Rali de Portugal: Olhar para o futuro
Num contexto em que ninguém consegue neste momento prever o que vai acontecer com a pandemia de coronavírus, o Rali de Portugal 2020 foi oficialmente cancelado já que as incógnitas são bem maiores que as certezas, e por isso o ACP entendeu que é melhor colocar o foco já em 2021.
O Rali de Portugal vive um momento histórico. A prova do ACP já passou por imensos momentos difíceis, dos quais soube sempre dar a volta, e este cancelamento é mais um, quiçá o mais difícil, que não o mais trágico. Nos seus mais de 50 ano de história, o Rali de Portugal foi cancelado pela primeira primeira vez.
A prova passou pela falta de combustível para se realizar, em 1974, mas foi em frente, passou pela tragédia de 1986, e soube dar a volta a reerguer-se. Uma intempérie descomunal em 2001, foi o pretexto perfeito para os decisores encaixarem o Rali da Alemanha no Mundial de Ralis e deixarem o Rali de Portugal de fora. A nossa prova do Mundial de Ralis tremeu, mas não caiu e voltou mais forte e pujante do que nunca. Sob a liderança de Carlos Barbosa, o ACP MotorSport com Mário Martins da Silva à cabeça, recolocou depois de muita luta o Rali de Portugal no WRC, em 2007, elevando novamente a prova ao pináculo dos ralis.
Depois de ter sido considerado várias vezes no passado o ‘Melhor Rally do Mundo’, em 2015 a prova rumou do Algarve ao Norte e subiu novamente vários degraus de excelência, ao afirmar-se novamente como uma das melhores provas do calendário.
Só mesmo um maldito vírus foi capaz de ajoelhar o Rali de Portugal, que mais uma vez será capaz de ultrapassar todos os obstáculos, e ressurgir mais forte em 2021.
Inevitável
Assim que se ficaram a conhecer as consequências da pandemia, que se percebeu ser quase impossível a realização do Rali de Portugal na data inicialmente prevista, 21 a 24 de maio. A 24 de março, o WRC Vodafone Rally de Portugal 2020, quinta ronda do Campeonato Mundial de Ralis, foi adiado: “Queremos agradecer a todos os nossos patrocinadores e parceiros pela compreensão e esperamos contar com todos numa data posterior este ano”, disse Carlos Barbosa, presidente do ACP, que bem tentou um ‘slot’ para disputar a prova em outubro, mas todos esses esforços se manifestaram infrutíferos, e a prova teve mesmo que ser cancelada: “Face à impossibilidade de levar o WRC Vodafone Rally de Portugal para o terreno na data originalmente prevista, devido à situação global do novo Coronavírus (Covid-19), o Automóvel Club de Portugal envidou todos os esforços para que a mesma tivesse lugar ainda este ano, no final de outubro.
Depois de avaliadas, em conjunto com os parceiros da prova, autarquias e patrocinadores, todas as condições sanitárias e de segurança que o WRC Vodafone Rally de Portugal exige, as mesmas não são compatíveis com a imprevisibilidade que vivemos, além da incerteza da abertura das fronteiras e do espaço aéreo. Assim, o Automóvel Club de Portugal é forçado a cancelar a etapa nacional do Campeonato Mundial de Ralis da FIA 2020.
O Automóvel Club de Portugal lamenta profundamente esta decisão, mas é a única que poderia assumir de forma responsável perante os milhares de adeptos, equipas, autarquias, patrocinadores e todos os envolvidos na prova, responsável em 2019 por um impacto na economia nacional superior a 142 milhões de euros. O Automóvel Club de Portugal solicitou já o regresso do WRC Vodafone Rally de Portugal em maio de 2021”, leu-se no comunicado do ACP.
A decisão foi difícil, mas acertada. Por muito que custe a todos os direta ou indiretamente envolvidos neste fenómeno que é o Rali de Portugal, mover ‘montanhas’ de dificuldades e incertezas para fazer disputar a prova ainda em 2020 poderia criar um problema para 2021, pois a aproximava demasiado o evento de 2020 do de 2021 e neste contexto convém não esquecer que as coisas não dependem só do ACP, mas também das muitas Câmaras Municipais que são parceiras do evento, e o que se pode vir a ter pela frente é demasiado incerto para arriscar ‘investir’ na prova de 2020, podendo com isso comprometer 2021.
A prova já tinha sido apresentada publicamente, o trabalho no terreno estava feito, só havia mesmo alguns detalhes para determinar, e por isso, caso tudo se possa manter inalterável em 2021, a prova está pronta. Agora, resta lutar para derrotar a Covid-19, e ressurgir em 2021 ainda com mais força e motivação.
