A famosa Renault 4L à prova de tudo
A Renault 4, nascida nos anos 60 como resposta às mudanças sociais e símbolo de liberdade, renasceu agora como o Renault 4 E-Tech 100% elétrica. Anunciada no Salão de Paris de 2022 com o modelo 4EVER Trophy, ele mantém o espírito versátil e acessível do original, mas com um design retro-futurista a nova Renault 4 adapta-se às necessidades de hoje. Há duas décadas e meia, uma Renault 4L portuguesa, espantou o mundo dos ralis. Vamos recordá-la…
Era um dos carros mais populares dos ralis em Portugal no final da década de 1990… e não debitava centenas de cavalos nem atingia performances alucinantes. Tratava-se da Renault 4L guiada por António Pinto dos Santos, que se tornou um caso sério de popularidade inclusive noutras provas europeias do Mundial de Ralis onde participou e chegou ao final entre 1998 e 2000.
A história começa com Pinto dos Santos, então engenheiro na Câmara Municipal de Arganil a percorrer “milhares de quilómetros nas estradas de terra da região com uma 4L.
O presidente da autarquia acabou por comprar um carro idêntico a um bombeiro por 160 contos.
Só a célebre decoração do carro custou mais do dobro disso, 400 contos”, recorda.
A famosa Renault estava decorada com uma imagem do xisto, pedra característica da aldeia do Piódão (concelho de Arganil)já que a equipa da 4L era apoiada pelo programa FEDER,como forma de promoção das Aldeias Históricas de Portugal.
“Naquele tipo de conceito, de baixo custo e alta resistência, a 4L de série era um carro fantástico”, refere Pinto dos Santos. “Tinha uma robustez incrível e além do Rali de Portugal aguentou duas edições daquele que eu considero o rali mais duro que fizemos, o Rali da Acrópole, em 1998 e 99. Até chegamos a receber um set de amortecedores de uma marca famosa, mas passados dois ou três troços eles rebentavam e tivemos de reverter para os amortecedores de origem! Há tantas histórias sobre este carro”, lembra Pinto dos Santos.
No Rali de Portugal, ninguém arredava pé dos troços até aos últimos concorrentes para ver passar a célebre ‘quatréle’. “E não era só em Portugal pois na Acrópole, à entrada do terceiro e último dia de prova, o diretor grego veio-nos pedir para fazermos tudo o possível para chegar ao final, até nos ofereceu uma estadia num belo hotel, porque os adeptos não saíam da classificativa até nós passarmos e isso dava muito jeito ao nível da segurança, para controlar os movimentos dos espetadores dentro do rali.”
Depois de terem participado nos ralis de Portugal, Acrópole, Catalunha, San Remo, Córsega, Suécia e Finlândia, Pinto dos Santos e o seu navegador mais frequente, Nuno Rodrigues da Silva, chegaram a fazer os reconhecimentos do Rali Safari, no Quénia! “Foi em 1999 e só não avançamos para a prova porque o Safari tinha um conceito diferente em termos de limite de tempo para cada especial.
Ali era mais um conceito de regularidade, com médias estipuladas que eram altíssimas, algumas médias chegavam a 135 km/h e a 4L nem de máxima dava isso! Mas até nem considero o Safari mais duro do que a Acrópole.
Na Grécia tivemos de criar novos termos no livro de notas. Por exemplo, quando o piso era mau colocávamos ‘MP’ (Mau Piso). Quando era muito mau, usávamos MMP. Na Grécia tivemos de inventar e usar o PP, Piso Péssimo!”.A famosa Renault 4L ainda hoje está na posse de Pinto dos Santos, com um conta quilómetros onde consta o número 220 mil. “Impecável e indestrutível”, reforça o seu ex-piloto.
Quando a Finlândia ofereceu 1000 contos pela 4L
A Renault 4L participou e completou alguns dos ralis mais emblemáticos da Europa, como o 1000 Lagos na Finlândia. Só que na terra dos pilotos voadores, o presidente do Clube Renault local queria ficar com o carro português para demonstrações. “Ele ofereceu-nos 1000 contos por um carro que tinha custado 160. Só não chegamos a acordo porque dissemos-lhe que nesse ano ainda queríamos fazer mais alguns ralis do Mundial e ele queria que a 4L ficasse logo ali. Mas toda a gente nos vinha perguntar pelo carro, até na Suécia onde andamos sobre o gelo e a neve”, recorda Pinto dos Santos. “Como o Nuno (Rodrigues da Silva) é da Guarda ele guiou durante os reconhecimentos e depois deu-me umas dicas sobre aquele tipo de piso.”
As ‘estórias’ da Renault 4L
António Pinto dos Santos
“Tínhamos rádio na 4L e sintonizámos o posto que dava 24 horas o Rali da Grã-Bretanha. Foi o dia das classificativas ‘Mickey Mouse’. Castelos, circuitos. Quando o Makinen desistiu (1998) nós íamos na ligação e ficámos a ouvir o relato da classificativa. Éramos o 165 e nós a ouvir falarem de nós próprios. No final da etapa vínhamos na AE com problemas no carburador e ouvimos o tipo da rádio “se os virem avisem, não sabemos se estão classificados”. Passados, três, quatro minutos, avisaram “já telefonaram várias pessoas a dizer que vão descansados na AE”!
