Entrevista a Juha Kankkunen: “Ter dez campeões do Mundo no mesmo rali não era fácil”

Por a 10 Novembro 2015 18:22

Há talentos intemporais. Ver Juha Kankkunen, aos 56 anos, a dominar com a mestria de sempre um ‘simples’ Mitsubishi Lancer de Grupo N na Exponor lembrou-nos que este é um dos melhores e mais completos pilotos que o Mundial de Ralis alguma vez viu. Durante o Motorshow do Porto, o AutoSport pôde falar com o tetracampeão do Mundo sobre os mais variados temas, desde as feras do Grupo B à passagem por diversas equipas oficiais em diferentes eras tecnológicas, até à obsessão dos finlandeses pelo desporto automóvel e terminando no campeão do Mundo em título, Sébastien Ogier, cujo talento e personalidade merecem rasgados elogios do eterno ‘KKK’.   Por Ricardo S. Araújo

AutoSport: Primeiro de tudo, gostava de saber como é atualmente o dia-a-dia de Juha Kankkunen.

Juha Kankkunen: Bem, confesso que não faço muito… Estou suficientemente ocupado a manter os carros da minha colecção e além disso a minha empresa gere o programa de condução no gelo da Volkswagen, Audi e Bentley. O programa ocupa-nos dois meses do ano, em Fevereiro e Março, mas leva-nos muito mais tempo a preparar os carros. No Verão não guiámos tanto mas há sempre pequenos eventos e apresentações para a imprensa. Atualmente tento estar em casa o máximo de tempo possível. Passei 25 anos a percorrer o mundo e agora é bom ter algum tempo para ficar na minha quinta e relaxar.

A: O que faz exatamente com a Bentley, VW e Audi?

JK: O ‘Winter Driving Program’ consiste em levarmos os clientes da Bentley, por exemplo, para conhecerem a condução na neve e no gelo. Todos os carros têm um instrutor e eu sou uma espécie de instrutor-chefe, levo todos os clientes para umas voltas de demonstração. No ano passado usámos os Bentley Continental GT3. Pomos-lhes uns pneus de pregos e vamos com o carro para o gelo.

A: Li algures que foi no gelo que você aprendeu a guiar, com o seu pai.

JK: Sim, é verdade. Tenho muito boas memórias desses tempos, era uma liberdade imensa. Aprendi muito, comecei com 10 ou 11 anos e o meu pai levava-me para os lagos gelados e para as estradas na floresta para aprender a guiar.

A: Acha que esse é um dos motivos por que a Finlândia teve tantos pilotos de topo ao longo dos anos, o facto de haver tanto espaço disponível? Um jovem pode andar com o carro na quinta, pode treinar nas estradas florestais, nos lagos gelados…

JK: Acho que sim. É um dos motivos. Talvez a principal razão seja o facto de ser o desporto nacional da Finlândia. Nós somos fanáticos pelo desporto automóvel, está-nos no sangue. É um pouco como o futebol em Portugal. Todos os miúdos na Finlândia querem ser pilotos de automóveis. É algo natural. Mas claro que o facto de haver tanto espaço nos dá condições ideais para treinarmos. Como disse, nas quintas, nas florestas, nos lagos. Não há essas condições por exemplo aqui em Portugal.

A: A Finlândia é um país enorme com uma população pequena…

JK: Exatamente, e há imensas estradas, imenso espaço para treinar.

A: Foi um piloto de sucesso em três eras completamente diferentes do Mundial de Ralis: os Grupo B, os Grupo A e os WRC. Quais eram os carros mais exigentes?

JK: Os Grupo B, claro. Mas devo dizer que tive muita sorte em guiar na era dourada dos ralis. Tive a felicidade de guiar carros tão diferentes como os Grupo B, Grupo A ou WRC. Nem todos podem dizer isso, nem todos tiveram esse privilégio.

