A última entrevista de Joaquim Moutinho ao AutoSport
No dia em que perdemos Joaquim Moutinho, o AutoSport recorda a última entrevista que nos deu.
O talentoso Joaquim Moutinho
O que dizer de um piloto que vence, em Vila do Conde, a primeira prova do Troféu Datsun em que alinha, que faz um tempo canhão no Estoril, durante as primeiras voltas ao volante do Commodore GS/E, que vence em Vila do Conde, a corrida em que, pela primeira vez, conduz o Porsche 935, vindo anos depois a dominar o Rali Sopete, a primeira prova que realiza ao serviço da equipa oficial da Renault?
O talento de Joaquim Moutinho encarregou-se de colocar o seu nome entre a ‘nata’ do automobilismo português. Razões mais do que suficientes, portanto, para uma enriquecedora conversa com um dos “grandes” da sua geração…
Por Nuno Branco
Ainda se lembra como surgiu o gosto pelos automóveis?
Não surgiu. Nasci assim! Desde que tenho memória, essa foi sempre a minha grande paixão. Enfim, há coisas piores…
Como é que um rapaz de tenra idade convence a família a aceitar a sua vontade de competir no Karting? Ou terá sido antes ao contrário?
Quando entrei no antigo 1º ano do liceu – até lá tinha sido aluno do Colégio Italiano – o meu pai ofereceu-me um kart McCulloch MC-10. Uma relíquia nos dias de hoje e uma máquina na época. A partir de então, os tempos livres seriam passados na pista de S. Caetano, em Gaia. Se o vício já era grande, a partir daí, desenvolveu-se desenfreadamente.
Recorde-nos o dia em que se estreou na competição automóvel no longínquo ano de 1972…
Foi precisamente num Rali do Académico que, se não estou em erro, contava para o campeonato de Promoção desse ano. A ordem de saída para a estrada era decidida pelo tempo realizado em duas ou três voltas cronometradas ao Estádio do Lima. Ficámos imediatamente à frente do Pedro Meireles, num carro igual, e este acontecimento viria a modificar profundamente a minha vida…
O incentivo por parte da família, nomeadamente do seu pai, foi determinante para pensar a sério numa carreira ligada aos automóveis?
Não, de todo. Sempre fiz o que pude, arrisquei algumas vezes para lá do que devia, mas fi-lo sempre por paixão. O meu pai ajudou em algumas ocasiões, a avó noutras e a mãe, noutras ainda. E assim, com a ajuda de patrocinadores, da família, e de alguns bons resultados, lá fui fazendo o que gostava. Não me arrependo de nada. O que vivi está cá. E parti quando quis, sem arrependimentos, sempre com excelentes relações com quase todos os elementos das equipas por onde passei.
Os primeiros êxitos em ralis não tardariam a aparecer…
Assim foi. Ganhámos a prova seguinte. Aprendemos com o Pedro Meireles, colocámos suspensões novas e molas altas, o que acabou por resultar…
Quais os atributos do Datsun 1200 e como era conduzi-lo?
O 1200 era inquebrável. Servia para automóvel de todos os dias, para treinar e para fazer as provas – ralis, rampas, circuitos, tudo – e apenas necessitava de gasolina, óleo, pneus, pastilhas, discos, e pouco mais. Uma referência na minha juventude que ajudou muitos jovens a competir a custo reduzido. Um “must”!
Logo no ano de 72, venceu o Troféu Datsun, decidido na última corrida, no Estoril, numa interessante luta com Santinho Mendes. Em que assentava o sucesso desta iniciativa, ainda hoje considerada uma grande escola para os pilotos da sua geração?
Nos baixos custos, na sua excecional fiabilidade, no facto de ser um troféu com carros de tração traseira, muito equilibrados e fáceis de conduzir. Foi uma excelente ideia do Entreposto Comercial, impulsionada por nomes como o do arquiteto Gomes Teixeira ou o de Manuel Gião (pai).
Como surgiu a ligação ao projeto British Leyland de Portugal e que balanço faz dessa etapa da sua carreira?
