ENTREVISTA CESARE FIORIO: IL CAPO
Ao logo dos anos, o desporto automóvel tem conhecido um sem-número de líderes. E se alguns estiveram apenas de passagem, outros houve que, pelo seu carisma, pela forma como viviam a competição e por aquilo que acrescentaram ao espetáculo, terão sempre um lugar na história. Cesare Fiorio pertence a estes últimos. Até não se saía mal ao volante mas cedo percebeu que era a comandar tropas que se sentia realizado. Com a ajuda de um par de amigos e de outros tantos mecânicos, criou uma pequena equipa e converteu a marca Lancia no pináculo das provas de estrada, contribuindo para que modelos como o Stratos, o 037 ou o Delta se tornassem verdadeiros ícones dos ralis. Fiorio tinha um modo muito particular de viver as corridas. Via em cada prova uma batalha mas não se resguardava no quartel. Antes, vivia-a nas trincheiras, ao lado dos seus pupilos, encabeçando cada investida e desenhando a mais impiedosa das estratégias para apanhar o inimigo em falso. Passou pela resistência e pela Fórmula 1, sempre com a mesma atitude porque, segundo o próprio, só faz sentido correr para ganhar e ficar em segundo é a mais temida das doenças por quem abraça a competição.
Ceglie Messapica é uma pequena cidade italiana situada na região da Apúlia, rodeada por terrenos agrícolas e “masserias”,nome usado no sul do país para designar as quintas que se dedicam à exploração agropecuária. Algumas delas associaram a atividade ao turismo, convertendo-se em unidades de alojamento rural. A meia dúzia de quilómetros do centro da cidade, encontramos a Masseria Camarda, propriedade de Cesare Fioiro. É na tranquilidade do campo, entre oliveiras, campos de trigo e árvores de fruto, que o carismático ex-diretor da Lancia e da Ferrari, hoje com 81 anos, passa os seus dias recuperando ainda de um grave acidente sofrido em 2017, quando passeava de bicicleta. No edifício principal, acessível a quem visita a esplendorosa quinta, encontra-se uma espécie de sala museu onde repousam troféus e memórias, verdadeiros testemunhos de uma vida repleta de sucessos. É aqui, rodeado de livros e de fotos e com a carroçaria do Ferrari 640 de Nigel Mansell como pano de fundo, que Fiorio enceta uma viagem ao passado…
A sua ligação aos automóveis começou como piloto. Porque decidiu abandonar o volante e dedicar-se à criação e à gestão da sua própria equipa?
Comecei a correr com 20 anos. Nessa idade, quem gosta de automóveis, é ao volante que deseja estar. Com um Fiat 500, ganhei em dois anos consecutivos as 12 horas de Monza. Adquiri um Lancia Appia Zagato e foi o próprio preparador Zagato que, vendo em mim, algumas qualidades, me colocou nas mãos os Lancia Flaminia Coupé para participar em corridas de turismos. Apesar de alguns resultados interessantes, decidi deixar a pilotagem porque descobri que era melhor como manager do que como piloto (risos).
Estávamos no início dos anos 60. O seu pai era então diretor de comunicação da Lancia e o Cesare conhecia bem os cantos da casa italiana que, na altura, não estava oficialmente envolvida na competição. Como nasceu a equipa HF Squadra Corse e o que tinha em mente quando a criou?
A ideia nasceu quando decidi criar uma equipa muito pequena com dois amigos: um havia sido meu adversário quando corria com os Fiat 500 [Luciano Massoni] e o outro era um empregado da Lancia [Dante Marengo]. O nosso objetivo era obter o apoio da Lancia e tornarmo-nos seus representantes porque, quando a equipa foi criada, não tinha qualquer ligação à marca exceção feita ao facto de esta nos ceder alguns carros de série que íamos modificando para correr com eles ou para os ceder a alguém que quisesse competir. No início, pegávamos nesses carros e levávamo-los a dois grandes preparadores da altura e que muito fizeram por nós, um era o Carlo Facetti em Milão e o outro era o Almo Bozatto em Turim.
Começámos a ganhar provas e a Lancia levou-nos mais a sério, propondo-nos que a equipa usasse as instalações da fábrica. Deram-nos um pequeno espaço, com dois elevadores e nada mais. Na altura, a equipa era formada por um chefe de mecânicos, o Walter Levizzani e dois mecânicos, o Luigi Podda e o Gino Gotta e, com estas três pessoas, começámos a fazer a preparação dos nossos carros. Os sucessos surgiram muito rapidamente apesar de a Lancia não ter propriamente um carro criado a pensar na competição. Depois do Flavia Coupé, o mais próximo disso era o Fulvia Coupé e foi esse o carro que utilizámos contra verdadeiros carros de corrida como o Alpine Renault ou o Porsche 911. Não era fácil andar à frente daquelas máquinas mas a verdade é que conseguimos. A primeira vitória internacional surgiu na Córsega, em 1967, com o Sandro Munari, que era um grande piloto. Nessa altura, corriam ainda para nós o Pauli Toivonen, pai do Henri e o René Trautmann, um campeão francês de ralis. Os sucessos obtidos foram determinantes para que a Lancia nos cedesse mais recursos, nomeadamente mais pessoas e mais equipamento.
Qual foi o momento determinante para que o quartel-general da Lancia considerasse seriamente a competição como parte da sua estratégia de marketing?