A: E como é que era guiar um Grupo B, por exemplo, na Serra de Sintra no Rali de Portugal nos anos 80, com aqueles espectadores?

JK: Sintra não era decisiva para o rali e tínhamos de ter muito cuidado com os espectadores. Tínhamos de ser rápidos mas não vínhamos em maximum attack. Era muito diferente… Quando víamos tanta gente no meio da estrada em Portugal era impossível não sentir medo. Era por isso que não vínhamos a 100 por cento, era imperioso garantir que estávamos dentro da estrada.

A: Pilotou para tantas marcas e equipas oficiais: Toyota, Peugeot, Lancia, Ford, Subaru, Hyundai… Qual foi a mais especial para si?

JK: Foram todas óptimas para mim. Sinceramente. Estive em equipas muito profissionais, trabalhei com muita gente competente e apaixonada. Mas a marca para quem trabalhei durante mais tempo foi a Toyota. Estive com eles em três períodos diferentes num total de nove anos. Era uma equipa muito familiar. A Lancia também era uma excelente equipa, muito organizada mas um pouco diferente da Toyota. Com a Peugeot só estive um ano porque o Grupo B foi abolido, caso contrário eu teria permanecido na equipa. Foi pena eles não terem um carro para o Grupo A. Foram todas boas equipas. Se eu ganhei Mundiais com três marcas diferentes é porque todas estas tinham uma boa equipa e um bom carro.

A: Durante a sua carreira enfrentou imensos pilotos de talento, muitos deles lendas do próprio desporto automóvel como você. Mas se tivesse que escolher um, o rival mais difícil de bater, qual seria?

JK: No meu tempo provavelmente o Carlos Sainz. Ele ganhou o Mundialem 1990 (ndr, com a Toyota), eu ganhei em 91 (ndr, com a Lancia), depois ele foi novamente campeão em 1992 (ndr, novamente com a Toyota) e eu fui campeão em 1993 (ndr, Toyota). Foram quatro anos de batalhas constantes, batalhas duras. Bons tempos… Enfrentei muitos pilotos de topo mas provavelmente escolheria o Carlos como o meu maior rival. Tínhamos grandes lutas nos troços mas fora dos ralis éramos bons amigos. Os ralis são um desporto diferente, não são um desporto de contacto. Estás a guiar contra o relógio e é o teu tempo que diz a verdade. Os pilotos eram, na sua maioria, amigos. Hoje em dia é um pouco diferente. Tudo é, como dizer… um pouco mais agressivo. A sociedade mudou e os pilotos de ralis também. No meu tempo havia outra liberdade.

A: Sim, nos anos 80 podíamos ver um piloto a fumar um cigarro enquanto os mecânicos reparavam o carro…

JK: Exato. Isso hoje é diferente. E os ralis são muito pequenos, são ralis de sprint. Isso muda muita coisa. O Rali Safari tinha 5.000 kms no meio do Quénia, no meio da lama, do pó, da savana. Esse era o apogeu da dureza.

A: Era quase uma questão de sobrevivência…

JK: Sim, quase… Mas eu gostava imenso do rali. Ganhei-o três vezes.

A: E sobre o Rali de Portugal, tem alguma memória ou história especial?

JK: Não tenho uma história especial mas claro que me lembro bem dos espectadores. Provavelmente era o rali com mais pessoas na estrada de todo o Mundial. Ganhei aqui com a Lancia e depois com a Toyota. Era um belo rali.

A: Alguma ‘estória’ engraçada?

JK: Tantas e tantas. Mas não me lembro de nenhuma em especial agora… Sabe, fiz qualquer coisa como 2.5 milhões de quilómetros em ralis ao longo da minha carreira.

A: Dois milhões e meio de quilómetros?!

JK: Sim, qualquer coisa como isso. Foi o Martin Holmes que fez esse cálculo e eu acredito. Pode dizer-se que tive uma longa carreira…

A: E qual é a sua opinião sobre a geração atual de pilotos finlandeses, o que acha por exemplo de Jari-Matti Latvala?