O ‘culpado’ chama-se Mário Gonçalves, meu grande amigo. Já nos conhecíamos desde os nove anos e o Mário era o responsável máximo pelo departamento de competição da BLP Norte, sendo também o patrão da marca e, portanto, com uma forte ligação à Austin. A intenção era formar uma equipa jovem e rápida, e o Mário Gonçalves arriscou tudo em três malucos da época: o Pedro Meireles, o Rui Gonçalves e eu próprio. Não lhe ‘perdoo’ o facto de me ter vendido a ideia do Austin Maxi 1750 Grupo 2 com uma série de componentes que o tornavam, aos meus olhos, no “carro a bater”. Pena foi que as peças para esse automóvel nunca tivessem chegado, por dificuldades da própria fábrica quanto ao seu desenvolvimento. Apenas recebemos umas magníficas jantes Minilite, com as quais disputámos o Rali Efacec e, unicamente com essa enorme redução do peso suspenso em cada roda, aliado ao facto de a largura dos pneus ser bem superior, conseguimos um 2º lugar da geral, atrás do Giovanni Salvi em Porsche. Discutimos a vitória até ao fim. Imagine-se o que teria acontecido se esse carro tivesse tido a tal preparação completa…
Fez parte daquela que terá sido, eventualmente, a última fornada de pilotos para os quais era comum disputar, na mesma temporada, os campeonatos de ralis e de velocidade. Como era conciliada, ao longo do ano, a presença nas pistas com a participação em provas de estrada?
Com naturalidade. O que interessava mesmo era correr. Nunca pensei em campeonatos ou troféus. Dou-lhe um exemplo: em 1972 teria sido suficiente ter-me inscrito e participado na Rampa de Valença/Monção – não consigo precisar o nome exato da prova – e terminado a mesma num lugar modesto para ser campeão da Promoção desse ano. Pois não o fiz. Veja a importância que eu dava a essas coisas. Pelo menos nessa altura…
Em 1976, passa a conduzir o Opel Commodore GS/E, que lhe permite disputar as vitórias no Campeonato Nacional de Velocidade. O modelo alemão era já um verdadeiro carro de corridas?
Para a altura era um carro a sério. Não tinha muita potência, porém, era muito equilibrado. Bons travões, boa suspensão, boa direção, boa tração e aderência lateral. Tudo isto permitia andar muito depressa se apreendêssemos bem o método de utilização do carro. Não era tão leve como um Escort, nem tão rápido como um Capri, não tinha a relação peso/potência de um Dolomite, mas tinha o melhor conjunto: era razoavelmente bom em tudo. Quando bem aproveitado, poupando-se os pneus nas primeiras voltas (aquecimento), proporcionava um final de corrida impressionante. E em rampas, se bem utilizado, fazia muito
mal a muito boa gente bem melhor equipada…
O tempo canhão realizado nos treinos para o circuito da Costa de Lisboa, no Estoril, marcaria o arranque para uma temporada de ouro, marcada por inesquecíveis duelos com Clemente Ribeiro da Silva…
A primeira vez que andei no meu GS/E no Estoril, realizei finalmente um sonho. Imediatamente antes, tinha vendido o meu carro de todos os dias, reunido todo o dinheiro que tinha amealhado, e ainda tinha ficado a dever uns 30 contos ao meu querido amigo Carlos Santos, a quem tinha comprado o carro. Passara a ir para a Faculdade de Economia de autocarro, mas ia feliz. No Estoril, e ao fim de apenas seis voltas, estabeleci um tempo que ficou recorde para sempre: 2m05,45s. O Kiko, nesse dia, fez 2m07,46s para a grelha. Senti-me mesmo muito feliz.
Tinha feito uma volta incrível, daquelas que acontecem uma vez.
Ainda se recorda o que sentiu quando entrou pela primeira vez no Porsche de Grupo 5, depois do desaparecimento do Kiko, com quem protagonizara momentos de ouro da velocidade nacional?
