Entrevista a Juha Kankkunen: INSTINTO FATAL

Por a 29 Setembro 2021 12:50

Sonhava seguir as pisadas de Timo Mäkinene Hannu Mikkola quando, com tenra idade, conduzia o trator do pai nos lagos gelados da sua Laukaa natal. Um dia, sentou-se num velho Escort e experimentou a magia dos ralis perseguindo, desde então, o desejo de ombrear com os seus ídolos. O talento e a velocidade não demorariam a sobressair e a atrair a atenção de Ove Andersson, que lhe estendeu a passadeira do mundial de ralis. Ao longo de duas décadas, Juha Kankkunen passeou o inseparável bigode e a cigarrilha pelas estradas do campeonato do mundo, atravessando com sucesso várias gerações da história deste desporto. Entendia como poucos a verdadeira essência dos ralis, aliando inteligência na gestão da corrida a um invulgar instinto que lhe permitia extrair o melhor de cada carro, mesmo quando não estava afinado a seu gosto. Não é, por isso, de estranhar que, numa época em que os ralis tinham mais de uma mão cheia de candidatos à vitória, o miúdo sonhador que guiava tratores tenha cumprido o seu sonho, conquistando quatro títulos de campeão do mundo e tornando-se numa das maiores lendas do WRC…

Juha Kankkunen, navegado por Juha Repo, acabava de completar os sete quilómetros de Ruuhimaki, a derradeira classificativa do Rali da Finlândia, carimbando a terceira vitória em casa. Tinha então 40 anos e aquele seria o último dos 23 triunfos obtidos em provas do campeonato do mundo. Na tomada de tempos, o jornalista apressa-se a abrir a porta do Subaru Impreza para obter a primeira reação do vencedor e, depois de o felicitar, pergunta-lhe que pneus havia escolhido para enfrentar a chuva e a lama do troço da consagração. A resposta não se fez esperar: “Pretos, redondos, da Pirelli!” A reação do finlandês tornou-se célebre mas o seu significado extravasa o tom hilariante contido na frase. É, acima de tudo, revelador da forma como uma fornada de pilotos, certamente irrepetível, e da qual Kankkunen será talvez o último representante, exercia o seu ofício, colocando a condução no seu estado mais puro e instintivo acima de todas as outras variáveis da equação. Hoje, com 62 anos, partilha segredos e técnicas da condução na academia com o seu nome, em Kuusamo, no norte da Finlândia. E é numa típica manhã de inverno nórdico com a temperatura a rondar os vinte graus negativos, precisamente quando deixa Jyväskylä e ruma ao norte para iniciar mais uma temporada de lições sobre pilotagem no gelo, que Juha Kankkunen nos brinda com as suas memórias…

Laukaa, a sua terra natal fica a escassos quilómetros de Jyväskylä e era ponto de passagem do Rali dos 1000 Lagos.Os dados estavam lançados para uma infância rodeada de carros e de pilotos de corridas…

O meu pai competia quando eu era miúdo. Não fazia muitos ralis, pois focava-se nas corridas no gelo do campeonato finlandês. Depois, claro, o Rali dos 1000 lagos passava na minha quinta. O Timo Mäkinene o Hannu Mikkola eram amigos do meu pai e, durante as sessões de treinos, paravam à nossa porta e visitavam-nos. Inevitavelmente, o desporto automóvel, quer as corridas no gelo, quer os ralis, estiveram sempre muito presentes na minha infância e na adolescência.

Isso acabou por moldar os sonhos do jovem Juha?

Quando somos miúdos, os nossos sonhos passam invariavelmente por ser figuras do desporto. Futebolistas, campeões de esqui ou de qualquer outra modalidade. Na altura, o meu pai era piloto e, na Finlândia, os ralis são muito populares, pelo que se tornou inevitável: o meu sonho passava por ser, um dia, um grande piloto de ralis. Nos caminhos da nossa quinta, comecei então, desde muito novo, a conduzir carros e tratores e o interesse cresceu naturalmente.

