Entrevista a António ‘Toy’ Borges

Por a 16 Março 2020 18:39

Por Nuno Branco

NÃO PENSAVA EM TÍTULOS. QUERIA ERA ANDAR DEPRESSA!

Os primeiros passos na competição não deixavam dúvidas: nascera com o virtuosismo dos pilotos que marcam uma era. Dois anos depois de se estrear nos ralis, e perante uma concorrência forte e experiente, o jovem António Borges arrebatava o título de Campeão Nacional, ao volante daquele que terá sido o carro mais emblemático da sua carreira: o Porsche 911. Fomos ao seu encontro. Durante umas horas, ‘Toy’ Borges colocou de lado a atual paixão – a numismática – e aceitou recuar no tempo, recordando os anos em que a tranquilidade do homem contrastava com a agressividade de um piloto que se tornaria num dos ídolos da sua geração…Por Nuno Branco

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Como é que os automóveis entram na sua vida?

Comecei a ir, ainda muito pequeno, às oficinas com o meu pai, que gostava de automóveis. Vivíamos no Porto e visitávamos com regularidade os agentes da cidade. Lembro-me de ir a uma oficina muito conhecida na altura, a do Jeremias Acácio Leite, avô do Jorge Leite e, talvez nessa fase, tenha nascido o fascínio pelos automóveis. Comecei a ir depois às corridas e lembro-me de chegar ao circuito da Boavista para ver os treinos do GP de Portugal em 1958 e assistir, mesmo à minha frente, ao acidente da Maria Teresa de Filippis. Quando tinha 12 anos, mudámo-nos para o Estoril e, embora continuasse a ver corridas, a verdade é que houve um certo refrear desse entusiasmo. Tinha uma motorizada e até andava bem, embora nunca tivesse participado em corridas. Quando tirei a carta de condução, comprei o meu primeiro carro, um Renault 8 Gordini, excelente para se aprender a conduzir. Com tracção e motor atrás, estes carros exigem uma condução mais rigorosa e perdoam menos, pelo que, aprender a dominar um carro com estas características, foi uma boa escola. Fiz muitos quilómetros com o Renault e ia muitas vezes para Sintra, à noite, andar depressa. Ainda conheci boa parte daqueles troços em terra…

Daí até à estreia em competição, seria um pequeno passo…

Em 1970, inscrevi-me no Campeonato de Iniciados Sul. Os ralis que o compunham eram simples demais e, na estrada, faziam-se normalmente ‘a zero’, sem penalizações. Eram então decididos nas provas complementares de perícia, que nunca gostei de fazer, e pouco talhadas para as características do Renault 8 Gordini. Curiosamente, no primeiro em que participei, não o fiz ‘a zero’, já que penalizei por avanço no controlo final e classifiquei-me abaixo do 10º lugar. Depois, nos restantes ralis, fiquei algures entre o 3º e o 5º lugares, o que permitiu classificar-me entre os seis primeiros e disputar a final, que juntava os melhores das zonas norte e sul no Rali do Fim de Ano, na Figueira da Foz. Era à partida um rali relativamente simples de fazer sem penalizar, mas na noite anterior, caiu um grande nevão o que tornou a prova bastante interessante. Acompanhado pelo Pedro Garcia, acabei por vencer a prova, o que me deu uma enorme satisfação.

Terá este resultado sido determinante para começar a encarar a competição de forma séria?