Aquele carro era tão assustador que, se pensasse muito, acho que não entrava nele. Depois, havia uma carga emocional, já que aquele projeto havia sido um sonho do Kiko, e tinha receio de não estar à altura. Quando o guiei pela primeira vez, senti igualmente que havia muito desenvolvimento a fazer a nível de afinações, mas antes de mexer nessas coisas, era preciso rodar o mais possível para ganhar segurança no carro e sobretudo a confiança do Mestre Eduardo. Na primeira corrida que fiz com o Porsche do Kiko, em Vila do Conde, creio que terei realizado um tempo muito perto de 1,07 – tipo 1m06.96s. No fim da prova, junto aos rails da curva do Castelo, em conversa com o Mestre Eduardo, disse-lhe que achava possível rodar no segundo quatro, ou entrar mesmo no segundo três, com aquele carro, desde que se concretizassem determinadas alterações que, na altura, enumerei. O Sr. Eduardo está aí para confirmar o que digo, pois sei que este tema foi um dos mais difíceis de admitir por parte dele já que, na sua opinião, nem remotamente, seria viável a realização desse tempo. Pois bem, uns 2/3 anos mais tarde, fizemos 1m03.78s em Vila do Conde com pneus Firestone à frente e Dunlop atrás, com uns dez anos de antiguidade. Se, na altura, tivéssemos tido a possibilidade económica de ter gomas novas e macias…
A ligação ao Porsche Aurora, viria a culminar com a conquista do Campeonato Nacional de Velocidade em 1981. Pode descrever-nos as sensações de conduzir esta bomba com mais de 300 cv?
O problema não era tanto o número de cavalos, mas a forma brutal como eles se exprimiam, e o pouco peso que carregavam. Era um autêntico carro de competição, que “mordia” se nós abusássemos. Uma boa afinação era primordial, e nem sempre fácil de alcançar. Se tudo estivesse bem, era um automóvel capaz de tempos impressionantes.
Como eram vividas por dentro, aquelas grandes corridas em circuitos como Vila Real ou Vila do Conde, na era dos Porsche 935, com acesos duelos travados com António Barros ou Robert Giannone?
Com muita adrenalina e muita loucura. Não sei se as pessoas terão a noção do que é andar atrás de um ou dois destes carros que ocupam a pista toda (parece, pelo menos), que fazem um barulho ensurdecedor, deitam fumo por todo o lado, abanam-se tanto que parece que vão desintegrar-se, e saltam constantemente de um lado para o outro nas travagens, à procura sei lá do quê. Um susto! Porém, eram ao mesmo tempo viciantes, desafiantes, uma droga, no sentido em que estávamos sempre à espera de os guiar, embora tivéssemos o medo como companhia. Enfim, bons tempos, boas corridas, bons adversários. Que saudades desses tempos! Mas foi muito bom, lá isso foi…
Como surgiu a oportunidade de se tornar piloto oficial da Renault no Campeonato Nacional de Ralis?