Desafiar os limites significa correr riscos com alguns sustos pelo meio, como aquela vez em que capotou o trator num lago gelado…

É verdade. Era ainda um jovem a explorar os limites e, certo dia, conduzia um trator num desses lagos mas o gelo não era suficientemente sólido e eu capotei, o trator perfurou o gelo e mergulhei. Tive muita sorte em conseguir sair e não me livrei de um grande susto, mas isso não afetou o meu entusiasmo pela competição.

Aos 18 anos tira a carta de condução e, como era hábito para quem queria começar imediatamente a competir, ruma à Suécia para disputar o primeiro rali…

Sim, oficialmente não somos autorizados a alinhar em competições na Finlândia antes de ter a carta de condução. Tirei-a aos 18 anos mas, no primeiro ano, não podemos exceder os 80 km/h nem competir. Fui então à Suécia, onde a lei é diferente e participei, em 1978, pela primeira vez num rali, com o meu Ford Escort.

Como foram os primeiros anos de aprendizagem, primeiro com o Ford Escort e, mais tarde, com o Opel Manta?

Foi um período marcado por altos e baixos, com muitos acidentes e alguns bons resultados. Na altura, não tinha dinheiro para comprar carros mais competitivos ou melhor preparados e, muitas vezes, os problemas mecânicos traiam-nos mas, quando chegava ao fim, ganhava quase sempre na classe. Na altura, tínhamos de começar na classe júnior e só depois de amealharmos determinados pontos é que passávamos para a classe principal. Mas, se ganhássemos três ralis na classe júnior, a transição era imediata. Eu ganhei três ralis de seguida e passei para a categoria principal, onde também fui conseguindo bons resultados. O meu pai pediu ao Timo Mäkinen para me dar alguma orientação e ele contactou o Timo Jouhki, um reconhecido manager responsável pela carreira de muitos pilotos. Sem ele, teria havido muito menos pilotos finlandeses a disputar o campeonato do mundo.

Como surgiu a oportunidade de integrar a equipa oficial da Toyota em 1983?

O Timo Mäkinen e o Timo Jouhki contactaram o Ove Andersson, um velho amigo de Mäkinen que andava à procura de um piloto para a Toyota e propuseram o meu nome. O Ove disse-lhes: “Ok, vou enviar um Celica para a Finlândia para ele disputar cinco ralis. Logo veremos se tem talento”. Quando eu ganhei os cinco ralis, o Ove comentou: “Que diabo, este miúdo não é nada mau!” Ele deu-me a oportunidade de conduzir um Celica oficial no Rali dos 1000 Lagos de 83, onde consegui, nalguns troços, bater o meu colega de equipa, o grande campeão Björn Waldegård e terminar em sexto lugar. O Ove já não me quis largar e foi assim que assinei contrato com a Toyota.

Chega ao Rali Safari de 1985 acabado de completar 26 anos. Competia pela primeira vez na prova africana e ganhou.Que memórias guarda desse momento histórico?

Foi inesquecível. Um rapaz novo acabara de ganhar o rali mais difícil do mundo. As emoções apoderaram-se de mim. Normalmente, no início da carreira, um piloto gosta de andar sempre rápido mas, felizmente, eu tive um fantástico companheiro de equipa, o Björn Waldegård que me ensinou muito sobre os segredos de conduzir em África. Na altura, a Toyota não ia a todas as provas do campeonato do mundo porque não era competitiva contra os carros de tração total e, então, apostava muito no Safari. Fomos um mês e meio para o Quénia testar e, durante esse tempo, tentei aprender o máximo possível com o Björn, seguindo-o nos reconhecimentos. Quando chegámos ao rali, dei o meu melhor, tentando seguir o ritmo do Björn, não muito rápido nem muito lento e tentando manter o carro inteiro. Tudo funcionou em pleno, não tive o mais pequeno percalço e o Waldegård teve alguns problemas no Celica pelo que apenas tive de me concentrar e levar o carro até ao último dia. Tive alguma sorte, que é sempre preciso ter, mas também tentei manter um ritmo consistente e a vitória aconteceu. Depois veio a consagração, no pódio e é nessa altura que eu sinto “é isto que eu quero fazer, é este o caminho que quero seguir”. Ganhar uma prova do WRC torna-nos conhecidos, e, tratando-se do Safari, uma prova bastante mediática, o feito atinge uma dimensão ainda maior e, naquele dia, em Nairobi, percebi definitivamente qual iria ser a minha profissão nos vinte anos seguintes (risos)…

Nesse mesmo ano, viria ainda a vencer o Rali da Costa do Marfim e triunfou no Safari noutras duas ocasiões, em 1991 e 1993. Sei que gosta muito de África e especialmente do Quénia. Qual é a magia de competir naquele continente?

