou de ‘a bronca’: ‘os comissários desportivos tinham decidido pedir aos comissários técnicos uma inspeção mais cuidadosa aos três Peugeot [205 Turbo 16] ainda em prova’. A razão estava bem explícita no segundo parágrafo do comunicado então emanado pelo ‘Colégio de Comissários Desportivos’ e que rezava assim, fazendo fé do ‘processo verbal’ dos Comissários ‘respeitante às verificações exteriores’ [aos mesmos três Peugeot]: ‘os veículos nº 4 6 e 9 estão equipados com saias, contrariando as disposições técnicas dos regulamentos FISA’ ‘impostas pelo Anexo J do Código Desportivo Internacional (art. 5.7.2. saias. Boletim FIA nº 210, mês de Julho de 1986)’.
Os três carros foram objeto de ‘uma verificação mais aprofundada’, durante a qual os comissários ‘tiraram fotografias à parte inferior das viatura e às zonas laterais.’ Foram ouvidos ‘Jean Todt e Philippe Jarry, representando a Peugeot Sport’. E, poucos depois das 17h00, veio o comunicado oficial em que, no final do mesmo e enunciados e explicados todos os considerandos e fatos, ‘os veículos [verificados] [eram] excluídos da competição com efeito imediato.’ Ou seja, os Peugeot foram afastados do rali de Sanremo e isso abriu o caminho para o domínio da Lancia, que ficou na frente da prova, através de Miki Biasion.
Inconformada, a Peugeot não ficou parada, com todo o seu ‘staff’ em grandes movimentações. Foi feito um apelo, em que a marca francesa garantia que ‘as tão famosas ‘saias’ não eram mais do que simples proteções contras as pedras e negando que se tratassem de saias.’ Na realidade, a Peugeot nada mais podia fazer do que emitir o sue ponto de vista, como defesa contra as tais ‘saias’ – que, na verdade, segundo Martin Holmes, reputado especialista em ralis e jornalista (ainda hoje) do AutoSport, ‘deixavam uma distância ao solo de 8 a 10 cm e não eram flexíveis, apesar de comprimíveis e não tocavam o solo mesmo com um pneu furado.’
O que contrariava as ‘acusações’ da FIA, que via nas tais ‘saias’ uma forma de promover o efeito de Venturi e que ‘qualquer coisa colocada por baixo de um carro podia gerar efeito-solo, pelo que uma peça como esta tinha que ser considerada uma ‘saia’
Isso não deixa de ser estranho pois, de acordo com o tal boletim que interditava as ‘sais’, estas tinham que ser ‘proteções laterais, bem rígidas e fixas’, o que não era o caso do que existia sob os Peugeot. Aliás, a própria marca refutou as razões invocadas para a desclassificação com isso mesmo: ‘as proteções laterais (…) não podem ser consideradas como saias’ (…) porque ‘respeitam a definição de distância ao solo (Artigo 22, parágrafo 2.1 do Anexo J) e, por isso, ‘a fuga aerodinâmica provocada pela distância entre o solo e a parte inferior das proteções laterais (aproximadamente 90 mm) anula todo o efeito Venturi.’
A Peugeot justificou a presença dessas ‘saias’ com o fato de terem ‘como único objetivo assegurar a proteção dos reservatórios de gasolina contra as projeções de pedras ou saídas de estrada acidentais.’ Além disso. Argumentou sobre o absurdo desta questão, ao alertar para que ‘os três veículos foram autorizados a alinharem à partida após a verificação técnica’, numa altura em que tinha já montadas as referidas proteções.
Ora nada disto valeu à Peugeot – e os 205 Turbo 16 foram mesmo afastados, num processo que ainda hoje está por perceber e explicar, mas que deixou uma certeza: a imagem do WRC, nesse ano tão dramático, ficou ainda mais manchada depois do rali de Sanremo.
Antes de encerrarmos a questão, duas curiosidades. Primeira: a Lancia também tinha ‘saias’ semelhantes ara usar durante a prova, mas nunca quis ‘correr riscos’, jamais as montando nos seus Delta S4. Segunda: aventou-se então uma explicação para a desclassificação dos Peugeot, como estando ligada a uma maior potência do 205 Turbo 16, com valores (540 cv, graças a uma pressão de 3 bar dos turbos) que a Lancia estava impossibilidade de atingir e que, na realidade, justificariam a forma como os pilotos dos carros franceses conseguiam andar tão na frente dos Delta quando não tinham problemas ou se mantinham dentro dos limites da estrada…
FICHA DA PROVA
28º Rali Sanremo
10ª prova Campeonato do Mundo – Marcas
11ª prova Campeonato do Mundo – Pilotos
Data: 12 a 18 de Outubro de 1986
Percurso: 2.148,69 km divididos por 4 Etapas. 41 provas de classificação (PEC) previstas (2 anuladas e 4 encurtadas), num total de 562,35 km (486,6 km realmente disputados). Percentagem: 51% de asfalto; 49% de terra
Condições atmosféricas: Bom tempo, calor. Alguma humidade nos troços matinais e noturnos de asfalto.
Inscritos: 125
Alinharam: 118
Terminaram: 38
Principais abandonos: Timo Salonen/Seppo Harjanne (Peugeot 205 Turbo 16), despiste na PEC 13; Jean Ragnotti/Pierre Thimonnier (Renault 11 Turbo), junta de cabeça na PEC 18; Gianni del Zoppo/Loris Roggia (FIAT Uno Turbo), turbocompressor na PEC 1; Marc Duez/Willy Lux (MG Metro 6R4), motor na PEC 1; Jorge Recalde/Jorge del Buono (Audi Coupé Quattro), voluntário
Desclassificados: Juha Kankkunen/Juha Piironen, Andrea Zanussi/Paolo Amati, Bruno Saby/Jean-Pierre Fauchille, todos em Peugeot 205 Turbo 16, após a 3ª Etapa, por irregularidades encontradas nos carros; Tony Pond/Rob Arthur (MG Metro 6R4), excesso de penalização entre controlos.
CLASSIFICAÇÃO
1º Martini Lancia/Markku Alen/Ilka Kivimaki (Lancia Delta S4), 5h31m35s; 2º Jolly Club/Dario Cerrato/Giusepe Cerri (Lancia Delta S4), a 1m18s; 3º Martini Lancia/Massimo Biasion/Tiziano Siviero (Lancia Delta S4), a 1m42s; 4º Austin Rover W.C.Team/Malcolm Wilson/Nigel Harris (MG Metro 6R4), a 7m02s; 5º VW Motorsport/Kenneth Eriksson/Peter Diekmann (VW Golf GTI 16S), a 35m53s (1º Gr. A); 6º Skoda Team/Ladislaw Krecek/Poriovoj Motl (Skoda 130 LR/B), a 56m37s; 7º Jolly Club/Alessandro Fiorio/Luigi Pirollo (FIAT Uno Turbo), a 57m09s; 8º ‘Tchine’/Gilles Thimonnier (Opel Manta 400), a 57m54s; 9º Skoda Team/Svatoluk Kvaizar/Jiri Janecek (Skoda 130 LR/B), a 1h01m38s, 10º Livio Lupidi/Demetrio Davanzo (Renault 5 GT Turbo), a 1h04m41s (1º Gr. N). Classificadas 38 equipas.