WRC: África minha

Por a 22 Janeiro 2020 17:10

Por Martin Holmes

O Promotor do WRC assinou um memorando de entendimento com o governo do Quénia para o regresso do Rali Safari ao WRC e a FIA confirmou a inclusão da prova no campeonato deste ano. Desta forma, está agendado o regresso de uma das mais míticas provas da história do Mundial de Ralis

Há coisas na vida que são bastante mais do que parecem à primeira vista. O final da primeira metade da temporada do WRC terminou com o Promotor do WRC a assinar um contrato-promessa com o governo do Quénia, sob os bons auspícios, nada mais nada menos, que do Presidente da FIA, Jean Todt. O regresso do Mundial de Ralis ao Quénia tem sido uma jogada política levada a cabo pela hierarquia da FIA, já que o desporto motorizado africano está cheio de membros votantes na FIA, e se eles perceberem que as suas causas são reconhecidas pela instituição que gere o desporto automóvel, ficarão do lado do atual regime, quando chegar o momento certo…

E não há causa melhor que a ressurreição do Rali Safari, cuja organização se desmoronou depois da última vez que o rali foi para a estrada no WRC em 2002.

Nas duas últimas décadas, o WRC transformou-se radicalmente, e todos os eventos foram-se adaptando à nova realidade. Um dos medos que resulta desta iniciativa é precisamente o facto das mudanças de formato de um novo rali façam esfumar a alma do Safari tradicional, que ainda hoje os adeptos recordam com saudade.

Já em 2002 o rali foi criticado por se afastar muito do caráter normal do evento nos seus melhores dias, e um novo evento em 2019 seria inevitavelmente ainda muito mais diferente. Alguém poderia achar interessante um Rali Safari com o mesmo modelo dos ralis que atualmente se realizam hoje no WRC?

A tradição do Rali Safari centrava-se no facto de ser disputado numa enorme variedade de terrenos, cobrindo distâncias consideráveis, em percursos que muitas vezes incluíam todo o terreno quase extremo, e um número incrível de dificuldades técnicas, que levam a que os carros tivessem que ser equipados com uma panóplia muito própria de ‘gadgets’ que os salvavam de grandes problemas, como por exemplo passar por rios. Para além disso, o rali disputava-se em estradas abertas ao ‘trânsito’ normal, nem que esse ‘trânsito’ fossem manadas de elefantes ou outros animais quaisquer, para além, claro está, dos veículos locais. Passe o exagero e fique a ideia.

Isto exacerbava o risco de ‘encontros imediatos do 3º grau’ e por isso as equipas oficiais usavam helicópteros para sobrevoar os carros, as assistências, faziam-se, como era habitual no WRC no passado, onde calhasse, e todas estas características exigiam muitos testes (e caros) bem como uma enorme preparação.

Isto era aceitável há 17 ou mais anos, em que as equipas não eram obrigadas a competir em todas as provas do campeonato e os budgets para eventos individuais eram mais flexíveis. Os regulamentos do WRC evoluíram de tal forma desde que o Safari saiu do campeonato, que temos de questionar quanta tradição ainda resta para este regresso da prova…

COMO PODERÁ SER O ‘NOVO’ SAFARI?

Uma das poucas obrigatoriedades da FIA é o facto das secções competitivas terem de ser obrigatoriamente disputadas em estradas fechadas. Mas este nem é sequer o maior desafio para um Rali Safari dos tempos modernos. Há muito que os ralis em África são feitos em estradas fechadas ao trânsito, e já nos últimos anos do Safari realizado no WRC que os organizadores ultrapassavam esta situação ao levar a prova para áreas mais estéreis, e com muito menos probabilidade de haver problemas com tráfego.