Desde que comecei a andar de carro, apercebi-me que andava relativamente depressa, mas esta vitória no Rali de Fim de Ano foi, de facto, marcante e motivadora. Em 1971, dirigi-me ao ACP para me inscrever no Campeonato de Promoção e quando me perguntaram em qual das três zonas – norte, centro ou sul – me queria inscrever, hesitei uns segundos e respondi “nas três!” Seguiu-se uma reacção de espanto já que, no secretariado do ACP, nem sabiam se tal era possível e o regulamento também nada referia. Depois, lá me convenceram a escolher uma só zona e, como a do centro nem chegou a ver a luz do dia, escolhi a do sul. Na primeira prova, o Rali de Silves, fiquei em segundo, depois de andar taco a taco com o Aurélio Santos Almeida, em Lancia. Ganhei depois o segundo rali do campeonato e a Guerin, que tinha na altura uma iniciativa, o Clube V, propôs-me fazer umas corridas de Fórmula V. Aceitei, mas para tal, tive que me inscrever no Nacional de Fórmula V. Só mais tarde me apercebi que tal era, à luz dos regulamentos, incompatível com a disputa de um campeonato de promoção e optei por desistir da competição. Resultado: nunca fiz nada de jeito na Fórmula V e desisti de um campeonato que podia ter vencido. Fiz também alguns ralis do Nacional, com um BMW mas nesses, o meu navegador foi o Luís Pedreira, já que o Pedro Garcia tinha carta há menos de um ano e não podia participar em provas do Nacional. Lembro-me de um episódio no Rali do Centro, cujo primeiro troço consistia em subir a florestal da Lousã, ainda em terra. Na altura, achei que a subida me tinha corrido bem, mas na assistência, quando disse ao Paixão, mecânico do Jaime Rodrigues, o tempo que havia feito, ele disse-me logo que o tempo não era bom. Abriu o capot e, de imediato, concluiu que o motor do BMW estava a trabalhar em 3 cilindros! Na segunda passagem, e após o problema solucionado, vi de facto a diferença de andamento. Ganhei o troço, mas desisti em Arganil depois de bater nuns troncos que não estavam lá nos reconhecimentos. Mesmo que não tivesse batido, a verdade é que, dificilmente chegaria ao fim, já que não tinha pneus para fazer todo o rali…

E no final de 71, pouco tempo depois de iniciar a sua carreira, já estava a conduzir um Porsche 911S…

É verdade. No final desse ano, inscrevi-me no TAP com o meu Porsche 911S 2.2, que tinha apenas uma preparação ligeira, ao nível dos escapes. O rali era muito extenso e exigia muito trabalho de preparação e eu não tivera oportunidade de conhecer o percurso de forma adequada. Curiosamente, viria a desistir numa zona que conhecia bem, em Sintra, batendo com a traseira num muro e já não dando para continuar. No ano seguinte, estive para integrar o Team Kendall mas, à ultima da hora, acabou por ser o Giovanni Salvi o escolhido e acabei por fazer o campeonato com o Porsche. A preparação esteve inicialmente a cargo do Jaime Rodrigues, mas passei depois para a Guerin, que decidira criar uma estrutura de assistência. Fiz um bom campeonato, já com o Pedro Garcia ao meu lado e fui campeão na categoria GT.

Sagrou-se campeão nacional dois anos após a sua estreia na competição. A que se ficou a dever este início auspicioso?

Não sei explicar, mas quando disputei as primeiras provas do Nacional com a malta que lá andava, notei que os pilotos estavam muito acomodados uns aos outros. Todos sabiam o que os outros andavam e não se esforçavam muito para andar mais. Eu cheguei cheio de vontade e queria era andar depressa, começando a ganhar ralis. Talvez fosse isso que me permitiu ser bem-sucedido…

No final desse ano de 72, foi uma das grandes figuras do Rali TAP, intrometendo-se na luta entre os pilotos estrangeiros. Recorde-nos as peripécias desta prova…