No Rali da Madeira de 83, participei com um Renault 5 Turbo Cevennes (200 ch) da Recar. Os Franceses da Renault Sport, que vieram dar assistência à equipa, gostaram, pelos vistos, da minha prestação e a Renault Portuguesa, que estava interessada em participar oficialmente no Campeonato Nacional do ano seguinte, também. Perguntaram-me, ainda no Funchal, se poderia estar em Lisboa na 2ª feira seguinte. Fui então entrevistado pelo Patrick Landon, na altura o homem forte da Renault Sport. Perguntou-me o que eu fazia na vida, de onde era, que palmarés tinha, e qual seria a minha disponibilidade para participar no Campeonato Nacional de Ralis integrado na equipa Renault Portuguesa, e, acima de tudo, qual a minha vontade e a minha motivação para ganhar. Respondi afirmativamente a tudo, que seria um privilégio, mas disse-lhe que considerava o Renault 5 Turbo um carro difícil de afinar para as provas
em Portugal e que a fiabilidade parecia não ser o seu ponto forte. A resposta do Patrick foi espantosa. Disse-me que tinha observado os meus tempos na Madeira e os tinha achado incríveis. Que considerava que eu tinha o perfil que procuravam para a equipa, e que me colocava um desafio: o meu trabalho era andar à frente de todos, em todo o lado, e o deles era dar-me um carro fiável. Se o carro quebrasse, a culpa seria deles, se eu andasse atrás de alguém, seria culpa minha! Engoli em seco. Para um neófito era obra…
Com o “amarelinho”, teve uma estreia vitoriosa logo no Sopete, em 84, conquistando, em 3 anos, 15 ralis do campeonato nacional. Partilhe connosco alguns segredos da condução do R5 Turbo…
Segredos? Acho que o mais importante residia no facto de eu calçar 45/45 e meio… Pé direito no travão e no acelerador ao mesmo tempo – na altura não podia ter o pé esquerdo permanentemente no travão, pois a caixa necessitava de embraiagem e a coluna da direção não o permitia. Ora, até às 4100/4200 rotações, o motor não existia e, a partir daí, tinha logo 200 cavalos, indo, de imediato, até aos 300 às 7200 rpm. Se nas zonas rápidas eu levantasse o pé, quando acelerasse de novo, não tinha lá nada durante um ou dois segundos. Ou seja, o suficiente para sair de estrada sem apelo nem agravo. Assim, nas zonas rápidas, aprendi rapidamente a aliviar o acelerador para metade e a travar com o mesmo pé, o estritamente necessário, para manter a velocidade que julgava apropriada, conservando assim o turbo em carga. Resultava bastante bem. Está claro que é bem mais fácil dizer do que fazer, mas era assim que o
conduzia!
Preferia conduzir em asfalto ou terra?
Francamente, em ambos. Provavelmente, no início, sentia-me mais à vontade no alcatrão, mas depois aprendi a gostar mais de terra. Levei uma semana inteira, em conjunto com toda a equipa, a afinar o carro para terra. No final, que prazer!.. Fomos buscar, para lá da facilidade de condução, uns 3 a 4 segundos por km. Uma eternidade, uma outra dimensão. A Renault Sport chegou a pedir a Portugal as nossas afinações de terra, quando viu os nossos tempos em 1985 comparados com os de 84… Nunca perguntei se o Moisés as havia fornecido…
Qual o rali que lhe dava mais gozo disputar?
As Camélias, em alcatrão, porque adorava a sequência Lagoa Azul/Peninha/Sintra, e o Rali do Centro, em terra, porque gosto do conjunto de troços Buçaco/ Arganil/ Lousã/ Candosa. Gosto de classificativas em terra onde se ande muito depressa, não sou fã de troços tipo Fafe. Apesar de gostar de lá ir, do público fantástico que sempre aí encontrámos, não fazia propriamente o meu género. Mas não desgosto dos outros, desde que seja para andar a fundo…
Passados quase 30 anos, o que sente ainda hoje quando lhe vêm à memória os acontecimentos do Rali do Algarve de 1984?
Nojo! Repulsa pelo que certo tipo de gente é capaz de fazer, ou de mandar fazer, para atingir os seus objetivos…! Estupefação pela ingenuidade de alguns amigos meus em acreditarem que ainda existe a Branca de Neve…
Revolta comigo mesmo por ter sido tão imbecil ao ponto de ter feito tudo para sair da frente dos concorrentes em prova. Assim como fui tão bem intencionado em deixar passar toda a gente. O rali continuou como se nada se tivesse passado. Nunca recebi uma palavra de suporte de ninguém…
Apenas assisti, estupefacto, aos festejos da coisa adquirida com a desgraça alheia, sem mérito. Triste…
Em 85 sagra-se campeão nacional de ralis, feito que viria a repetir no ano seguinte, comprovando a validade do projeto…
Ainda recordo afirmações de certas criaturas quanto à nossa viatura e à nossa equipa, que se exasperavam em crescendo, com o decorrer do tempo e com os bons resultados que alcançámos: de início, que seríamos um adversário a ter em conta, mas sem carro à altura, pouco fiável em terra. Logo passámos a ser imbatíveis em alcatrão, mas em terra… aí não, o Escort era ainda “aquela máquina”, e ganhador seguro de campeonatos. Depois, surpresa: na terra, o R5 Turbo também andava à frente. Então, como por magia, e como o ridículo nunca matou ninguém, o Renault passou a ter menos de 800 quilos e 300 e muitos cavalos.