Histórico
Pela primeira vez desde 2008 que a prova portuguesa não se irá realizar no WRC, competição que neste momento tem provas marcadas apenas para o início de agosto, o Rali da Finlândia, não se sabendo neste momento se a competição se pode realizar como está calendarizada.
A FIA já revelou que vai tentar reagendar provas que ficaram para trás, mas basta um olhar rápido no calendário para perceber que não irá ser um exercício fácil.
Para já, a próxima prova agendada é o Rali da Finlândia, de 6 a 9 de agosto. Faltando mais de três meses, acredita-se que seja possível disputar a prova e que daí para a frente haja condições sanitárias em todos os países que compõem o calendário, mas esse é um dado que ninguém pode garantir neste momento. Há apenas esperança que seja possível.
Para trás ficaram o Rali da Argentina, que com 99.9% de certeza não será realizar este ano, o Rali de Portugal foi agora cancelado. Seguir-se-ia o Rali de Itália, duas semanas depois da prova portuguesa, mas também este foi adiado, o mesmo sucedendo algum tempo depois ao Rali Safari, que regressaria ao WRC depois de uma hiato de 18 anos.
Tendo em conta o que sucedeu em Itália e que ainda está longe de terminar, duvidamos seriamente que a prova italiana se realize, sendo que os responsáveis pelo Rali Safari produziram declarações públicas que mostram vontade de realizar o rali, mas não irá ser fácil, tendo em conta que é uma prova de longa distância.
Depois da Finlândia no início de agosto está agendado para 3 a 6 de setembro, o Rali da Nova Zelândia, de 24 a 27 de setembro, a Turquia, 15 a 18 de outubro, Alemanha. O calendário está previsto prosseguir com o Rali da Grã-Bretanha entre 29 de outubro e 1 de novembro e de 19 a 22 de novembro, o Rali do Japão. Desta forma ficam por encaixar a prova italiana e a do Quénia. Este é o melhor cenário que se pode esperar neste momento. Para saber o que vai acontecer, resta esperar pela evolução da Covid-19.
No meio disto tudo há que não esquecer que as três equipas estão a sofrer, pois têm muitas dezenas de elementos e não há ralis para disputar.
Resta saber a capacidade das equipas para ‘voltarem à estrada’ e se irá existir necessidade de poupar dinheiro. Caso isso seja assim, é perfeitamente possível que as provas de longa distância possam sofrer, mas esse é um tema que ficará para outra altura, já que para já não há muito a dizer sobre isso, simplesmente esperar para saber como vão ficar as coisas.
O esplendor de Portugal
Vai voltar! Este é mais um momento difícil para o Rali de Portugal, um evento que entre 1967 e 2019 construiu a sua história sobre troços tão difíceis quanto espetaculares, percorridos por pilotos e máquinas lendários e, sobretudo, aproveitando ao máximo uma visceral paixão lusitana pelos ralis.
Entre o Renault 8 Gordini que Carpinteiro Albino conduziu à vitória em 1967 no primeiro Rali de Portugal e os WRC “state-of-the-art” de hoje, passou toda uma evolução de cinco décadas que acompanha, em grande parte, a história do “nosso” rali. Uma história alicerçada em duelos míticos sob condições épicas, sempre emoldurados por uma massa de entusiastas que, ao longo dos anos, se tornou uma das imagens de marca do rali. Resultado de uma fervorosa cultura automobilística, a adesão do público português esteve profundamente ligada aos melhores e aos piores momentos da prova. As trágicas imagens do Ford Escort RS 200 de Joaquim Santos a entrar pela multidão acotovelada no troço da Lagoa Azul ainda hoje são o ponto mais negro da história dos ralis portugueses, em pleno contraste com as inesquecíveis demonstrações de entusiasmo do público nacional quando a prova conquistou muito do seu carisma ao longo das míticas classificativas de terra.
Os primórdios
O Rali de Portugal foi pela primeira vez para a estrada em 1967, idealizado e organizado por uma das maiores figuras do automobilismo português, Alfredo César Torres. Tratava-se de uma prova organizada para o Grupo Cultural e Desportivo da TAP e, numa altura em que o formato dos ralis era muito diferente, 53 participantes partiram de diversas cidades europeias, até se juntarem em San Sebastian para iniciarem o percurso comum. Rezam as crónicas que o francês Nicolas dominou quase todo o rali, até uma avaria mecânica entregar a vitória a Carpinteiro Albino. Sempre muito duro e difícil, rapidamente se estabeleceu como um evento exemplarmente organizado, incluindo desde a primeira
edição, uma componente mista (em asfalto e terra) que conferia ao rali um carácter muito especial.