A dureza do percurso. Naquela altura, o rali era extremamente duro. Só as equipas melhor preparadas conseguiam vencer, como era o caso da Toyota ou, mais tarde, da Lancia que também aprendeu a preparar carros para vencer o Safari. A concentração que exigia era diferente da dos outros ralis, onde andávamos a fundo do primeiro ao último troço. No Quénia, não podíamos esquecer que teríamos pela frente uma prova com 4 ou 5 dias e milhares de quilómetros. Era preciso encontrar o ritmo certo e manter esse ritmo. E se alguém estivesse a ir mais rápido do que tu, ou ia depressa demais ou iria ter mais sorte que tu se conseguisse chegar com o carro inteiro ao final. Competir no Quénia era especial e, desde logo, apaixonei-me pelo país e pelo continente africano. África é tão diferente de tudo o resto que nos conquista e não nos deixa indiferentes. Sempre que posso, regresso ao Quénia para passar umas férias e foi precisamente esse o sítio que escolhi para celebrar o meu sexagésimo aniversário com os meus filhos e alguns amigos.

O Toyota Celica Twin Cam Turbo era um carro talhado para ralis onde a resistência era determinante?

Era um carro bom e potente. O motor chegava aos 400 cavalos mas, obviamente, o facto de ser um tração atrás, era muito penalizador, impedindo-o de competir com os carros de tração total. Era sobretudo em África que o Celica mostrava o seu valor. Tinha uma boa suspensão, um bom motor e, tecnicamente, era muito bom, graças a uma equipa muito profissional, liderada por um homem bastante experiente, como era o caso do Ove Andersson.

No final do ano, e após duas vitórias nas provas africanas, era um óbvio candidato a integrar outras equipas. Como se deu o “casamento” com a Peugeot?

Não me recordo bem mas tenho ideia de que, no final do Safari, várias equipas me contactaram e o Jean Todt foi o mais insistente. Ele ligou-me a propor a ida para a Peugeot e eu disse-lhe que não decidia nada pois tinha contrato com a Toyota, que falasse com o Ove Andersson e o que eles decidissem estava bem para mim. O Todt era um velho amigo do Ove, haviam competido juntos e definiram os termos do contrato. O Ove veio então ter comigo e disse-me: “Juha, tu és jovem, tens a rapidez necessária mas eu não tenho um carro para ti. Acho que a ida para a Peugeot é o melhor para ti, mas com uma condição: quando eu tiver um carro competitivo e precisar de ti, tu voltas”. Obviamente, aceitei e prometi-lhe voltar quando precisasse de mim.

Ficou satisfeito com a mudança?

Claro que sim. A Peugeot era a melhor equipa do mundial de ralis.

Como decorreu a adaptação ao carro e à equipa?

Foi muito rápida. E equipa era, sem sombra de dúvidas, muito boa e o carro era extremamente rápido.

Mudar para um carro com tração total obrigou-o a alterar a forma de conduzir?

A técnica de condução de um carro de tração total é bastante diferente. Além da tração, o Peugeot tinha motor central e o balancear do carro é necessariamente diferente. Mas a adaptação foi rápida e cheguei a liderar na minha prova de estreia, o Monte Carlo de 86. Contudo, uns problemas no turbo obrigaram-me a perder 10 minutos. Mas, no segundo rali que fiz com a equipa, o Rali da Suécia, ganhei.

O Peugeot era um carro fácil de conduzir?