Para o TAP, reuniram-se vários factores que me permitiram encarar o rali com confiança. Em primeiro lugar, quando cheguei à prova, era já campeão nacional, o que me libertou para andar à vontade, sem pressões. Depois, treinei bastante e conhecia bem o percurso. Mas o carro já acusava algum cansaço, pois vinha de uma época inteira, e o motor nunca havia sido mexido. Apenas a caixa fora reparada, uma vez que, antes da Volta a Portugal enganaram-se a montar os carretos e trocaram o carreto da quarta velocidade com o da quinta, o que me obrigava a engrenar a quinta quando queira meter a quarta e vice-versa. No TAP, andei bem, até gripar uma biela, quando discutia o terceiro lugar com o Tony Fall, no Datsun 240Z e o Bjorn Waldegard, no Citroen SM Proto. Foi um rali sempre a andar, sem tempo para descansar, com longas ligações e controlos apertados a obrigarem-nos a andar sempre depressa, mesmo entre os troços. Lembro-me que, na assistência antes da ligação para o célebre “Cavalinho”, esqueceram-se de por gasolina. Tive que parar para abastecer, o que me obrigou a fazer depois uma longa ligação a fundo, para não penalizar. Cheguei ao início do “Cavalinho” mesmo a tempo de partir e, com a embalagem que levava, fiz a descida “a zero”, completamente a fundo, sendo um dos poucos a consegui-lo, juntamente com alguns pilotos de fábrica.

Nesta altura em que os ralis eram, acima de tudo, uma louca aventura, um piloto tinha consciência dos riscos que corria?

Nem pensávamos nisso. Participar nestas provas era uma aventura, não apenas pelas horas levadas ao volante, mas também pelos sítios onde conduzíamos. Passávamos no fim do mundo! Hoje as estradas são boas, mas, na altura, chegávamos às aldeias mais isoladas através de caminhos estreitos, com sequências de curvas e contracurvas. Os habitantes fugiam para dentro de casa quando chegávamos, julgando certamente que éramos extra terrestres! Lembro-me de passar em povoações nas zonas de Arganil ou da Cabreira, completamente isoladas do mundo. Recordo um Rali Targa em 72, disputado na zona da Cabreira. O primeiro sector anunciava 80km mas tinha, na verdade, cerca de 120, com dois controlos de passagem. Quando passámos no segundo controlo, perguntámos se já tinha passado muita gente e responderam-nos que tinham passado apenas dois e um deles em sentido contrário! No dia seguinte ainda havia gente a tentar sair da cabreira, completamente perdida naquele labirinto. E quando ficávamos na estrada, ninguém nos ia buscar! Sem as formas de comunicar que existem hoje, as assistências ficavam à nossa espera e, por vezes, era difícil descobrir onde havíamos parado. Uma vez, o Raposo de Magalhães mandou um Datsun para dentro de um buraco e ficou lá toda a noite. Ele bem gritava a pedir ajuda, mas ninguém chegava perto. Só no dia seguinte conseguiram tirar o carro com uma junta de bois…

Nestas condições, era frequente ver os pilotos estrangeiros a percorrer todas estas estradas antes de cada Rali TAP. Víamos muitas vezes os seus carros de treinos parados à porta dos sítios onde se comia. Eles conheciam melhor as tascas que nós (risos)…

Que ambiente se vivia nos ralis portugueses nessa época?

De uma maneira geral, era bom. Entendíamo-nos bem. Encontrávamo-nos nos treinos, combinávamos para irmos comer aos mesmos sítios e convivíamos de forma saudável. Não quer dizer que não houvesse uma rivalidade ou outra, mas eu, que nunca andei lá para me chatear, fazia de conta que não era nada comigo…

O que o movia na competição?

Fazer as provas, estar lá, andar depressa, nunca pensei em ganhar campeonatos.

Como se conduzia um Porsche em ralis?

O Porsche não era muito diferente do Renault 8 Gordini que eu conhecia bem, embora tivesse muito mais força. Nessa altura, os pneus não tinham a largura que têm hoje, pelo que nunca se podia deixar a traseira agarrar demais; tinha que se deixar um bocadinho solto e controlar a traseira com o acelerador. As provas de perícia são um bom exemplo de como se devia pilotar um Porsche. Geralmente, havia a tendência para chegar ao taco, virar o volante e acelerar, o que fazia com o que o carro saísse de frente. Conseguia-se uma maior eficácia travando e virando ainda a travar, com a frente bem para baixo e contornando os tacos sem acelerar muito, para não sairmos de frente.