Penso que foi o triunfo do Harry Källström no RAC de 69, que lhe permitiu sagrar-se campeão europeu de ralis nesse ano. O feito impressionou o mundo dos ralis porque, ao RAC, iam todas as grandes equipas, era uma prova muito prestigiante e muito difícil e a vitória de uma equipa jovem causou surpresa.
Qual era o piloto que melhor tirava partido das potencialidades do Lancia Fulvia?
O Munari era um fantástico piloto que ganhou muitas provas e conduzia maravilhosamente bem o carro. Mas não foi o único: nós tínhamos um piloto de testes, o Claudio Maglioli que, além de competir como piloto, nos ajudava a desenvolver os carros e que também dominava perfeitamente a condução do Fulvia.
Que importância teve a vitória no Monte Carlo de 1972, não apenas para a equipa mas também para a marca Lancia?
Quando ganhámos o Monte Carlo de 72, sabíamos que o tínhamos conseguido porque havia neve. Em condições normais, era difícil andar à frente dos nossos adversários mas, devido às condições em que a prova se realizou e porque tínhamos bons pilotos e uma boa equipa, conseguimos fazer frente aos Porsche e aos Alpine em todas as classificativas. A vitória teve uma enorme importância para a equipa mas teve também um enorme impacto para a Lancia e para a vida de muita gente. Semanas antes, a 31 de dezembro de 71, a Lancia fechara a linha de produção do Fulvia mandando para casa uma boa parte dos seus operários. Mas, logo após a vitória no Monte de Carlo, surgiram milhares de encomendas e a marca retomou a produção do Fulvia chamando de volta os operários que haviam ficado sem emprego. Foi um acontecimento muito especial. Graças a esse triunfo, a produção do Fulvia foi prolongada por cinco anos.
Foi o pai de um dos carros mais marcantes da história dos ralis: o Lancia Stratos. Como idealizou uma máquina imbatível a partir de um exercício de estilo que Bertone apresentou no Salão de Turim de 1970?
A minha ideia era ter um carro que fosse competitivo em todas as condições. Nós conseguíamos vencer na lama, na chuva, no nevoeiro, na neve, mas não conseguíamos bater os Alpine e os Porsche em asfalto. Quando vi o protótipo no Salão de Turim, pensei imediatamente que, se conseguíssemos por aquele carro a correr em ralis, não teríamos de esperar por condições adversas para ganhar ralis. Seríamos competitivos em todo o tipo de pisos. A história veio a provar que estava certo já que, com o Stratos, ganhámos em três anos consecutivos o campeonato do mundo de ralis. Um dos pontos mais críticos foi a escolha do motor a utilizar e decidi ir pessoalmente a Maranello falar com Enzo Ferrari, que nos cedeu o bloco do motor Dino V6 que viríamos a colocar transversalmente na carroçaria desenhada nos estúdios Bertone.
Além do design indiscutivelmente deslumbrante e futurista, quais eram os principais atributos do Stratos?
O facto de ter sido concebido para competir foi determinante para o sucesso. Para construir o carro, o Marcello Gandini, designer da Bertone, pediu-me para criar um caderno de encargos com os requisitos que deviam ser levados em conta na sua conceção. Decidi então ouvir todos os intervenientes de modo a idealizar o carro perfeito. Comecei por falar com os pilotos, que pediram um boa visibilidade a partir do interior, que fossem sentados o mais verticalmente possível, como um piloto de ralis e não numa posição de condução de pista, e que o carro fosse suficientemente pequeno para poder ser manobrável em estradas estreitas e sinuosas. Depois, fui falar com o departamento de motores, que me pediu um carro cuja traseira deveria abrir completamente para os mecânicos acederem facilmente ao motor. Resposta semelhante obtive quando falei com os técnicos responsáveis pela caixa de velocidades.
Queriam aceder facilmente à caixa para a substituir ou para alterar as relações. Falei também com os eletricistas e foi-me dito que queriam o alternador numa posição onde fosse fácil aceder e substituir já que, naquela altura, problemas com o alternador eram frequentes durante um rali. E foi com este caderno de encargos que Gandini criou o Stratos. Ele fez um fantástico trabalho, em colaboração com os técnicos da Lancia.
Durante os testes iniciais, percebemos que a suspensão não tinha o comportamento esperado e pedi ajuda ao meu amigo Gianpaolo Dallara, experiente preparador, que nos ajudou a desenvolver a suspensão. Da parte da Ferrari, além do motor, recebemos também a cooperação do engenheiro Mike Parkes, um antigo piloto que teve um papel fundamental no desenvolvimento do carro até à sua morte em 1977, num acidente de estrada. O Stratos foi homologado no dia 1 de outubro de 74 e, nessa altura, já as equipas Toyota, Ford e Fiat estavam bem lançadas para ganhar o campeonato de marcas. Mas havia ainda cinco ralis para disputar: o Sanremo, o RAC, a Córsega e as duas provas americanas, nos EUA e no Canadá. O Stratos estreou-se a vencer no Sanremo, venceu no Canadá e na Córsega e também podia ter vencido no RAC mas eu disse ao Munari para não correr riscos porque bastava-nos chegar em terceiro para ganharmos o campeonato do mundo e foi nessa posição que terminámos. Sem as contas do Mundial de Marcas, o Munari podia ter ganho o RAC e ainda hoje ele me cobra essa vitória (risos)…
Como decorreu a reunião com Enzo Ferrari? Foi fácil convencê-lo a ceder o motor que haveria de equipar o Stratos?