Era fácil depois de o conhecermos. Era muito leve e potente e era preciso conhecer o seu comportamento para o levar para onde queríamos e também para gerir os pneus. O carro era tão potente que, se não tivessemos cuidado, destruía completamente os pneus em dez quilómetros. E se o troço tivesse vinte, fazias a segunda metade sem pneus. Por isso, era preciso ter isso em consideração na forma como se guiava.

Para quem viveu por dentro essa época de ouro, qual era a magia dos carros de Grupo B?

Foi uma época marcada por carros superpotentes em que, praticamente, não havia limites. Os construtores tinham liberdade para fazer o que quisessem. Podiam até construir um avião, desde que o conseguissem manter na estrada! Os carros eram extremamente leves e os motores podiam ter várias centenas de cavalos embora, na verdade, não conseguíssemos usar toda essa potência. Obviamente isso tinha um preço: chamava-se segurança. Os arcos de proteção não tinham a resistência dos de hoje, os bólides não eram muito seguros e podiam incendiar-se muito facilmente. Eram máquinas espetaculares e, pelo perigo que representavam, talvez isso atraísse ainda mais os espectadores. Não digo que os pilotos, para as conduzirem, fossem doidos mas tinham de estar permanentemente a correr riscos.

Disse que os pilotos não conseguiam usar toda a potência disponível. Não era possível conduzir aqueles carros no limite?

Nem sempre. Tínhamos de usar a cabeça e não podíamos andar sempre a fundo pois destruíamos os travões e os pneus em poucos quilómetros. Era importante gerir o andamento para ter pneus e travões até ao fim das classificativas. Nos troços mais curtos, onde não tínhamos de nos preocupar com essa gestão, podíamos andar a fundo mas, regra geral, isso não podia acontecer. Os carros não tinham limites e, então, tínhamos de ser nós a impor esses limites.

Como era para um nórdico, lidar com a paixão do público latino e conduzir estes autênticos monstros com quatro rodas em estradas repletas de público como era o caso dos troços de Sintra?

Na primeira vez ficamos impressionados mas depois habituamo-nos e passava a ser visto com naturalidade. Fazia parte do jogo e era uma das características daquela época. Hoje, à mínima coisa, cancelam o troço mas aqueles eram outros tempos. Sintra era daqueles sítios onde não podíamos conduzir a pensar unicamente no cronómetro. A quantidade de gente na estrada era tanta, que tínhamos de estar despertos para evitar acidentes. Era impossível abstrairmo-nos disso e, por isso, arrancávamos para os troços com o objetivo de colocar o carro no meio da estrada e de andar tão rápido quanto possível mas sem cometer loucuras. Em 1986, depois de fazer a primeira ronda de Sintra, chego à assistência, os mecânicos abrem o capot do motor e encontram dois dedos no radiador do Peugeot. Eram de um espectador que havia tocado no carro quando passávamos na classificativa! No resto do percurso do rali, maioritariamente em terra, não era o excesso de público que nos impedia de andar a fundo no Rali de Portugal mas sim a dureza do piso e a necessidade de garantir que o carro chegava inteiro ao fim.

A decisão de abandonar o Rali de Portugal em 86, após o acidente de Joaquim Santos, foi tomada exclusivamente pelos pilotos?

Absolutamente! Os responsáveis das equipas não tiveram qualquer interferência e todos os pilotos das equipas oficiais concordaram. Não eram as nossas vidas que estavam em risco porque nós estávamos dentro de um carro, protegidos por um arco de proteção. Era a vida dos espectadores que estava em perigo e nós, pilotos profissionais, precisamos do público e da sua paixão e, por isso, não queríamos colocá-lo em risco. Foi por isso que tomámos a decisão.

Depois da morte de Bettega em 85 e do acidente na Lagoa Azul, a trágia morte de Toivonen e Cresto na Córsega foi o golpe fatal na era do Grupo B…

Foi um trágico acidente cuja história se confunde com a do próprio Grupo B. O Henri estava um pouco doente, mas ninguém sabe ao certo as causas do despiste. Num carro normal, perder a concentração durante um milésimo de segundo pode significar um acidente. Num carro de grupo B, isso podia ter consequências ainda mais trágicas, razão pela qual não se podia andar sempre no limite com aqueles carros porque, repito, os carros não tinham limite.