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O ano de 72 seria igualmente marcado por uma regular actividade nas pistas. A velocidade também o atraía?

Embora preferisse os ralis, gostava muito da velocidade, sobretudo em pista, ao contrário das rampas, que nunca apreciei. Lembro-me que, ainda em 1971, ganhei, em Vila do Conde, a primeira corrida a contar para o Troféu Datsun e, em 1972, fiz algumas corridas de Fórmula Ford e gostei bastante. Corria contra pilotos como o Ernesto Neves, o Paçanha, etc. Lembro-me de um episódio engraçado em Vila Real, na sequência de um acidente na curva da Salsicharia que envolveu, entre outros, o António Barros, o Santos Mendonça e o holandês Roelof Wunderink. Quando passei pelo acidente, reparei que o Barros, que geralmente precisava de ajuda para entrar e sair do F.Ford, havia já saltado do carro, dirigindo-se para as boxes. E aí, ao microfone do locutor, e em directo para todo o circuito, dizia “a culpa foi do filho da mãe do holandês que me bateu!” Depois da aprendizagem em Vila Real, fui segundo em Vila do Conde e desisti no Estoril, uma corrida que teve Fórmulas V e Super V à mistura e onde não evitei um toque no carro do Bacelar de Moura, depois deste fazer um pião à minha frente. Foi a última corrida que fiz de Fórmula Ford, já que a competição acabaria precisamente nesse ano. Nesse fim-de-semana, no Estoril, participei ainda numa corrida do Troféu da Europa de GT, num Porsche alugado à Kremer, fazendo equipa com John Fitzpatrick, que guiava o outro 911S. Recordo-me que não levei a prova muito a sério. Gostava muito de festivais de jazz e, nesse fim-de-semana, tocava um pianista no Casino e eu fui vê-lo nas duas noites. Resultado: nos concertos estava mais a dormir do que acordado e nas corridas também. Treinei pouco e não me lembrei de praticar os arranques. Parti do meio da grelha e fiz um arranque cauteloso, sendo passado por 3 ou 4 carros. Nas voltas seguintes, fui subindo na classificação e quando tentava fazer uma ultrapassagem por fora nos “esses” antes da parabólica, apanhei uma zona mais suja, fiz um pião, passei por cima do corrector e tive problemas num dos pneus, o que me fez perder muito tempo. Acabei por ficar em 8º e último classificado…

Depois de ser campeão em 72, com o Porsche, como surge a decisão de alinhar no Nacional de 73 ao volante um Alpine Renault?

A Renault do Porto tinha lá esse carro e, um dia, telefonaram-me para casa e desafiaram-me a ir dar uma volta para o experimentar. O carro era de série e, como gostei de o conduzir, pediram-me para fazer uma proposta e eu propus pagá-lo em 24 letras. Eles aceitaram e fiquei com o carro, acabando por vender o Porsche. Lembro-me que comprei os restos do Alpine do Colaço Marques, que tivera o acidente no TAP de 72 e na SICAR, a oficina da Renault onde também haviam sido preparados outros carros como o do José Lampreia, prepararam-me o Alpine que, de início, ficou com um aspecto fora do vulgar, com as abas quadradas, adquirindo, mais tarde uma forma mais convencional. Inesperadamente, consegui terminar o TAP de 73 em sexto, com a suspensão muito mal tratada e sem amortecedores no lado direito. Mas após a prova, a Renault Francesa deixou-me cá algum material e disse-me como regular a suspensão, um processo relativamente simples: faziam-se umas molas a partir de um Renault 8 e, em vez de um apoio em alumínio, punham-se três. O carro ficava mais alto mas com um curso mais curto, passando assim por cima de todo o tipo de piso sem problemas…

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Entre o Alpine e o Porsche, qual merecia a sua preferência?