Está escrito numa entrevista da época. Seria, por conseguinte, um autêntico protótipo! Além disso, estava integrado numa equipa de
fábrica, e portanto, teria acesso a todas essas especialidades raras, apenas ao alcance de poucos, muito poucos privilegiados: muitos mais cavalos, muito menos peso, pilotos que andavam mais porque, se calhar, também ganhavam mais dinheiro, e por aí fora…
O problema foi quando algumas dessas almas adquiriram, finalmente, viaturas com 400 ou 450 cavalos e 4 rodas motrizes, e se lançaram à estrada. Pois é, a vida não foi nada fácil! Uma pequena reflexão pessoal: se a Renault tivesse acedido ao meu pedido de aquisição das suspensões do R5 Maxi, as quais tinham um curso de cerca de 24/26 cm em vez dos 15/17 do nosso Tour de Corse, com barras e molas diferentes, e que se encontravam devidamente homologadas no nosso modelo, acredito que teria sido o bom e o bonito. Teria preferido isso a um R5 Maxi novo. Tenho a certeza de que seria um carro bem mais equilibrado, mais homogéneo. Era, no entanto, um investimento pesado, e percebi que não fazia sentido gastar tanto dinheiro sem ter a certeza do resultado. Mas tive pena, pois acho que teria sido uma enorme surpresa para muita gente, inclusivamente, até para a nossa própria equipa…
Dito de outra forma, após essas extraordinárias aquisições por parte dessas pobres equipas, nada de extraordinário se viu. Nada!
A Renault foi campeã e nós, igualmente. Sem pregos, claro…
Conte-nos como foram as sensações vividas dentro do carro, perante a imensidão de público, na classificativa da Lagoa Azul naquela manhã de 5 de Março de 86?
Não sei muito bem como descrever. Mas agora toda a gente pode ir à internet e visualizar uma ou outra filmagem da época, e não preciso de dizer mais nada. É só ver! Não há palavras! As pessoas, às centenas, passeavam-se literalmente à frente dos carros. Não conseguíamos ver as bermas, não se podia fazer uma trajetória correta. Era um “salve-se quem puder”. Uma loucura sem sentido…
Que significado teve para si a vitória no Rali de Portugal?
Não teve o mesmo gosto que outros triunfos. Está claro que ganhar o Rali de Portugal, prova do Campeonato do Mundo, é uma sensação muito boa. Mas aqui tratou-se de chegar em primeiro, não tanto de ganhar.
Que sentiu quando viu o carro com o qual obtivera tantos êxitos, a ser consumido pelas chamas, nos Açores, em 1986?
Que tinha chegado a hora de partir. Fim da linha. Foi nesse momento que tomei a decisão de abandonar as competições no final desse ano. Transmiti-o, em primeiro lugar, à minha mulher, nessa mesma noite, e à Ana Margarida Maia Loureiro no dia seguinte.
O adeus aos ralis, representou o abraçar de novos desafios profissionais, ligados ao vestuário. Conte-nos como passou a ocupar os seus dias depois de arrumar o capacete…
Nada mudou. Sempre trabalhei muito, ao contrário do que, para fora, transparecia. Passei a dedicar mais tempo à família, a qual sacrifiquei durante muitos anos. Sempre tiveram muita paciência.
Mantém hoje a opinião que deixou a competição no momento certo?
Absolutamente.
O Joaquim Moutinho, na versão “homem de negócios” continua hoje ligado ao projeto do vestuário?
Ainda continuo. Apesar de muita coisa ter corrido muito mal, há outras que correm bem. Ainda há quem valorize bastante a experiência…
Como analisa a evolução que o desporto automóvel nacional viveu nas últimas três décadas?