JK: Muito rápido, muito bom… mas ainda lhe falta algo. Falta-lhe ser consistente ao longo de todo um campeonato. Ele consegue ser rápido de imediato e ganhar qualquer rali mas também pode cometer um erro logo na primeira especial da prova seguinte e deitar tudo a perder.

A: Agora que fala nisso: eu acho que ao longo da sua carreira, o Juha foi alguém inegavelmente rápido mas também muito consistente. Não é possível ganhar quatro títulos mundiais naquela era, com três marcas diferentes se não se tiver essa consistência, esse estofo mental de que fala.

JK: Provavelmente tem razão. Às vezes é preciso conhecer-mo-nos bem, sabermos os nossos próprios limites. Se eu estava a andar no máximo e mesmo assim via que alguém estava mais rápido, eu concentrava-me em chegar ao final no melhor lugar possível com aquele carro, naquelas circunstâncias. Eu aceitava o segundo lugar, o terceiro ou o quarto. Pensava que aquele resultado também poderia ser importante no final do ano.

A: E o nível era incrivelmente elevado, mais alto do que agora…

JK: Ter 10 campeões do Mundo no mesmo rali não era fácil! (risos) Até para quem queria chegar aos pontos. Em alguns ralis eu chegava ao final em quinto e ficava contente, ou porque tinha tido problemas no carro ou porque simplesmente todos os pilotos à minha frente eram campeões do Mundo. Tínhamos de lutar por cada segundo.

A: Podemos dizer que, na era moderna, o Sébastien Loeb não teve um rival à altura desde a retirada de Marcus Grönholm e até ao surgimento de Sébastien Ogier.

JK: Concordo. Antes do Ogier chegar ele estava sozinho no topo do WRC. Não havia ninguém do nível dele, ninguém conseguia realmente pressionar o Sébastien Loeb, obrigá-lo a pilotar no máximo.

A: Qual é a sua opinião sobre Ogier?

JK: Piloto fantástico. Conheço-o bem. É um bom rapaz, bem agora já é um homem (risos). Muito, muito talentoso. Tenho a certeza que vai permanecer no topo durante vários anos. Ele é muito difícil de bater…

A: Visto que o conhece bem, quais são as características pessoais de Ogier que o levam a ser tão bem sucedido?

JK: Eu diria que ele não tem o estilo típico de um piloto francês. É muito calmo, muito concentrado, muito, muito bom. Quando o vemos a guiar parece que não se passa nada, parece que não há qualquer perda. E o relógio gosta dele. (risos) Atualmente, é sem dúvida o melhor piloto do mundo.

A: É curioso dizer que Ogier não tem o estilo típico francês porque vi-o em testes na zona de Viana do Castelo antes do último Rali de Portugal e fiquei simplesmente espantado com a sua rapidez e espetacularidade inatas. Lembro-me de ter pensado que Ogier é uma mistura perfeita de francês – pela eficácia – e finlandês – pela espectacularidade.

JK: Sem dúvida. O homem é muito, muito bom.

A: E também temos um finlandês em clara ascensão, que é o Esapekka Lappi. O que lhe parece?

JK: É um bom piloto mas nunca sabemos exatamente o que ele vale até se sentar num WRC e compará-lo com os melhores, como Ogier, Latvala e esses rapazes. Lappi é promissor mas temos de ver como reagirá à pressão num WRC, o quão rápido ele é, como conseguirá manter a concentração durante todo um rali.

A: Na sua época, os finlandeses eram vistos como especialistas nos ralis de terra mas não tão bons nos ralis de asfalto. Hoje em dia essa distinção parece já não existir.