O Porsche oferecia mais garantias de chegar ao fim das provas. Era de facto imbatível na relação performance-fiabilidade. O Alpine conseguia ser, por vezes, mais rápido, mas o que me atraía no carro francês era a diversão que proporcionava a sua condução.

Em 1974, com a competição praticamente parada em Portugal, decide participar em algumas provas do Campeonato da Europa (ver caixa). É possível estabelecer uma comparação entre o andamento dos pilotos portugueses nessa época e aquele que se praticava nos ralis do Europeu?

Nos ralis que disputei, conheci espanhóis e italianos muito bons em asfalto, mas em terra, sobretudo no piso demolidor, tínhamos pouco a aprender com os pilotos estrangeiros.

Depois dos resultados alcançados em 74, seria de esperar uma participação ainda mais ambiciosa no Europeu do ano seguinte. Chegou a estar nos seus planos?

Pus essa hipótese, mas depois, começou a haver pouco dinheiro para fazer essas coisas e os patrocínios também escassearam, pelo que não consegui levar esse projecto para a frente.

Em vez disso, aposta em 1975 no Nacional de Ralis, discutindo o título até à última prova…

Fiz a maioria das provas do Nacional de 75, com um Opel 1904 SR de Grupo 1, que pertencera à extinta equipa GM e fiz a Volta ao Algarve de Porsche 911. Nesse ano, teria sido campeão nacional se tivesse apresentado um protesto contra o meu amigo Manuel Inácio, que andava com um carro completamente fora dos regulamentos. O Motor até nem era o pior, mas sim a suspensão… Nestes carros, as molas começam a ir abaixo e, no mau piso, o carro começava a ficar com a frente mais baixa. Durante as provas, o “Manel” substituía o trem dianteiro por outro, com molas especiais e, antes do fim da prova, voltava a por as peças originais. Não era o único e toda a gente sabia que isso se passava, mas para haver desclassificação, tinha de haver um protesto de alguém. Na altura pensei, “eu não ando aqui para vencer títulos, quero cá saber do campeonato”, e não protestei. Perdi o campeonato, mas ganhei um amigo para a vida…

Em que moldes se deu a sua participação no Rali de Portugal de 75, integrado na equipa oficial da Fiat?

O 5º lugar obtido no Europeu, conferia-me o estatuto de prioritário A no ano seguinte. Para o Rali de Portugal, estava inicialmente inscrito com o Opel de Grupo 1, o que se antevia problemático, uma vez que, como prioritário, tinha que partir à frente dos não prioritários e ter um grupo 1 na lista dos primeiros a partir para a estrada, podia trazer algumas complicações. Acontece que o Bernard Darniche, que estava inscrito, teve uma lesão em França e não pode vir à prova. A Fiat cedeu-me então um carro de treinos para participar no seu lugar, deixando bem claro que não teria direito a assistência. Apenas 4 pneus e uma série de jantes. O rali começava no asfalto de Sintra, onde utilizei pneus que me restaram do Alpine. Para a restante prova, teria os quatro Pirelli cedidos pela Fiat e os Mabor para terra. O rali fora preparado para fazer de Opel, com o objectivo de gerir andamento e chegar ao fim. Numa curva “manhosa” do troço de Alpiarça, bati de lado numa árvore e já não consegui sair do troço. Foi pena pois, caso tivesse conseguido prosseguir, a Fiat ter-me-ia reparado o carro porque, entretanto, o Alcide Paganelli desistira e eles passariam a assistir-nos e a ceder-nos os seus pneus. No entanto, enquanto andámos em prova, acabámos por ter assistência da marca. Quando eu e o João Anjos passávamos pela assistência da Fiat, os mecânicos acenavam-nos e nós parávamos. O Fiat 124 tinha rapports muito curtos e um motor bastante rotativo. Quando assim é, há a tendência para se puxar muito pelas mudanças. Parece que se vai muito depressa mas, na verdade, isso não acontece. Requer quilómetros de habituação. Caso não tivesse desistido, acabaria por me habituar ao carro e até poderia ter dado para fazer uma prova interessante…