Nunca houve tantos pilotos portugueses a correr lá fora e em boas condições como agora. Com muito talento, e que apenas necessitam de um pouco de sorte, sempre necessária nestas coisas. Nascer em Portugal não ajuda nada: a economia é pobre, limitada, o mercado é pequeno e pouco interessante para as marcas, pelo que na hora das decisões sobre a escolha de pilotos, esses aspetos são determinantes. Claro que temos o sempre mencionado exemplo dos Finlandeses, mas, provavelmente, as pessoas não sabem que esse país, apesar de ter metade da população portuguesa, tem um PIB superior ao nosso em cerca de 20%, e o rendimento per capita é de 35,700€ por ano, o qual é bem mais que o dobro do nosso, que ronda os 15,600€.
Depois, toda a gente se queixa do que tem sido feito a nível federativo nos últimos anos. Não tenho acompanhado convenientemente esta temática, apenas tenho lido umas coisas aqui e ali, pelo que não sou a pessoa indicada para opinar sobre a matéria. No entanto, parece-me que não deve ser nada fácil, no clima atual em que vivemos, gerir em boas condições o automobilismo português. Não invejo a vida dos membros da FPAK.
De todas as vitórias que obteve, em ralis e velocidade, qual foi, para si, a mais marcante?
Não existe uma em que possa garantidamente afirmar “é esta!”. Mas a primeira vitória, na primeira corrida do Troféu Datsun, em Vila do Conde, ou a primeira vitória na primeira corrida com o Porsche de grupo 5, também em Vila do Conde, serão, talvez, as que mais me comoveram.
Se tivesse oportunidade de voltar a conduzir um dos carros que marcaram a sua carreira desportiva, qual escolheria?
Talvez o Renault 5 Turbo Tour de Corse. Estava muito bem preparado. Tudo no sítio, tudo justo, sem folgas, um sonho. Grande carro…
O DIA EM QUE TUDO COMEÇOU
Depois de dedicar parte da sua adolescência a praticar Karting, Joaquim Moutinho fez a estreia em provas de automóveis em 1972, no Rali do Académico. Tinha então pouco mais de 20 anos quando cumpriu, no Estádio do Lima, as voltas que ditariam a ordem de partida para o rali. Resultado: partiria à frente do Pedro Meireles, como nos explica Moutinho: “o Pedro tinha alguma experiência em terra, já que havia participado num ou outro rali do Campeonato Nacional no ano anterior, e tinha também a suspensão melhor preparada para o mau piso que iríamos enfrentar. Dito isto, esqueçam-se as suspensões, despreze-se a experiência, porque a realidade é que, a partir desse dia, descobri, em cerca de 15/20 minutos, aquilo que, se calhar, nunca iria encontrar na vida inteira: a temeridade, a audácia e o talento que são necessários reunir numa única pessoa para ser possível um andamento em terra absolutamente inimaginável, durante toda uma prova. Tudo isto sem morrer! A sério, não exagero nas palavras. Não bater, não acabar colado a um morro, no fundo de um precipício, parecia-me um milagre… A primeira prova especial do rali começava em Sta. Luzia, com a ligação até à entrada de Orbacém, seguindo-se os cerca de 11 km desta última, mais o final em paralelo a descer e, por último, um autêntico inferno de trinta e tal quilómetros onde apanhámos piso seco, chuva, nevoeiro, tudo no mesmo envelope e apenas com um controlo de passagem à entrada de Orbacém. Arrancámos rápido, com um bom ritmo, com algum cuidado no mau piso, mas bastante depressa. Bem depressa, eu diria. Uns 6/7 km depois, umas luzes começam a aparecer atrás de nós. De início, apareciam de vez em quando, tornando-se, depois, mais fortes até ficarem fixas. Sem perceber bem o que nos estava a atingir, mal tenho tempo de encostar um pouco para a direita, vejo passar o Meireles pelo ar. Literalmente pelo ar! O Edgar, que estava com mais poder de reação do que eu, fecha o livro