Nuno Rodrigues da Silva
“Nos reconhecimentos do Rali da Grécia, o Richard Burns viu-nos com a 4L e disse que éramos malucos, “quando estiveres lá parado e a gente passar, buzinamos-te e dizemos-te adeus”. E não é que foi mesmo assim. À entrada do troço nem queria acreditar. Pôs as mãos na cabeça deve ter sido o único momento em que se riu.
Francisco Vasconcelos
“Num Rali de Portugal chegámos a Arganil com a panela e tubo de escape arrancadas. O parque de assistência ainda era perto do edifício da Câmara, e lá havia três Renault 4L. Aflitos, foi sem dó nem piedade, levámos o escape. Não ficaram muito contentes, mas a verdade é que a 4L seguiu viagem. Noutra altura, em Amarante, a carrinha foi-se abaixo por falta de bateria, faltavam 150m para o CH. Chegou lá um Senhor de Viseu “A 4L não pode desistir, andoaqui há dois dias e prefiro ficar aqui do que a 4L. Tirámos a bateria do carro do Sr e depois do rali fomos a Viseu entregar-lhe a bateria. Não saímos de lá sem o almoço e uns copos valentes em cima…”
“Outra vez fomos para a Suécia, eu e o meu amigo Américo Paiva, mais conhecido pelo Araponga. Saímos às não sei quantas damanhã, três dias depois chegámos a Karlstadt, e quando íamos mudar os pneus “dá aí a caixa de ferramentas”, procurámos, mas ela estava a responder de Arganil. Basicamente fomos para a Suécia e nem levávamos uma chave de fendas, um alicate. Tivemos que ir a um supermercado comprar tudo, mas como sempre, nada disso foi preciso. A caixa de ferramentas é queperdeu uma oportunidade de ir à Suécia…”
“No primeiro rali fora de Portugal, a Acrópole, foi o Rogério Seromenho como navegador. Um homem com grande calma, um navegador à antiga portuguesa com prancheta de madeira e cronómetros pendurados. Uma vez teve uma inquietação com o António (Pinto dos Santos), que se começou a meter nas coisas da navegação. “Ó moço, daqui para aqui, mando eu, daqui para ali, tu fazes o que quiseres…” e o António nunca mais lhe disse nada.”
“O meu ‘irmão’ Araponga é um ‘gajo’ que ferve em pouca água, e uma vez fomos para a Córsega, e delimitámos o nosso espaço com dois pneus na assistência. Fomos ao banho e quando regressámos, os ‘gajos’ da Renault França tinham ocupado o espaço com oleados, duas carrinhas de assistência e atiraram os pneus fora. Fui falar com os franceses, que estavam com mau feitio. Comecei a levantar o oleado, vinham dois franceses em direção a mim, mas o Américo agarra num martelo de bola foi direito a eles… Arrancaram de imediato o oleado e nós ficámos no nosso sítio.”
“Era a primeira vez que íamos à Grécia, toda a gente dizia que a 4L se ia partir toda “há para lá pedras e calhaus” e por isso o António decidiu mandar fazer uma proteção para o depósito de combustível em alumínio. Logo no primeiro troço, mandaram uma ‘vergalhada’ com a parte de baixo que arrancou a proteção do depósito e quando chegaram ao fim do troço já vinham a empurrar porque o depósito já vinha pendurado pelo bocal e a perder gasolina. Estava um calor diabólico perto dos 40º e o António com a mão dentro da 4L a conduzir, o Rogério (Seromenho) encostado à carrinha e para aí algumas 50 pessoas a empurrá-lo a ele (só piloto e navegador podiam tocar no carro, senão eram desclassificados) para chegar ao fim, que conseguiram.”
O ‘livrete’ da 4L portuguesa no Mundial
1997
Rali de Portugal – 33º lugar (penúltimo)
1998
Rali de Portugal – 47º
Rali da Acrópole – 58º (penúltimo)
Rali RAC/Grã-Bretanha – 81º
1999
Volta à Córsega – 85º
Rali dos 1000 Lagos/Finlândia – 64º
Rali de San Remo – 55º
2000
Rali da Suécia – 54º
Rali da Catalunha – 55º
Rali da Acrópole – 48º
Rali Vinho da Madeira (Europeu) – 51º
Muito bom! Boas recordações, nomeadamente de um dos anos em que fui com amigos à Catalunha e lá tivemos que ir adaptando o nosso esquema para ir acompanhando a 4L (algumas vezes nas ligações, aproveitando para dar um cumprimento rápido ao Nuno). E confirmo que a 4L era sempre dos carros que mais cativava o público, mesmo passando à “velocidade 4L”.