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A partir de 76, começa a participar menos assiduamente em provas, mas ainda foi, ao Costa Brava de Porsche…

Assim foi. Alinhei no Costa Brava e fiz também o Rali de Portugal com um carro que, em teoria, seria o mesmo que utilizara em 72. Tinha ideia de fazer mais provas, chegando a fazer tentativas para arranjar apoios, mas deixou de haver dinheiro, quer da minha parte, quer dos patrocínios e os projectos ficaram na gaveta. Durante parte da minha carreira, paguei do meu bolso para correr e, quando assim é, torna-se mais fácil conseguir apoios. Quando não se tem dinheiro próprio para correr, também fica mais difícil conseguir patrocínios.

Em 1983, participa no Rali Monte Carlo. Conte-nos como surgiu esta ideia?

A ideia partiu do João Anjos e o objectivo era fazer o rali para adquirir experiência e voltar no ano seguinte, com melhores condições e maior conhecimento. Fomos efectivamente ao rali de 83 (ver caixa), mas a ida do ano seguinte acabou por não acontecer. Depois do Monte Carlo, ainda fiz o Rali de Portugal, mas o carro começou a desfazer-se aos bocados…

 Mantém intacta a paixão pelos automóveis?

Mantenho a paixão. A paciência é que já não é a mesma (risos). Mais recentemente, ainda fiz algumas corridas de troféu com os Fiesta e com os Rover, tendo aí obtido a minha última vitória fazendo equipa com o meu irmão. Lembro-me de ir tirar uma licença à última da hora e, como tinha mais de 50 anos, tive que fazer um electrocardiograma com prova de esforço, o que me permitiu concluir que a “máquina” ainda estava aí para as curvas…

Como vê a evolução sofrida pelo desporto motorizado nas últimas décadas?

Como em tudo, no desporto automóvel também há pouco dinheiro e penso que se devia adaptar o desporto ao dinheiro disponível. Caso contrário, temos provas com poucos participantes. Há que nivelar por baixo para atrair mais gente. Sempre tivemos a mania de fazer cá o mesmo que se faz lá fora e depois temos um ou dois pilotos a discutir as vitórias. Eu sempre procurei competir onde houvesse concorrência, para poder comparar-me com os outros. Nunca escolhi as provas que me permitissem ganhar, mas sim as que tivessem um nível competitivo mais elevado. Foi sempre esse o meu critério, mesmo quando escolhi as provas a que fui ao estrangeiro.

Se tivesse agora 20 anos, sentir-se-ia tentado pela competição automóvel?

Não sei. Hoje o desporto automóvel baseia-se em sessões contínuas de testes e eu nunca tive muita apetência para isso. Gostava era de pegar no carro e competir. Os carros são hoje mais sensíveis a afinações e, no nosso tempo, andavam, fosse como fosse…

De que sente mais saudades dos tempos em que corria?

Sempre gostei da descoberta de sítios onde não iriamos de outra forma. Do convívio e, claro está, da competição.

Há cerca de 3 anos, na Super-Especial dos Jerónimos, por ocasião do Rali de Portugal, teve um reencontro muito especial…

Voltei a conduzir o Porsche 911 com o qual conquistara o título em 72. O carro andou vários anos perdido, vindo a ser adquiro pelo Pedro Garcia, o meu navegador da altura, que o tem vindo a restaurar nos últimos anos.

O que sentiu quando voltou a acelerar no Porsche que tantas alegrias lhe deu?