No Quénia encontrou-se uma forma diferente de fazer ralis, pois trocaram-se estradas públicas por privadas, pois existem muitas propriedades privadas, e ao que parece há uma enorme variedade de terrenos entre esse tipo de propriedades, em que podem ser feitos troços, especialmente no estado do Delamere, a sul de Nakuru, e os estados de Del Monte, à volta de Thika, que segundo dizem, têm uma grande variedade cénica. Mais desafiante seria encontrar bons troços à volta de um parque de assistência. E o maior desafio de todos seria criar uma boa estrutura para o evento. Os organizadores quenianos estão 17 anos atrasados, embora os fundos estatais possam pressionar as decisões, sendo uma possibilidade ir buscar gente com experiência ao estrangeiro. Sim, porque esperar uma organização do nível das que há hoje em dia no WRC talvez seja pedir muito. Mas isso resolveu-se com mão de obra estrangeira e experimentada…

Custos, ou talvez orgulho, não impediram a importação de especialistas estrangeiros – como por exemplo o nosso país já exporta há muito – que é certamente bem mais seguro do que ter os locais a explorar território desconhecido. É que houve muita coisa importante para decidir, por exemplo estradas que não sejam difíceis demais para os carros de hoje, a logística dos dias de reconhecimentos, os aspetos de segurança da prova, quer seja a nível de espetadores e de tudo o resto. Apesar dos mais recentes ralis no Quénia serem disputados em estradas fechadas, estes eventos não têm atraído muita gente, e alguns lapsos nos fechos de estradas, que em países como o Quénia são um problema muito maior do que nos restantes ralis do mundial.

E estes são aspetos que não têm sido, para já, referidos. Talvez ainda seja cedo demais para isso…

Um Rali Safari novamente no WRC vai atrair certamente muitos espetadores locais, que não deixariam de aproveitar a ocasião, mas lapsos de segurança num novo Rali Safari no WRC seriam catastróficos.

Estará o Quénia pronto para o regresso ao WRC? O Campeonato de África de Ralis da FIA disputa-se a um nível muito baixo, está muito mal promovido, sendo que curiosamente o campeonato do Quénia é uma das ‘series’ nacionais mais ativas no continente. Recuando um pouco no tempo, quando o Rali do Japão entrou no WRC, em 2004, havia grande entusiasmo no seio das equipas, o que era normal, pois não só o Japão é um país muito forte como construtor de automóveis, como na altura ainda existiam as equipas oficiais da Subaru e Mitsubishi, mas quando todos se instalaram no Japão, é que a dura realidade começou a ‘bater’, pois o desinteresse local pelo rali era por demais evidente. De repente, as equipas perceberam que o evento não lhes iria criar o ‘buzz’ que esperavam, e esse é um problema complicado hoje em dia, que está espelhado na dificuldade que o Promotor tem tido para ir para novos países.

É que ‘meter’ lá um rali e estar preparado para esperar que este se estabeleça é obra…

Será que as equipas hoje em dia aceitam um campeonato que inclua um Rali Safari que traga consigo os problemas endémicos de África?

A chegada ao país de muita gente com dinheiro significa que não será nada fácil assegurar que o crime, fraude e corrupção oriunda de maus polícias, serviços fronteiriços, lojas e empresários locais sejam contidos.

Não há muito tempo, no GP do Brasil de F1, pessoal das equipas foi assaltado à mão armada, também não há muito tempo a equipa de promotores do WRC foi assaltada à mão armada na Argentina. No Quénia, pessoal da caravana do WRC era roubada em plena rua, de dia, em Nairobi. É a um mundo destes, mesmo que a esse nível tenha melhorado muito, que as equipas do WRC vão regressar?

E isso leva-nos de volta para a FIA. Mesmo que ultrapassássemos a questão das votações, a ida do WRC ao Quénia coloca uma ênfase muito forte numa questão super importante. É que a taxa de mortalidade nas estradas no país é cerca de 10 vezes maior que a da Grã-Bretanha neste momento, e uma campanha da FIA ajudaria muito. Podemos referir muita coisa, mas tudo parece mais ou menos claro. Vamos ver se vai valer a pena o WRC regressar ao Quénia. Quem precisa mais do Safari no WRC, os adeptos em casa, o Promotor ou somente a FIA?

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