Concordou com a decisão de banirem aqueles carros?

Na altura, ninguém consultou os pilotos. Foi uma decisão da FIA. Penso que devemos olhar para essa decisão no contexto da história do desporto automóvel. Sempre foi assim nos ralis ou na Formula1: quando os carros se tornam demasiado rápidos ou excessivamente caros, os regulamentos são alterados. Foi, por isso, normal que a FIA tenha decidido banir o Grupo B. Atendendo à velocidade e aos custos que os carros atingiram, penso que foi uma boa decisão.

Como recebeu a decisão da FIA sobre o cancelamento dos resultados do Rali Sanremo, tornando-se, assim, campeão do mundo de ralis em 1986?

Sempre acreditei que a decisão seria essa. Toda a gente sabia que os carros da Peugeot estavam legais e que a desclassificação no Sanremo havia sido a única maneira de tentar que a Lancia fosse campeã porque, em condições normais, a Peugeot estava mais forte que a concorrência. Faltava ouvir a decisão final. Quando recebi a notícia, estava em Paris, com o Jean Todt e tive de arranjar um smoking à pressa para a cerimónia anual da FIA. Não consigo descrever a felicidade que senti naquele momento. Ser campeão do mundo é o sonho de qualquer piloto e significa uma espécie de afirmação perante nós próprios. Sabemos quem somos e que fizemos o nosso trabalho tão bem quanto possível.

O que muda na vida de um piloto após se tornar campeão do mundo?

No meu caso, não acho que alguma coisa tenha mudado. Quando se ganha, queremos continuar a ganhar e, no meu caso, com a saída de cena da Peugeot e a mudança para a Lancia esperavam-me novos desafios pelo que havia que manter a concentração. Mais do que a minha vida, o que mudou verdadeiramente foram os carros, com a transição para o Grupo A.

Como surgiu a oportunidade de se juntar à Lancia em 1987?

A Lancia contactou-me e, uma vez mais, voltei a falar com o Ove Andersson, que me incentivou a aceitar pois a Toyota ainda não tinha o Celica GT-4 pronto.

Qual foi a reação quando conduziu pela primeira vez o Delta de Grupo A?

A primeira reação foi má. Quando testámos o Delta, o Piironen, meu navegador, comentou: “Juha, o ano vai ser longo!”. Perguntei-lhe porquê, ao que ele respondeu: “porque, comparativamente ao ano passado, o tempo que vamos passar nas classificativas vai aumentar cerca de 50%!” (risos). Apesar desta reação inicial, os carros começaram a evoluir, tornaram-se mais rápidos, mais competitivos e os ralis e os pilotos continuaram a ser os mesmos pelo que correr no mundial de ralis continuou a ser um enorme desafio e isso atraía-me.

O ano de 1987 começava com uma prova polémica, em Monte Carlo, com ordens de Cesare Fiorio a determinar a vitória de Biasion. Quer relatar a sua versão sobre os acontecimentos?

A história é simples. A Lancia queria que o Biasion ganhasse e pediram-me para abrandar. Eu parei no último troço e o Miki ganhou. Foi isso, nada mais. Naquele tempo, as ordens de equipa eram normais mas eu acabei por ganhar o campeonato, pelo que os acontecimentos de Monte Carlo não influenciaram a conquista do título…

A conquista de dois títulos consecutivos foi um feito único até então. No entanto, abandona aquela que era a melhor equipa do campeonato e muda-se de novo para a Toyota. Porquê?

A Toyota preparava-se para lançar o Celica GT-4 e o Ove Andersson, tal como havíamos combinado, chamou-me de volta e eu cumpri a minha promessa. No início de 1988, o carro ainda não estava pronto e, uma vez mais, o Jean Todt falou com Ove Andersson: “Ove, empresta-me uma vez mais o rapaz para fazer o Paris Dakar e a rampa de Pikes Peak?” (risos) Acabei por ganhar o Paris Dakar, fiquei em segundo em Pikes Peak e, em maio, na Volta à Córsega, estreámos finalmente o Celica de quatro rodas motrizes.