JK: Sim. Estes jovens finlandeses como Teemu Suninen ou Esapekka Lappi vieram do karting para os ralis. Para eles não há tanta essa distinção e além disso os carros modernos são muito similares em terra, asfalto ou neve, o estilo de pilotagem é muito parecido em qualquer superfície. Antigamente tínhamos um carro completamente diferente para o asfalto e outro para a terra: suspensões, travões, transmissão, tudo era diferente. Agora não se pode trocar nada, tens de manter basicamente o mesmo carro. Isso significa que o estilo de pilotagem tem a mesma base, independentemente da superfície.

A: E se tivesse que escolher o pior e o melhor momento da sua carreira?

JK: Não sei… Tive muitos bons momentos e outros muito duros, mas tudo isso faz parte deste desporto. Era impossível estar constantemente a ganhar. Em alguns anos tinhas tudo para ganhar ralis e lutar pelo título e noutros não. Eu ganhei o Mundial em 1986 e 1987 e depois em 1988 só consegui oito pontos com a Toyota. Mas três anos depois voltei a ser campeão e esses altos e baixos fazem parte da carreira de um piloto.

A: Sim, mas você foi o primeiro piloto a ser campeão duas vezes consecutivas e o único a ser campeão com três marcas diferentes…

JK: Sim, esses são momentos especiais. São coisas que ficam para a História.

A: E o momento mais duro?

JK: O Rali da Finlândia, por exemplo, foi uma grande desilusão para mim nos primeiros anos porque perdi a vitória diversas vezes por pequenos problemas. Um princípio de incêndio numa ocasião com a Toyota quando tinha um minuto e meio de vantagem, noutro ano eu estava na frente do rali quando o cabo do acelerador do Lancia partiu, noutra vez eles esqueceram-se de apertar uma peça e saiu uma roda quando eu estava na frente. Tinha sempre muito azar no Rali da Finlândia. Outra vez estava na frente e faltavam dois troços para o fim, ainda por cima na minha região-natal, em Laukaa, quando o motor do Toyota partiu! Tive quatro ou cinco Ralis da Finlândia em que perdi a vitória desta forma, às vezes por peças que custavam dois euros! Por isso, eu poderia ter ganho mais cinco vezes o rali do meu país. E era sempre ali. Em nenhum outro rali do mundo tive tanto azar como na Finlândia!

A: E, para um finlandês, ganhar o Rali da Finlândia deve ser quase como ganhar o Campeonato do Mundo…

JK: Sim, é mesmo. Ok, eu ganhei a prova três vezes portanto não me posso queixar. Mas em condições normais poderia ter ganho sete ou oito. (risos) É fácil falar depois das coisas acontecerem mas chateia-me o facto de terem sido coisas pequenas. Por exemplo, um cabo de acelerador partido no Lancia. Isso nunca tinha acontecido na história daquele carro! E tinha de me acontecer a mim, na Finlândia, quando estava na frente. Na altura custou muito… Pequenas coisas, um princípio de incêndio no Toyota por exemplo, provocado por um incidente estúpido.

A: E como estamos a falar da Toyota, o seu amigo Tommi Mäkinen tem um grande desafio pela frente.

JK: Um grande, grande desafio. Estive com o Tommi há uma semana na oficina da equipa dele. É um trabalho enorme que eles têm pela frente.

A: Acha que será possível ao Tommi Mäkinen e à Toyota desafiarem uma equipa tão grande e bem sucedida como a Volkswagen?

JK: Claro que sim. Pensemos um pouco: o Malcolm (Wilson) e a M-Sport têm-no feito ao longo de vários anos e a Toyota será uma verdadeira equipa oficial, algo que o Malcolm já não é. O Tommi será o Team Manager mas ele terá apoio total por parte da fábrica no Japão. Ele não o terá de fazer como um privado. Nessas circunstâncias seria impossível mas o Tommi terá outro tipo de apoio da Toyota. Acredito que com esse apoio ele vai conseguir montar uma verdadeira equipa de fábrica.

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