Devo dizer que ia bastante nervoso para a reunião. Esperava uma resposta negativa já que o Enzo Ferrari nunca cedia os motores mas fiquei surpreendido com o facto de ter à minha frente um homem que conhecia e apreciava o trabalho desenvolvido na Lancia e os sucessos que havíamos obtido. Ele disse-me “aprecio tudo o que têm feito nos ralis porque sei que têm obtido sucesso gastando muito pouco dinheiro comparando com as outras marcas”. Respondi-lhe: “fico muito satisfeito por reconhecer o trabalho que temos feito. Temos um projeto para fazer um carro especial e precisamos do seu motor”. E ele disse-me “ok, irão usar o bloco do motor do Dino e podem modificá-lo para o tornar competitivo”.
O Stratos foi o carro mais marcante da sua vida?
Foi pelo menos a maior batalha que travei porque, na altura, quando lancei a ideia, ela foi aceite mas, entretanto, a Fiat comprara a Lancia e, como na Fiat não queriam construir o carro, despediram-me. Um mês depois, falaram comigo e contrataram-me novamente, oferecendo-me também a gestão desportiva da Fiat. Fiquei obviamente contente porque, acima de tudo, o Stratos iria avançar. No entanto, tenho de destacar aquele que foi para mim o feito mais marcante da minha carreira: vencer o Audi Quattro com o Lancia 037 ganhando o título de marcas em 1983. Cada carro representa um desafio diferente.
O Delta S4 também foi um projeto fantástico na medida em que era a primeira vez que utilizávamos a tecnologia de quatro rodas motrizes e ganhámos as duas primeiras provas em que participámos: a estreia, no RAC de 85 e o Monte Carlo de 86. 1986 Seria um ano de sucesso mas, infelizmente, o fatal acidente de Toivonen na Córsega, quando liderava… (silêncio). Depois disso, a FIA decidiu banir os carros de Grupo B. A decisão foi tomada em junho e, em janeiro do ano seguinte, iniciar-se-ia um novo capítulo dominado pelos carros de grupo A. Tive apenas seis meses para encontrar um carro, construí-lo e estreá-lo no Monte Carlo de 87. A equipa trabalhou arduamente. Nesse verão de 86, ninguém gozou férias. Acabámos por vencer a prova de estreia e o Lancia Delta dominou os ralis durante seis anos, o que teve também um enorme significando para mim.
O que mudou após a fusão entre a Fiat e a Lancia em 1977 e o nascimento da ASA (Ativita Sportiva Automobilistica)?
Basicamente, a grande mudança deu-se no tipo de carros que devíamos por a correr. Na altura da fusão, corríamos com o Stratos e a Fiat disse-me que teríamos de correr com um modelo mais comercial, nesse caso o Fiat 131 Abarth. O Stratos era um modelo construído a pensar nos ralis, ao contrário do 131 Abarth. A facilidade de acesso à mecânica do Lancia não estava presente no Fiat e isso tornou as coisas mais difíceis mas conseguimos, apesar de tudo, levar o carro às vitórias também.
Quando a Audi deu a conhecer ao mundo o Quattro, imaginava quão revolucionário viria a ser o carro alemão nos ralis?
Confesso que estava bastante receoso com o que o carro pudesse representar porque, se o conceito vingasse, o que veio a acontecer, nós não tínhamos uma tecnologia semelhante para lhe fazer frente. Percebi rapidamente que o carro seria uma fórmula vencedora mas, na impossibilidade de responder da mesma forma, tive de arranjar uma solução que, apesar de ter apenas 2 rodas motrizes, teria de fazer frente ao Audi Quattro.
E assim nasceu o Lancia Rally 037…
O objetivo era conceber um carro suficientemente rápido e eficaz para impedir o domínio do Quattro. E foi com essas premissas que nasceu o Lancia 037 um carro com motor central, muito mais leve e manobrável que o Audi. Com o 037, ganhámos à Audi o mundial de marcas de 83 o que foi, como já disse, um dos maiores feitos da equipa. Depois, chegámos a um ponto em que percebemos que não podíamos lutar mais pelas vitórias sem um carro de tração total e tivemos de aprender os segredos dessa tecnologia para o desenvolvimento do Delta S4.
Como foi construída a vitória da Lancia sobre a Audi no campeonato de marcas em 1983?