O Celica demorou a afirmar-se como um carro competitivo, o que o impediu de lutar pelo título em 1988 e 89. Sente que foram dois anos a marcar passo?

Não, propriamente. Eu conhecia muito bem a Toyota e sabia que eles nunca se metiam num projeto para perder. O Carro demorou algum tempo a evoluir, é certo, mas acabou por tornar-se num caro competitivo.

Certo dia, Claudio Lombardi, então à frente dos destinos na Lancia, bate-lhe à porta, na Finlândia com um contrato na mão para assinar. O Celica começava a mostrar o seu valor mas isso não o impediu de voltar para a casa italiana. O que o fez aceitar o regresso à Lancia em 1990?

O Carlos Sainz chegou entretanto à Toyota e trouxe consigo a Repsol, que se tornou no principal patrocinador. Em troca, Sainz seria o piloto número um da equipa. É claro que isso me deixava numa situação desconfortável e, como a Lancia fez uma boa proposta, acabei por voltar para a equipa italiana, onde estive três anos.

A Lancia era, nesta época, praticamente imbatível. O que destinguia a equipa italiana das suas concorrentes?

A Lancia representava a cultura italiana, um pouco como a Ferrari na Fórmula 1. Uma mistura de profissionalismo com paixão. Qualquer membro da equipa, dos engenheiros aos mecânicos, passando pelo pessoal que limpava os carros, sentia um enorme orgulho em representar a marca. O trabalho de equipa era incrível e a ligação entre o departamento de competição e a fábrica era bastante eficiente. A fábrica reagia imediatamente aos pedidos dos engenheiros e todos os anos estreava um carro novo, mais evoluído, melhorando os pontos fracos do modelo anterior. A Lancia nunca se sentou à sombra dos louros e, mesmo a dominar o campeonato, continuava a investir porque adorava os ralis, era algo que estava no coração da marca e isso fazia a diferença.

Em 1991, venceu o terceiro título de campeão do mundo, um feito inédito na altura e conseguiu, pela primeira vez, vencer o Rali dos 1000 Lagos. Estava difícil vencer em casa…

Sem dúvida! Nesse ano, ganhei finalmente o Rali dos 1000 Lagos. Já o havia liderado tantas vezes mas a sorte não queria nada comigo já que havia sempre alguma coisa que corria mal. Mas isso faz parte da vida e sempre o aceitei como parte da essência deste desporto. Houve ralis, como os da Suécia, da Nova Zelândia ou o Safari em que ganhei na primeira participação, outros houve que nunca os consegui vencer, como o Monte Carlo e, no caso dos 1000 Lagos, todos os anos tentava sem sucesso. Quando finalmente ganhei em 1991, senti uma enorme alegria pois qualquer finlandês sonha vencer o rali do seu país. No meu caso, nasci em Laukaa, o rali passava à porta da minha casa e ganhar os 1000 Lagos sempre foi um sonho para mim. Depois, estão lá todos os nossos amigos, estamos na nossa terra e tudo isso torna aquele momento especial. Acabei por ganhar o rali três vezes e essas vitórias deixaram-me bastante feliz e compensaram todas as outras ocasiões em que não consegui ganhar quer por erros meus ou por problemas mecânicos. Ganhar e perder faz parte dos ralis e é assim que a vida funciona.

Em 1992, venceu, pela primeira vez, o Rali de Portugal, então ao serviço da Lancia, feito que viria a repetir dois anos depois, na Toyota. Que memórias guarda da prova portuguesa?

Sempre gostei do Rali de Portugal. Quando comecei a correr no campeonato do mundo, o Markku Alen, então conhecido como o “Mr. Rali de Portugal” dizia-me: “Juha, tens de ir ao Rali de Portugal. É espetacular!” Pude, depois, confirmar que a prova tinha características únicas. A primeira etapa em asfalto, as restantes em terra, onde o piso era habitualmente bastante escorregadio faziam um contraste que me agradava bastante. A atmosfera era única e a paixão dos espectadores tornava o rali numa prova especial. Nesse ano de 92, lembro-me que, na primeira etapa consegui manter-me perto do Delecour, um especialista em asfalto, o que, significou, para mim, um início promissor. Depois, vieram os troços de terra tipicamente portugueses, que eu conhecia muito bem e acabei por assumir a liderança. O Delta era um grande carro e, guardo, ainda hoje, na minha garagem, o carro com que ganhei o Rali de Portugal de 92.