Cheguei à conclusão que devia ser maluco, para ter andado tão depressa com aquilo há 40 anos. Não devia ser bom da cabeça (risos)…

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A PARTICIPAÇÃO NO EUROPEU

Estávamos em 1974. A crise energética ditara a abolição da maioria das provas do panorama automobilístico português. Não é portanto de estranhar que “Toy” Borges tenha galgado a fronteira para fazer aquilo que mais gostava. A participação em ralis do Campeonato da Europa saldar-se-ia por um quinto lugar na contenda. No entanto, como nos explica o piloto, tal nunca fora premeditado: “eu nunca fiz o Campeonato da Europa, fiz, isso sim, algumas provas do Campeonato da Europa, já que a nossa participação nunca foi planeada. Já em 73 havia ido a dois ralis em Espanha, o Firestone e o RACE, com o Alpine e não acabei nenhum deles. No início de 74, participei em algumas provas do Europeu, sem quaisquer planos para discutir o que quer que fosse. A primeira foi o Rali da Costa Brava, que fiz ainda com o Alpine. A Renault, em vez do mecânico que costumava ceder para me acompanhar, decidiu enviar para essa prova um bate chapas! Eu achei estranho, ir um bate chapas para me dar assistência a um carro de plástico, mas enfim, lá fomos. Mal chegámos, o carro custou a pegar. Fomos mudar as velas, mas só foi possível mudar três, já que a quarta ficava por baixo da barra da suspensão e o bate chapas não levara a chave específica para aceder àquela zona. A dita vela acabou por nunca ser mudada e o carro fez o rali, praticamente com 3 cilindros, o que nos obrigou a andar com cuidado. Ao fim das três primeiras etapas, em asfalto, com muitos espanhóis a andar bem, estava abaixo do décimo lugar mas, no último dia, disputado em terra, subi muitos lugares, acabando em quinto. Umas semanas depois, fui ao Firestone, já com o Porsche, terminando em segundo. Com essas duas pontuações, logo na fase inicial do Campeonato, fiquei muito bem classificado no Europeu. Depois do Firestone, não tinha programado fazer mais nada, mas o Mário Figueiredo, que se havia comprometido em ir ao Rali das Túlipas, deparava-se com uns imprevistos e pediu-me para eu ir no seu lugar, evitando, assim, falhar ao compromisso que assumira junto da organização holandesa. Eu fui e fiquei em terceiro, embora pudesse ter ganho. Foi um rali com casos estranhos: no final da primeira etapa estava em primeiro. Depois retiraram-me desse lugar porque, entretanto o Walter Rohrl, que havia sido desclassificado por excesso de velocidade numa das ligações, fora reclassificado… Depois deste resultado estive muitos meses sem fazer nada. Mais tarde, resolvi ir ao Rali Rias Bajas, que não contava para o campeonato, tendo ficado em segundo. Resolvi depois fazer mais um rali do europeu, o S. Martino de Castrozza, que não me era muito favorável, já que os troços eram feitos com tempo mínimo e, naqueles mais talhados para mim, o tempo dado permitia a muita gente completar sem penalizar, o que me impediu de ganhar tempo aos demais. Tínhamos o quarto lugar assegurado mas, no final, controlámos mal o tempo de um piloto italiano que vinha em quarto e, juntamente com uns problemas que tivemos num amortecedor, ficámos em quinto. Lembro-me de um episódio vivido com o vencedor do rali, Fulvio Bachelli. Havia um troço maioritariamente em asfalto com apenas 1 km em terra e como a nossa assistência era limitada e não havia oportunidade para mudar muitas vezes de pneus, partimos com borrachas de terra, a pensar no troço seguinte. Antes da partida, estávamos a conversar e o navegador do Bachelli veio ter connosco, perguntando, admirado, se íamos fazer o troço com os pneus de terra. Perante a minha resposta afirmativa, e como eles iam com pneus Racing, pediu-me para o deixar passar quando chegassem à nossa traseira. Disse-lhe para estar descansado, mas a verdade é que eles nos ganharam apenas 15 segundos no troço e nunca sequer se aproximaram no nosso carro.