O triunfo nesse campeonato resultou de uma conjugação de fatores, começando pelo facto de praticamente não ter nevado no Rali de Monte Carlo. Lembro-me que, na véspera do arranque do rali, percorri todos os troços e havia apenas um com muita neve. Quando acabei de fazer esse troço, retirei o casaco da Lancia, dirigi-me, vestido à civil, à autoridade que gere as estradas e comecei a reclamar, indignado, dizendo que acabara de percorrer aquela estrada completamente coberta de neve, que havia arriscado a minha vida e que não era admissível a estrada estar aberta ao trânsito sem ter sido limpa. Eles mandaram então o limpa-neves e o troço ficou praticamente limpo, o que era uma enorme vantagem para o Lancia 037 já que, em asfalto seco, o carro fazia valer o motor central e o menor peso para ser mais rápido que o Quattro. E assim vencemos o Monte Carlo com o Walter Röhrl. O ano começava bem…
Há várias histórias de ideias que a Lancia punha em prática para ganhar segundos preciosos, compensando assim a desvantagem face à tração integral. Como aquela em que mandou os muletos percorrerem, na véspera, as classificativas do Sanremo de modo a varrerem a estrada, ou a mudança de pneus em pleno troço do Monte Carlo, com equipamentos semelhantes aos da F1…
Era preciso fazer tudo o que estava ao nosso alcance para anular a diferença para os Audi Quattro. Nos ralis em terra, quando um Lancia era o primeiro carro a partir, dificilmente vencíamos o troço porque apanhávamos a estrada bastante escorregadia, com terra solta e estávamos claramente em desvantagem por ter um carro com duas rodas motrizes. No Sanremo de 83, liderávamos o rali e pedi a outros pilotos que pegassem nos muletos
e percorressem, na véspera, os troços que iriam ser disputados, para cima e para baixo, no sentido de limparem a estrada. Sempre procurei trazer algo de novo, que nos desse vantagem. Fomos os primeiros a usar rádio para estabelecer comunicação entre o diretor da equipa, os mecânicos e os pilotos. No início, era difícil colocar esta ideia em prática mas, depois, todos os outros nos seguiram. A Lancia foi também a primeira equipa a mudar de pneus a meio de um troço com um sistema semelhante ao que é usado na F1. Especialmente em ralis como o Monte Carlo, fazia todo o sentido porque as condições variavam ao longo do troço e podíamos começar
o troço com pneus sem pregos e depois mudar para pneus com pregos antes de chegar à parte coberta de neve. O tempo que ganharíamos compensaria largamente os 30 a 35 segundos perdidos na mudança de pneus. Inspirei-me na F1 mas tive que idealizar uma máquina que removesse quatro parafusos em simultâneo.
Inovámos uma vez mais quando passámos a ter um médico permanente durante as provas. Um especialista em medicina desportiva [Ben Bartoletti] que cuidava dos pilotos, olhava para o que eles comiam, a preparação que deviam fazer, as horas de sono, etc. Quando íamos para um rali, levávamos, no mínimo, 40 pessoas e era normal uma delas adoecer. Quando passámos a ter um médico, os elementos das outras equipas vinham ter connosco quando estavam doentes e pediam para o nosso médico os ver. E eu avisava: “desta vez passa mas, para a próxima, a tua equipa tem de trazer o seu próprio médico” (risos). Estas ideias, revolucionárias na altura, foram determinantes para o nosso sucesso.
Consta que essas ideias vinham da sua mente. Estava sempre a pensar nestes pequenos detalhes que podiam fazer a diferença?
Era a minha maneira de estar no desporto. Liderei equipas durante 30 anos e todas as noites, antes de adormecer, dedicava uns minutos a pensar no que podia fazer no dia seguinte para ser mais rápido que os nossos concorrentes. E, durante a noite, tive várias ideias que, isoladamente, podiam representar pouco mas, todas juntas, traduziam-se em vencer campeonatos.
A sua formação em Ciência Politica terá certamente ajudado a lidar com o lado político do desporto motorizado. Como se descreve enquanto líder?
Era um homem da equipa, era um deles. Quando fundei a equipa, eramos tão poucos que eu acabava por ajudar os mecânicos a fazer o que fosse preciso no final dos troços. Esse espírito de ser parte de uma equipa, de ser mais um, veio desses tempos e ajudou-me ao longo dos anos a ter uma relação próxima e aberta com mecânicos, engenheiros e pilotos.
Não acha que a Lancia reagiu tarde a colocar um carro de quarto rodas motrizes nas mãos dos seus pilotos?
Não tenho a certeza disso. Quando a Audi surgiu, nós pura e simplesmente não podíamos reagir porque não tínhamos essa tecnologia. Tivemos de pensar numa alternativa com duas rodas motrizes que nos permitisse continuar a lutar pelas vitórias e isso foi possível durante algum tempo. Estivemos um, dois anos sem ter carro para vencer até conseguirmos, no final de 85, ter finalmente um carro que nos possibilitasse regressar às vitórias.
Foi um dos pais do Grupo B e um dos grandes responsáveis por aquela época de ouro que marcou a história do mundial de ralis. Qual era a sua visão quando promoveu o nascimento dessa categoria?
O Grupo B devia ser a era mais competitiva de sempre na história dos ralis. Com o seu nascimento, o Mundial de Ralis devia atrair mais construtores e conhecer lutas sem precedentes, não só entre os pilotos mas também entre os carros.
Na sua opinião, a que se deveu a enorme popularidade que os ralis tinham nessa época?
Foi uma era absolutamente espetacular. Se formos hoje a um rali do campeonato do mundo, vemos público mas não terá mais do que um terço dos espectadores que existiam naquela altura. Era uma loucura e essa popularidade perdeu-se no momento em que os monstros foram banidos. Nessa altura, os pilotos corriam três ou quatro dias sem interrupção, os mecânicos estavam em constante movimento para prestarem assistência no fi al das classificativas, exigindo uma grande organização para montar essa operação. E os espectadores assistiam a isto tudo, faziam parte do espetáculo, tudo se passava à sua frente. Hoje, há maior distanciamento, os carros são assistidos num parque ao qual os espectadores não têm acesso e não há contacto com os pilotos ou com os carros. Tudo isso contribuiu para a quebra da popularidade dos ralis.
Oficialmente, os carros de Grupo B atingiram, no último ano em que correram, qualquer coisa como 500 Cavalos. A escalada de potência não se ficava por aqui?