Dessa forma, a presença das equipas de fábrica passou de esporádica a permanente, sobretudo quando a prova integrou o Campeonato da Europa, em 1970. Dois anos depois, preparando a entrada no Mundial, o rali sofreu profundas alterações com a introdução de 31 especiais cronometradas. Nesta altura, o Autódromo do Estoril seria utilizado pela primeira vez para o famoso “slalom” que durante vários anos encerrou a prova. Para não variar, o francês Nicolas dominou até desistir…
O grande palco
Em 1973, o rali iniciou a sua ‘relação’ com o Mundial da especialidade, com César Torres a montar a prova em apenas seis meses.
O ano de 1974 assistiu à revolução dos cravos e a uma crise petrolífera que quase inviabilizou a realização do rali, não fosse uma ‘artimanha’ de César Torres em colaboração com o Governo da altura, que, para impedirem a contestação dos ‘revolucionários’, inventou uma dádiva de gasolina oriunda da Venezuela. Em 1975 a prova alterou a sua designação com a entrada do Instituto do Vinho do Porto como principal patrocinador, apenas retomando em 1994 a parceria com a transportadora aérea nacional. Pelo meio, a triste edição de 1986 em que o trágico acidente de Joaquim Santos provocou a morte de três espetadores e o boicote dos pilotos de fábrica, que se recusaram a continuar perante a falta de condições de segurança. Esta situação acabaria por propiciar o triunfo de Joaquim Moutinho no R5 Turbo.
Em 1987, os protagonistas utilizaram carros do Grupo A e N e a Lancia iniciou uma fase de domínio da prova portuguesa e no Mundial de Ralis. Foi a quinta vitória de Alen, o homem que celebrizou a expressão ‘maximum attack’. Em 1995, por imposição da FIA, o rali assume um formato mais parecido com o atual – três dias de competição e apenas um tipo de piso. Apesar disso, no ano seguinte, o rali não contaria para o Mundial e a ausência de equipas de fábrica ajudaria Rui Madeira a tornar-se o quarto português a vencer à geral.
O adeus a César Torres
Regressado ao Mundial em 1997, o Rali de Portugal e o automobilismo mundial perdem César Torres, o carismático diretor de prova português
e antigo vice-presidente da FIA que deixou, entre muitos outros, como legado o epíteto de Melhor Rali do Mundo, por cinco vezes atribuído à prova portuguesa. O fim do sonho português chega em 2001, já que as péssimas condições meteorológicas aliadas a erros organizativos e à necessidade da FIA em abrir o Mundial a novos países, ditarem o afastamento do Rali de Portugal.
Apenas com estatuto nacional, a prova entra em curva descendente a partir de 2002, ao mesmo tempo que se mudou para a zona de Macedo de Cavaleiros, permitindo a Didier Auriol uma das suas raras conquistas em solo nacional. Até que em 2004 se inaugura mais um capítulo, com a promessa de organizar um novo e mais moderno Rali de Portugal, centrando a prova numa zona com menor tradição, mas com inegáveis vantagens em termos de imagem no estrangeiro e condições de segurança nos troços.
Nova afirmação
Desde que regressou em 2007 ao WRC (em 2008 pertenceu apenas ao IRC) e definitivamente em 2009, o Rali de Portugal depressa se voltou a cotar como uma das provas mais importantes e mais bem organizadas do calendário. O percurso e e a organização nas provas realizadas no Algarve entre 2007 e 2014 maravilhou os concorrentes e a FIA, mas ali sempre faltou algo que sempre marcou o Rali de Portugal, o público.
Com as experiências vividas a norte com o Fafe Rali Sprint a FIA abriu a boca de espanto com a festa que viu naqueles seis quilómetros de troço e não desistiu até convencer Carlos Barbosa a levar o rali novamente para o norte.
Foi o que aconteceu em 2015, com o sucesso que se conhece, pois o público voltou em força às estradas do rali, e desta vez com uma enorme novidade: se até 2001, muitas vezes colocou graves problemas às sucessivas organizações, com o Rali de Portugal a ser vítima do seu próprio sucesso, de 2015 para cá esse mesmo público entendeu na perfeição a mensagem constantemente passada pelo ACP e tem ajudado muito a prova a ser segura e um exemplo para muitas outras. Continua a haver entusiasmo, espetáculo, mas também muita segurança, ao ponto da Delegada de Segurança da FIA, num das últimas provas ter confessado ao AutoSport: “O meu trabalho em segurança e no controlo dos espetadores nos dias de hoje em Portugal é quase um feriado para mim”. Que melhor elogio pode ouvir o público?
Este ano não vai haver Rali de Portugal, mas em 2021 espera-se um regresso a todo o gás e que o mundo já tenha atirado para trás das costas o coronavírus.