O ida para a Toyota em 1993 foi uma espécie de regresso casa?

Sem dúvida. O Ove ligou-me outra vez: “Juha, preciso que voltes para a equipa. Quero ter dois pilotos rápidos para ganhar finalmente o campeonato de construtores e gostaria que tu e o Didier Auriol fossem essa dupla! ”Quando saí, em 89, prometi novamente ao Ove que voltaria quando ele precisasse de mim, desde que eu ainda fosse suficientemente rápido. No final de 92, sentia que ainda era rápido e aceitei o desafio. Sabia que o carro tinha de ser bom porque conhecia a equipa. E quando testei o Celica ST185 pela primeira vez, percebi de imediato que tinha carro para lutar pelo título. Em 1993, a Toyota vence finalmente o título de marcas, tornando-se no primeiro construtor japonês a consegui-lo e eu ganho o meu quarto título de pilotos. O Didier ganharia no ano seguinte.

Durante duas décadas a competir no WRC, conheceu vários diretores de equipa. Acredito que Ove Andersson o tenha marcado especialmente…

Perguntam-me com frequência quais os diretores que mais me marcaram. Eu costumo dizer que tive a sorte e o mérito de ter estado nas melhores equipas e de ter tido os melhores líderes. No entanto, se tivesse de apontar os mais marcantes, escolheria Jean Todt e Ove Andersson. Ove foi um segundo pai para mim e estará sempre no meu coração. Era um grande líder e um grande homem, com um enorme coração. A forma como ele sempre me tratou e as oportunidades que me deu revelam a pessoa fantástica que era.

A poucas horas do início do Rali da Argentina em 1993, o seu habitual navegador Juha Piironen sofre uma hemorragia cerebral que o afastaria definitivamente da competição. Quão difícil foi a mudança de navegador após tantos anos ao lado de Piironen?

Foi um momento muito duro para mim. O Juha havia sido o meu navegador durante grande parte da minha carreira e, de repente, um problema de saúde impedia-o de continuar a nossa caminhada. Mas, como digo sempre, a vida é feita de altos e baixos. Podia ter acontecido comigo ou com qualquer outro mas foi com ele. Felizmente, ele sobreviveu e continua ainda hoje a recuperar. Quando, na altura, o visitei no hospital, na Argentina, pediu-me: “Juha, a melhor coisa que podes fazer por mim é ganhar o rali” E consegui ganhar, com a ajuda do Nicky Grist. O processo de adaptação ao Nicky foi rápido porque eu usava notas em inglês desde os tempos em que havia sido navegado pelo Fred Gallagher. A adaptação entre piloto e navegador é, cada vez mais, um processo facilitado. Nem todos podem ser navegadores de topo mas todos os que lá chegam fazem muito bem o seu trabalho. O Piironen podia ter sido navegador do Salonen, por exemplo, e teria certamente sucesso, também. O Nicky Grist ganhou ralis comigo e ganhou depois com o Colin McRae. O Seppo Harjanne foi campeão do mundo com o Timo Salonen e voltou a ser com o Tommi Mäkinen. É um questão de seres bom naquilo que fazes.

No final de 1995, irregularidades no turbo do Celica levam à exclusão da Toyota do WRC. Enquanto piloto, esteve, de alguma forma, envolvido neste polémico caso?

Não. É uma questão que esteve ao nível dos responsáveis da equipa. Na altura, questionava-se o envolvimento dos pilotos mas nós não construímos carros. O nosso trabalho é focarmo-nos na condução e ganhar ralis. É para isso que somos contratados. A construção está a cargo dos engenheiros. Põe-nos o carro nas mãos e nós testamos. E, para ser honesto, nunca notei qualquer diferença no carro.

Que impacto teve este caso na sua carreira?