No caso do Delta S4, o carro tinha dupla sobrealimentação, ou seja, o compressor volumétrico que nos dava potência a baixas rotações e o turbocompressor que nos dava potência a altas rotações. O motor tinha cerca de 500 cavalos e resultava de um conceito fantástico, bastante avançado, desenvolvido por Claudio Lombardi, que nos permitia ter força em baixos regimes, onde era preciso ter o máximo de tração, com o turbocompressor que nos dava a potência para as zonas rápidas. Mas a escalada tecnológica não se ficava por aqui. Estávamos constantemente a testar evoluções e estávamos a terminar o desenvolvimento de um motor com 600 cavalos que nunca chegou a ser utilizado porque, entretanto, o Grupo B foi banido e concentrámos esforços no desenvolvimento do carro de Grupo A.
Acha que, se tivesse estado em Portugal, em março de 86, no dia do acidente de Joaquim Santos na Lagoa Azul, teria convencido os pilotos da Lancia a manterem-se em prova no Rali de Portugal?
Devo dizer que fiquei surpreendido com a reação dos pilotos. Eu não estava em Portugal e portanto é difícil dizê-lo com certeza mas ainda hoje penso que, se estivesse presente, teria convencido os pilotos
da equipa a continuar em prova. Eles normalmente ouviam-me e, por isso, talvez os tivesse convencido a mudar de ideias.
Mais de trinta anos passados sobre esse fatídico dia, como vê a tomada de posição dos pilotos oficiais que culminou com a decisão de não continuarem em prova?
É um pouco como a história do fim do Grupo B. Na altura, desportivamente falando, preferia que os ralis continuassem, que o Grupo B não fosse banido, que tudo decorresse dentro da normalidade. Tinha,
na minha opinião, o melhor carro do campeonato e, repito, desportivamente falando, queria continuar a lutar com aquela arma. Mas, olhando para o lado humano da questão, e com o distanciamento que nos é possível ter agora, digo que a sucessão de acontecimentos foi aquela que tinha de acontecer. Entráramos num patamar perigoso de velocidade em estradas abertas repletas de gente e isso representava um risco que teve de ser reconsiderado.
Pensa então que o fim do Grupo B foi a decisão acertada?
Do ponto de vista desportivo, não era uma boa decisão para a Lancia mas eu não era contra o fim do Grupo B, apesar de isso representar um problema para mim porque tinha de arranjar um modelo para competir em Grupo A, produzir 5000 unidades e desenvolver o carro de competição. Mas 1986 foi um ano com muitos acidentes, perdemos Toivonen e Cresto, houve o acidente de Sintra com o piloto português [Joaquim Santos] e o de Marc Surer na Alemanha. Um ano antes, Vatanen também havia tido um grave acidente na Córsega e o seu carro rebolou 300 metros pela ravina. Se olharmos para estes acidentes, concluímos que a decisão foi a mais logica. Eram carros demasiado rápidos. Em 2,9 segundos, iam dos 0 aos 200 Km/h, tinham prestações que se aproximavam das da F1 e isso era demasiado para competirem em estradas normais.
Como geriu a equipa as emoções resultantes das mortes de Henri Toivonen e Sergio Cresto?
Na equipa ficámos verdadeiramente chocados com a tragédia. Foi um momento muito difícil para todos. A equipa levou tempo a reencontrar-se. Não foi fácil, mas conseguimos. A equipa uniu-se de tal forma que tudo fez para conseguir chegar ao título nesse ano. E tanto é que o Markku Alén conseguiu sagra-se campão do mundo. Mas, depois, o Balestre, então presidente da FISA, anulou os resultados do Sanremo e o Alén viu o título ser-lhe retirado.
Na sua opinião, porque se diz que, no Rali Sanremo de 1986, a política sobrepôs-se ao desporto?
Não foi tanto no rali mas sobretudo pelo que aconteceu meses após a prova, em dezembro. A Peugeot foi desclassificada por usar saias ilegais. Mas quando isso aconteceu, a Lancia já liderava a prova, portanto, essa desclassificação em nada contribuiu para a vitória da Lancia e a Peugeot nunca venceria a prova. Meses depois de termos celebrado a vitória e o título de Alén, a FISA, através do seu presidente, o francês Jean Marie Balestre, cancelou os resultados do Sanremo oferecendo o título a Juha Kankkunen. Foi um grande favor que Balestre fez à Peugeot.
Como era a sua relação com Jean Todt?
Acho que ambos tínhamos respeito pelo outro mas não éramos amigos.
Após o anúncio do fim do Grupo B, a Lancia considerou abandonar a competição?
Não porque os estudos demonstravam que as vitórias da Lancia vendiam carros e, comercialmente falando, a situação da marca estava bem, em grande parte devido ao envolvimento na competição. A questão que se colocou foi qual modelo a escolher para prosseguir na competição. Acabou por ser o Delta, um carro muito pouco desportivo mas que tinha já uma versão de quatro rodas motrizes e que foi evoluindo ao longo dos anos dando-nos as alegrias que sabemos.
Porque se tornou a Lancia imbatível na segunda metade dos anos 80?
Porque tínhamos uma fantástica equipa de engenheiros, de mecânicos e de pilotos, ou seja, eu tinha tudo o que um chefe de equipa pode desejar. Foi o resultado de muitos anos de experiência, muito tempo de trabalho conjunto, muita comunicação entre todos, o que nos permitia antever e resolver qualquer problema que pudesse surgir.