No final da temporada, e como estávamos bem classificados, decidi então participar em mais uma ou outra prova, aí sim, com o objectivo de ir buscar umas pontuações e terminar o campeonato em segundo, atrás do Rohrl, que era já inalcançável. E lá fomos ao Rali de Lugano, onde tivemos pouca sorte já que chegámos muito depressa a uma curva longa rápida com uma ponte no fim e batemos numa árvore, demos umas cambalhotas e caímos num ribeiro. Nada sofremos mas depois de subir o morro, o António Morais deixou cair o extintor em cima do pé e magoou-se. Não acabámos o rali e, com o Porsche em mau estado, já não fomos a mais nenhum. Acabei por fazer 4 pontuações e podia ter feito 8. Bastava-me ter terminado mais um rali relativamente bem colocado e chegaria ao segundo lugar do campeonato mas o acidente hipotecou qualquer possibilidade e assim, ficámos em quinto no campeonato…”

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NO MOULINON, ENTRE AMIGOS

Onze anos após a brilhante prestação de Francisco Romãozinho no Rali Monte Carlo, Portugal voltaria a estar representado na mítica prova, através de António Borges e Alfredo Lavrador, que se aventuraram pelas estradas do sul de França, ao volante de um Opel Kadett.  Volvidos 31 anos, “Toy” Borges recorda-nos a participação num rali que começou a ser preparado com grande antecedência: “ O ACP ofereceu-nos a inscrição, e iniciámos uma série de contactos, entre os quais, com o experiente Simon, que ficou incumbido de nos preparar e assistir o carro durante o rali. A assistência seria partilhada com outro concorrente, o bem conhecido Ives Jouanny, dono do restaurante La Remise, famoso por oferecer tartes de maçã aos concorrentes à passagem por Antraigues. Começámos por ir a França em Novembro do ano anterior. Levámos o carro num reboque, atrelado a uma carrinha Opel e fomos directos a Avignon, à oficina do Simon, onde o carro iria ser preparado. Lembro-me de lhe pedir para dar prioridade à suspensão e aos travões. Depois de deixar o carro, fomos na carrinha Opel tirar notas. Andámos lá cerca de 15 dias e passámos imenso frio, o que me obrigou a ir comprar umas luvas à pressa. Dez dias antes do rali, lá fui eu para o Mónaco no Renault 5 que a minha mulher utilizava. Passámos outra vez nos troços e o Opel estava pronto para a partida. Tinha à disposição três jogos de pneus: uns racing com pregos que nunca cheguei a usar, uns slicks e outros para piso molhado. A prova foi feita sem grandes exageros, sem a presença de neve, o que me deixou alguma pena. Tivemos alguns percalços mecânicos, nomeadamente com a bomba de gasolina, que aquecia e deixava de trabalhar, voltando a funcionar depois de parar uns minutos. Uma das vezes em que o carro parou foi precisamente no Col de la Fayolle, no troço do Moulinon. Mal saí do carro, começo a encontrar só gente conhecida, com a qual convivia diariamente na “Ceuta”. Petronilho e companhia, todos à minha volta, mexendo no carro, abrindo e fechando o capot, abrindo a mala, etc. Eu dava à chave sem sucesso. Numa altura em que pensava já que iria desistir, faço uma última tentativa e o carro, que entretanto arrefecera, lá pegou. A malta portuguesa só dizia: ‘estás a ver, nós é que o arranjámos?!’ Quando os reencontrei em Portugal, disse-lhes na brincadeira: ´vejam o meu azar, levo convosco todos os dias em Portugal e, no rali, fui logo parar no sítio onde vocês estavam (risos)’! Apesar deste problema, chegámos ao fim, terminando no 43º lugar e 10º do grupo A, o que foi positivo, atendendo ao número de inscritos e ao elevado conhecimento que eles tinham do terreno. No fim, o Opel já gastava muito óleo e, dos três jogos de pneus que levei, ainda trouxe alguns para usar noutros ralis em Portugal…”

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