Provavelmente teria boas hipóteses de ter sido campeão do mundo em 1995 e tinha mais dois anos de contrato com a Toyota que não puderam concretizar-se. Isso acabou por condicionar a minha carreira. Fiz um ou outro rali com alguns importadores mas foram anos difíceis porque nós queremos é correr e ganhar. Durante esse tempo, houve muita incerteza quanto ao futuro da equipa até que o Ove me disse: “Juha, não tenho ideia dos planos da marca. No Japão não decidiram se vai continuar ou sair. Se encontrares uma oportunidade noutra equipa, aproveita”. Acabei por assinar pela Ford a meio da temporada de 97.

Nos anos que se seguiram, conduziu para marcas como a Ford, Subaru e Hyundai. Após a conquista de quatro títulos mundiais, o que o motivava a continuar a competir?

Não tinha nada a provar mas, na minha opinião, continuava a ser rápido e competitivo e então pensei: porque não continuar a fazer aquilo de que gosto? Depois da Ford, fui para a Subaru. Tinha então 40 anos mas queria provar a mim mesmo que não estava velho, que ainda era rápido. Estabeleci então um objetivo: vencer pela terceira vez o Rali da Finlândia e ser o mais rápido no troço de Ouninpohja. Cumpri ambas as coisas! Depois veio o convite da Hyundai. Queriam alguém com experiência, que ajudasse a desenvolver o Accent mas não havia muito a fazer pois o carro não tinha potencial. Ainda assim, conseguimos alguns resultados interessantes. A Hyundai terminou em quarto lugar o mundial de marcas de 2002 e eu terminei em oitavo o Rali Safari, que foi o equivalente a uma vitória para a equipa.

Em 2002, com 43 anos, decide abandonar a competição. Achou que era o momento certo?

Podia ter continuado mais alguns anos a competir. Nós sentimos sempre que ainda somos rápidos. Mas é preciso saber parar. Bastava de competição. Havia dado tudo o que podia a este deporto…

Foi uma decisão fácil?

Não, de todo. Na altura, passei por um momento difícil e levei quase dois anos a regressar à vida normal. Durante anos, habituamo-nos a viver para correr, para competir e, de repente, quando paramos, a nossa vida muda radicalmente. O tempo encarrega-se de nos ajudar a reencontrar o equilíbrio. Comecei a participar em algumas provas para me divertir, como foi o caso do Rali de Portugal em 2010 e, há alguns anos, com um grupo de amigos, criei a Juha Kankkunen Driving School que me tem permitido manter contacto com a condução desportiva. Pelo meio, bati o recorde mundial de velocidade numa pista de gelo com um Bentley Continental. Acima de tudo, mantenho-me ocupado e ligado aos automóveis e isso é importante para mim.

O que sente quando entra no seu fantástico museu particular e vê todos aqueles carros que fizeram a história dos ralis?

Todos me trazem boas memórias porque me acompanharam ao longo da minha vida. Desde os carros de Grupo B aos de Grupo A, todos têm uma história para contar e até o Escort BDA me permite viajar no tempo e recordar os bons momentos do início da minha carreira.

Se tivesse de escolher um carro do seu museu para fazer um rali, qual seria?

É difícil. Cada carro tem o seu tempo e não podemos comparar carros de épocas diferentes. Mas, se amanhã tivesse de escolher um para participar num rali, levaria um dos Toyota ou um Lancia.

O museu é também uma forma de preservar a história da sua passagem pelo mundo dos ralis. Que balanço faz desse longo caminho que trilhou no WRC?

Foram anos fantásticos. Passei por grandes equipas, conduzi grandes carros e sobretudo diverti-me e isso é muito importante para qualquer piloto. É óbvio que as vitórias são importantes, o dinheiro é importante mas temos que nos sentir felizes e eu, quando faço um balanço da minha carreira, sinto que fui feliz a fazer o que gostava e essa é a melhor das sensações. Olhando para trás, não mudaria um único dia, mesmo aqueles que correram francamente mal porque esses também fazem parte do jogo.

Desses momentos que viveu, elege algum especial?

A vitória no Safari de 1985. Naquele dia, um “miúdo” bateu os seus heróis, os melhores pilotos do mundo, ganhou o primeiro rali do mundial e cumpriu o seu sonho…

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