Apesar desse domínio, nem tudo foram facilidades para um diretor de equipa. Logo a abrir a era do Grupo A, o Rali de Monte Carlo de 87 foi marcado pela polémica entre os pilotos da Lancia. Na sua opinião, Kankkunen tinha motivos para estar descontente com a situação?
É uma história muito estranha. Kankkunen havia deixado a Peugeot e juntara-se a nós mas talvez a sua adaptação à equipa não tivesse sido imediata. Ele achava os italianos um bocado estranhos. No Rali de Monte Carlo, Biasion e Kankkunen estavam à frente com uma grande vantagem para o terceiro e eu achei que deviam abrandar para não correrem riscos e chegarem os dois ao final.
Para não ter de impor qual dos dois ganharia, disse então que quem fizesse o melhor tempo na primeira passagem pelo Col du Turini, ganharia a prova. Biasion venceu e, de acordo com o combinado, abrandou o ritmo, seguindo as minhas instruções. Kankkunen continuou a andar depressa e ultrapassou o Biasion, violando o acordo. Fui ter com ele e disse-lhe que teria de abrandar e deixar o Biasion passar. Ele criou uma grande história à volta disso. Mais tarde, falámos, ele compreendeu a situação e ficámos com uma excelente relação. Aliás, Kankkunen foi campeão nesse ano e, após dois anos na Toyota, regressou à Lancia para ser novamente campeão do mundo.
Sobressaía na equipa Lancia os recursos que tinha disponíveis para atingir os seus objetivos. É disso exemplo a forma como Alén venceu o Rali de Portugal de 87, após serem enviados mais amortecedores
para a última etapa…
A missão da equipa era criar todas as condições para que os pilotos chegassem à vitória. Esse exemplo mostra que fazíamos tudo o que estava ao nosso alcance. Nesse caso, até ir buscar amortecedores a Turim para que o Alén ganhasse o rali…
No final de 1991, a Lancia decide abandonar oficialmente os ralis. Na altura, concordou com a decisão?
Não concordei com a decisão, mas, na altura em que foi tomada, infelizmente para a Lancia, eu já havia deixado a equipa e estava na F1 ao serviço da Ferrari, pelo que não pude intervir. Paolo Cantarella havia chegado à direção do Grupo Fiat e decidiu dessa forma. Eu sempre achei que havia sido uma má decisão porque a Lancia dependia da participação nos ralis para vender carros e os números mostravam isso.
Ao longo da sua vida, lidou com alguns dos melhores pilotos do mundo. Aliás, procurava ter sempre os melhores na sua equipa. O que distingue um bom piloto de um grande piloto?
Podes ter um bom piloto em asfalto e um fantástico piloto na terra ou na neve mas um grande piloto é aquele que consegue vencer em todas as condições e respeita o carro, sem o destruir.
Quem foi, para si, o mais talentoso de todos?
Nos ralis, o melhor foi Henri Toivonen. Foi o único que conseguir aproveitar 100% do potencial de um carro de Grupo B. Mais nenhum outro conseguiu fazê-lo, faltava sempre qualquer coisa, mas o Henri era fantástico e o único a explorar verdadeiramente os limites do carro. Conhecia-o desde miúdo e tínhamos uma excelente relação. Quando criei a equipa, contratei o seu pai, Pauli Toivonen e sempre que este vinha a minha casa, trazia o pequeno Henri que, na altura, teria uns dez anos. O Pauli dizia-me com orgulho que o seu filho iria tornar-se um grande piloto e a verdade é que isso veio a acontecer. O Pauli ensinou-lhe muito do que sabia e o Henri aprendeu muito rapidamente, tornando-se o melhor de todos os pilotos que conheci.
Depois de Toivonen, gostava que me falasse um pouco de outros pilotos que marcaram a história da equipa. Como é que Cesare Fiorio via cada um dos seus pupilos? Começo por Sandro Munari…
Curiosamente, quando começou, o Munari não era piloto. Era muito novo e colaborava connosco, fazendo também alguns ralis como navegador. Por volta de 1965, eu tive de escolher os pilotos que iriam correr pela equipa e então mandei uma série de candidatos para o Rali dos 1000 lagos, com o objetivo de ver o andamento de cada um e de escolher entre eles. O Munari participou também e, apesar da sua inexperiência, ridicularizou os outros pilotos ao ser muito mais rápido que eles. Era um piloto fantástico. A vitória que obteve na Córsega em 67 foi o primeiro grande êxito da equipa e depois, o triunfo no Monte Carlo de 72 veio a carimbar esse valor internacional, confirmado, depois, de forma plena, ao volante do Stratos. Foi um dos melhores pilotos que tive.
Porque era Markku Alén tão acarinhado pelos italianos?
O Markku era um bom tipo, de quem me tornei amigo. Foi um dos pilotos da Fiat que eu herdei após a fusão, quando passei a liderar o departamento de competição do grupo. Durante os muitos anos em
que esteve connosco, o Markku conduziu vários carros e foi sempre competitivo, o que diz bem do seu talento. O seu temperamento dava-lhe carisma e tornou-se uma figura bastante popular na equipa. Esta popularidade era ajudada pelo facto de ele falar um italiano muito próprio e, quando chegava à assistência no final dos troços, tinha sempre uma maneira engraçada de descrever como estava o carro. Uma vez, chegando perto dos mecânicos, disse: “Rumore metalo come tutto roto!” Ele queria dizer que o carro fazia um barulho metálico como se estivesse tudo a partir-se (risos). Era impossível ficar indiferente ao Markku e ele colhia a simpatia da equipa por causa dessa forma de ser, aliada ao facto de ser um piloto rápido em todos os tipos de piso.
