Era pré-‘fast food’ do WRC: Ralis com alma…

Por a 18 Abril 2024 13:53

Houve tempos em que os Ralis eram épicos, e as histórias, únicas. Foi a era dourada dos ralis, em que as aventuras se faziam sem receita. Tempos que fazem muitas das lendas que se contam hoje, em que cada prova, era uma epopeia. Talvez estejamos a navegar na nostalgia, mas isso passava-se quando os ralis eram mais do que apenas velocidade.

Há quatro décadas e meia, o WRC desceu pela primeira vez à América do Sul. Esses eram dias em que os ralis do campeonato ainda não eram embalados a pronto, regimentados, todos iguais. Eram tempos em que cada prova tinha o seu carácter próprio, em que os organizadores faziam o que queriam e que pensavam ser o melhor para essas ocasiões.

Os ralis na América do Sul eram tradicionalmente provas de longa distância, que iam de cidade a cidade, em especial sítios onde pilotos como Juan Manuel Fangio deixaram a sua marca.

Em 1970, a Maratona Londres – México ficou como o maior evento de desporto motorizado de sempre e, em 1978, a Vuelta a la America del Sud demorou cinco semanas a dar a volta apenas ao continente sul-americano. Mas, em 1979, as coisas evoluíram e muito aconteceu, ainda nesse ano. Logo em Julho, o Codasur Rally visitou vários países do centro da América do Sul, mas foi parado a meio por causa de problemas com a organização. E, no Brasil, teve lugar um promocional e bem mais ortodoxo evento do tipo dos do WRC.

Tal como o Monte Carlo

Tudo isso levou ao primeiro Codasur Rally, em 1980, que durou seis dias e foi a primeira prova do WRC a ter lugar na região. O elemento transfronteiriço estava lá bem presente. Ao melhor estilo do [Rally] Monte Carlo, havia um percurso de concentração, com partidas da Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, além, é claro, da própria Argentina, convergindo todos os concorrentes para um ponto de encontro central, neste último país. Um nevão pouco usual, impediu os pilotos que vinham da Bolívia e do Chile de chegarem à concentração e, portanto, de participarem na parte desportiva a sério. O ponto de reunião era no norte da Argentina, na cidade de San Miguel de Tucumán. Ainda hoje, a província de Tucumán é um sítio selvagem, o tipo de local adorado pelas provas de “cross-country” – mas era ainda mais bravio há três décadas atrás. O Codasur Rally – mais tarde, Rally da Argentina – teve a base em Tucumán em 1980-1981, outra vez em 1992 e, em 1993, foi o ponto de partida da prova.

Malas perdidas e pistolas apontadas

As minhas primeiras memórias sobre Tucumán foram de pânico. Os funcionários do “check-in” do aeroporto de Buenos Aires enviaram a minha mala para Tandil, um sítio diametralmente oposto a Tucumán. “Não te preocupes. O último avião para Tandil acabou mesmo agora de levantar voo, por isso a tua mala agora só pode voltar para Tucumán!” – disse-me um dos funcionários. O velho aeroporto de Tucumán ficava muito perto do centro da cidade. Nessa altura, ainda não existiam as campanhas contra o ruído e o barulho dos aviões era absolutamente horrível. As companhias aéreas locais usavam os BAC 1-11, que eram incrivelmente barulhentos. Dormir na cidade era espasmódico! Na manhã a seguir, estava desesperadamente à procura do meu carro de aluguer, quando descobri que era um FIAT 500… já cheio com outras pessoas! Felizmente, consegui mudar parta um Ford Falcon, com um tamanho e um estilo muito mais apropriados. A América do Sul não é um sítio para viajantes nervosos, mas já nessa altura tinha caráter – e ainda hoje tem.

O rali tinha realmente muito caráter. Então, era o tempo da ditadura militar e era difícil perceber quem era responsável pelo cumprimento da lei, se os polícias, ou os militares. Foi a primeira vez que testemunhei o controlo dos espectadores usando armas. Os tiros para o ar assustavam a multidão. Das quatro vezes em que, num rali, tive uma arma apontada à minha cabeça, três foram na Argentina. Em cada uma, acredito que foi apenas a exibição da tradicional fleuma britânica que os impediu de puxarem o gatilho.

Mais duro que as rochas das montanhas

Os ralis eram muito diferentes nas montanhas selvagens do norte da Argentina. A estrada subiu até aos 3.7’00 metros e as classificativas eram muito rápidas – nesse ano, a mais rápida tinha uma média de 146 km/h! O acesso físico dos carros de serviço era tão difícil, que as equipas por vezes estacionavam as suas carrinhas em pontos de acesso a meio caminho, em vez de o fazerem entre os troços. As classificativas eram chamadas de “Primes”, uma estranha palavra inglesa importada para a América do Sul pelos organizadores do Londres-México.

O Safari, no Quénia, e o Rali de Marrocos eram as únicas duas experiências em semelhantes e tão duras condições, que as equipas oficiais conheciam por altura do Codasur de 1980. E essas equipas eram a FIAT, a Peugeot, a Mercedes e a Datsun.

Antes da prova, era evidente que os reabastecimentos iriam ser limitados, por isso eram precisos grandes depósitos de combustível.

Prevenir o desgaste dos pneus exigia suspensões mais macias, para minimizar o patinar das rodas e a Mercedes mudou dos habituais Dunlop para os Pirelli, que tradicionalmente duravam mais.

Os carros locais, como os Peugeot 504 TN e os pequenos FIAT 128 IAVA, eram homologados especialmente para os pilotos locais poderem participar na prova. Estas novas condições tiveram o seu preço. A Mercedes conheceu uma série de quebras nos semi-eixos. A FIAT perdeu dois dos seus carros com o cárter esmagado após saltos a alta velocidade. O Peugeot do Timo Makinen perdeu uma roda, o Mercedes de Andrew Cowan partiu o motor – todos eles vítimas destas condições tão pouco usuais.

Carlos Reutemann, o herói

Mas, no meio de tantas coisas novas e estranhas, talvez a visão mais chocante para os visitantes tenham sido as multidões de espectadores, nas secções de estrada. Porquê nestes locais? Nos 1.100 km de ligação entre Buenos Aires e Tucumán, os pilotos relataram que nunca encontraram mais de três quilómetros seguidos entre dois grupos de espectadores, em ambos os lados da estrada! E não era por causa dos carros que estavam a competir numa prova do WRC – era porque essa era uma hipótese de verem passar os heróis locais. A estrela desse espetáculo era Carlos Reutemann. Recebia ramos de flores e cestas de fruta das senhoras, idosos queriam apertar-lhe a mão, as raparigas quase lutavam umas com as outras para lhe disputarem um beijo, os jovens corriam a pedir-lhe um autógrafo. E até para os jornalistas mais endurecidos, Reutemann era uma figura impressionante. Ele foi o primeiro vencedor – e piloto! – de Grande Prémio a subir ao pódio numa prova do WRC.

Martin Holmes, in Memoriam

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