Apesar de o seu temperamento ter pouco a ver com os latinos, a verdade é que Walter Röhrl também se deu bem na equipa…
Röhrl era um piloto de exceção. Ganhou o Monte Carlo com carros de tração traseira, depois com um carro com motor central e, por fim, com um modelo de tração total e isso diz muito das suas qualidades.
Qualquer volante que lhe colocassem nas mãos, ele retirava o melhor desse carro. Era absolutamente um piloto de topo.
Pensa que Attilio Bettega poderia ter sido campeão do mundo?
Nunca saberemos. Bettega era um piloto jovem e rápido mas tinha muitos acidentes. O acidente que lhe retirou a vida foi muito estranho. O embate foi totalmente no seu lado e ele não resistiu. Já o seu copiloto, Maurizio Perissinot, saiu completamente ileso e correu a pedir auxílio porque o Bettega estava ainda no carro.
Kankkunen foi o único finlandês a sagrar-se campeão do mundo ao serviço da Lancia…
É verdade. Em 1986 foi campeão do mundo na Peugeot, com um carro de grupo B e, no ano seguinte, na Lancia, com uma equipa nova, num carro novo completamente diferente daquele que havia conduzido,
tornou-se novamente campeão. Isso diz muito da sua versatilidade e da sua capacidade de adaptação. Era um verdadeiro campeão do mundo. Eu nunca me contentei em ter apenas pilotos bons. Tinha de ter os melhores e os pilotos também desejavam correr pela Lancia pelo que se obtinha a conjugação perfeita entre os melhores pilotos e a melhor equipa.
Com Biasion, os tifosi viram, finalmente, um italiano sagrar-se campeão do mundo de ralis…
Biasion foi campeão do mundo por duas vezes e, além disso, conseguiu um feito muito importante para equipa: a primeira vitória no Safari. Havíamos tentado várias vezes sem êxito e foi com ele que o conseguimos. Era um piloto muito rápido, equiparável a Kankkunen e só posso reconhecer tudo aquilo que ele fez pela equipa nos anos em que esteve na Lancia.
Deixei propositadamente para o fim Alessandro Fiorio…
O Alessandro teve muito pouca sorte por ser filho de quem é. Ele ganhou tudo nas categorias secundárias mas depois, quando chegou à principal, por uma questão de princípio, não o coloquei na equipa Lancia.
Qualquer outro piloto, com a carreira que ele havia tido até aí, teria entrado mas eu não me sentia confortável em pegar no meu próprio filho, colocá-lo na equipa principal e pagar-lhe para correr. Hoje, é
comum isso acontecer mas eu não o fiz e por isso digo que ele teve azar por ser filho de Cesare Fiorio. O Alex acabou por ir para Ford e eu senti-me aliviado porque, de alguma forma, ele conseguira prosseguir a
carreira mas, ao mesmo tempo, frustrado pelo facto de saber que, na minha equipa, ele teria condições para vingar.
Houve algum piloto que gostasse de ter contratado mas que tal não se tenha concretizado?
Por norma eu conseguia ter os pilotos que desejava mas, nos ralis, houve um piloto excecional e muito inteligente que nunca chegou a correr na nossa equipa: Ari Vatanen. Tínhamos uma relação muito boa mas a oportunidade nunca surgiu e talvez tivesse sido o único de que tive pena. Depois, se quisermos falar de F1, tenho de referir Ayrton Senna. Mas, neste caso, não se trata de ter pena por não o ter contratado porque eu assinei um contrato com o Ayrton que foi, depois, travado pela Ferrari porque já tínhamos o Alain Prost. A equipa optou por manter o Prost e, perante a recusa em contratar o Senna, deixei a Ferrari.
Ter os melhores pilotos na mesma equipa tem um custo associado que não é apenas financeiro. Refiro-me à gestão dos egos e das lutas entre si…
Não me lembro de ter dito a algum piloto que teria de deixar o outro vencer. Claro que tive situações em que, para assegurar a vitória, pedi aos pilotos para abrandarem, como aconteceu no Monte Carlo de 87 mas não decidi quem iria vencer. Avisei os pilotos que quem fosse mais rápido no Turini seria o vencedor. O mesmo se passava na luta pelo campeonato. Nunca havia favoritos à partida. Quem ganhasse mais e pontuasse mais, seria campeão.
Pensando no que se passou no Rali Sanremo de 1976, provavelmente Waldegård teria tido alguma dificuldade em concordar com essa teoria. O que aconteceu na última noite da prova italiana?
Nesse ano, Munari e Waldegård, ambos ao volante de um Lancia Stratos, discutiam o rali taco a taco e estavam claramente à frente de todos os outros. Pedi-lhes então que abrandassem para não corrermos riscos e avisei-os de que iria deixá-los dar tudo por tudo na última classificativa. Quem fosse aí o mais rápido, seria o vencedor. À entrada para o derradeiro troço, o Waldegård tinha quatro segundos de vantagem e eu pedi-lhe que, quando recebesse ordem de partida, esperasse quatro segundos e só partisse depois, garantindo assim que ambos os pilotos arrancavam completamente empatados.
O Waldegård acabou por fazer o mesmo tempo que o Munari, ganhando o rali por quatro segundos de vantagem e deixando o Munari bastante chateado por não vencer o Sanremo. Mas ambos tiveram as mesmas hipóteses.
Segue hoje em dia o WRC?
Para ser honesto, sigo mais o campeonato italiano do que o WRC. O WRC perdeu muito do seu carácter competitivo. Os ralis são muito mais curtos, os pilotos fazem três troços de manhã, regressam à base onde um chef lhes prepara o almoço e disputam mais três troços à tarde regressando ao hotel onde dormem toda a noite. Isso faz com que as provas sejam bem diferentes das que conhecemos no passado, em que se corriam de dia e noite, com assistências à beira da estrada no fi al de cada troço enquanto os pilotos comiam uma sandes à pressa antes de arrancarem para o troço seguinte. Esses conferiam maior personalidade aos ralis. As assistências eram feitas no meio da estrada, havia contacto dos espectadores com os carros, com os pilotos, com os mecânicos e hoje isso perdeu-se, contribuindo para um maior afastamento das pessoas face aos ralis.
Gostaria de ter tido Loeb ou Ogier a correr na sua equipa?
Tenho especial admiração por Loeb. Era muito rápido, não cometia erros, respeitava o carro, não abusava da mecânica e conseguia ser mais rápido do que todos os outros. Se ele tivesse corrido uns anos
antes, seria certamente um piloto que eu gostaria ver a correr pela Lancia.
Por que motivo a Itália não está envolvida nos ralis hoje em dia?
Diria que temos bons pilotos mas não temos oportunidade de correr num bom carro. As pessoas estão muito focadas na Ferrari e, por consequência, só veem F1. Nos ralis, falta um construtor italiano que dê oportunidade aos pilotos de valor que a Itália tem.
Quão importante foi a experiência acumulada nos ralis quando se mudou para as pistas e para as provas de endurance?
Foi ao contrário. Na altura, fui a favor da participação nas corridas de endurance porque os protótipos eram mais sofisticados e isso permitiu-nos transferir conhecimento e tecnologia das pistas para os carros de ralis. Recorrendo a pilotos italianos como Patrese, Alboreto, Nannini, Fabi ou De Cesaris, ganhámos duas vezes o Mundial de Endurance e, embora se tratasse de uma equipa pequena, permitiu-nos aprender muita coisa para usar, depois, nos ralis. Dou um exemplo: nos ralis ninguém ligava ao consumo de combustível. Na endurance nós levávamos isso em conta e fazíamos contas para calcular o combustível necessário de modo a evitar peso desnecessário. Passámos a fazer o mesmo nos ralis e conseguíamos reduzir 50 kg ao peso do carro. Muitas outras foram aproveitadas e isso foi muito importante para nos mantermos no topo dos ralis durante tantos anos.
O que faltou para obter na F1 o sucesso que conseguiu nos ralis ou na endurance?
Fiz 35 Grandes Prémios na F1 com a Ferrari. Desses, ganhámos 9 e fomos 26 ao pódio. Não se pode dizer que seja um mau resultado. Quando cheguei, a Ferrari atravessava um momento de falta de competitividade. Vencera no Brasil, com o Mansell, logo na prova de abertura mas, depois, estivemos dez corridas sem ver a bandeira de xadrez, fruto de vários problemas mecânicos. Foram tempos enriquecedores e só não fomos campeões por causa do desfecho que todos conhecemos no Japão, em 1990. O carro já era fiável e Prost estava mais rápido do que Senna nesse fim- e-semana, tinha feito melhores tempos no warm-up e sabíamos que, se ele saísse à frente na primeira curva, teria muito boas hipóteses de vencer a corrida e de ser campeão. Mas isso também estava na mente de Senna. Ele também sabia que tinha de sair à frente na primeira curva e, partindo atrás do Prost, tudo fez para impedir que o Prost saísse à frente, atirando-se para cima do Ferrari. Certo é que, um ano depois, Senna viria a admitir que fez uma manobra premeditada para se vingar do título que Balestre lhe havia retirado no ano anterior. Apesar de não ter sido campeão, achei a experiência muito interessante. Depois disso, dediquei-me a outra grande paixão, os barcos, e estabeleci o recorde da travessia do Atlântico,
que ainda hoje não foi batido. Quando regressei, fui convidado pela Ligier para liderar a equipa e consegui nessa altura uma das vitórias mais gratificantes da minha passagem pela F1, no Grande Prémio do Mónaco de 96, com o Olivier Panis. A Ligier era uma marca do fundo do pelotão, debatia-se com problemas fi anceiros e aquela vitória foi um feito marcante para todos na equipa.
De todos os anos que dedicou à competição automóvel, de que sente mais falta?
Sinto falta de ser mais novo para poder continuar envolvido na competição. Durante anos foi parte integrante da minha vida. É costume dizer-se que a pior doença que pode atingir quem está na competição é ficar em segundo. A procura pela vitória, o não querer ficar doente, ou seja, em segundo, tudo isso fez parte de todos aqueles anos e tenho pena que a idade avance e já não permita ter condições para continuar.
É um dos líderes mais bem-sucedidos da história do desporto automóvel e também um dos mais carismáticos. Qual é segredo do sucesso?
Não há segredos, exceto sabermos de quem nos devemos rodear. Percebermos quem poderá ser um bom engenheiro, um bom piloto, um bom eletricista e juntarmos a isso o facto de, quando, à noite vamos
dormir, dedicar uns minutos a pensar como podemos ser mais competitivos no dia seguinte. Foi isso que fiz durante todos estes anos…