das notas e diz-me: ‘ou consegues ir atrás dele, ou não consegues, e vamos para casa’. Foi remédio santo: iniciei provavelmente (e sei que o Pedro ainda hoje fala desta história com carinho e especial ternura) os 15/20 kms mais loucos da minha vida, e acho que da dele também. Tanto assim foi que, a determinada altura, o Pedro fez um pião completo e nós esperámos que ele regressasse à estrada para continuar a usufruir da grande lição da minha vida. O Edgar Fortes, o meu navegador nessa altura e amigo de sempre, até comentou que era impossível o Pedro chegar sequer ao final dessa classificativa. Perdemos o contacto com ele apenas à entrada de Orbacém por causa do controlo de passagem. Estavam lá cinco carros à espera de carimbo. Cinco! Será possível imaginar-se a confusão? Valeu naquele caso a grande experiência do navegador do Pedro, o Jó Rosas, que saiu do carro, pediu o carimbo, controlou e foi-se embora…Só os voltei a ver no parque fechado. Fiquei deprimido até ao fim da prova. Julguei que o último lugar seria o nosso destino. Sabe qual foi a classificação? Pedro Meireles
2º da geral e 1º da classe e nós, 4º da geral e 2º da classe. No dia seguinte, quando soube o resultado, a depressão foi-se…”
1977 O ANO QUE TINHA TUDO PARA SER PERFEITO
Ano de 1977 corria de feição a Joaquim Moutinho. Ao Volante do Opel Commodore GS/E dominava a seu bel-prazer as corridas de Grupo 1 até que, perto do final da temporada, uma situação insólita deitaria tudo a perder, como nos recorda o próprio piloto: “Foi terrível. Vou tentar contar a história, que é muito censurável para o meu lado. Nesse ano, ganhei talvez umas sete corridas de grupo 1. Precisava de participar em apenas mais uma corrida e pontuar qualquer coisa para ser campeão. No Troféu Mini, no qual participava também, com a equipa JM&Costa, tinha, igualmente, fortes hipóteses de ganhar o troféu. E, se obtivesse ainda um razoável resultado no Rali do Algarve, num Opel Kadett GT/E que adquiri nessa altura para disputar a prova, tinha fortes possibilidades de ganhar o troféu Opel Mundial. Isto significava uma verdadeira fortuna em prémios monetários e ainda a possibilidade de disputar o campeonato alemão de fórmula Opel no ano seguinte. Acontece que o motor do meu Mini gripou nos treinos de uma prova no Estoril, perto do final da temporada. Como era impossível a reparação do motor, optou-se por trocar o carro para a corrida, em vez de trocar o motor. Isto era completamente ilegal e eu não medi o que estava a fazer. Para mim, os carros eram todos iguais, eram todos Minis.
Arranquei da última fila. O Tonico Matos Chaves e outro elemento da Federação foram ter comigo, na grelha, e perguntaram se era aquele o carro com o qual tinha treinado. Disse que sim. A corrida iniciou, conseguindo alcançar o 5º ou 6º lugar ao fim de poucas voltas, suficiente para ganhar o troféu. E foi então que comecei a pensar no que tinha feito. E senti um frio na espinha, que subiu até à cabeça. Senti-me mal. Na volta seguinte, sensivelmente a meio da corrida, entrei por vontade própria nas boxes. O Fernando Petronilho foi o primeiro a abrir a porta do meu carro e a perguntar o que me tinha passado pela cabeça, se tinha consciência do que acabara de fazer. Disse-lhe que sim, e que a prova disso era a minha renúncia voluntária em continuar, quando aquele lugar me daria a vitória no Troféu Mini. Está claro que fui suspenso, que não pude disputar a prova do dia seguinte, perdendo, por conseguinte, o Campeonato Nacional de Grupo 1, apesar de ter ganho quase tudo. Perdi também o Troféu Mini e a enorme possibilidade de vencer o Troféu Opel. Devo referir que, mesmo sem fazer mais nenhuma corrida nesse ano, terminei em 7º lugar o tal Troféu Opel alemão. Ainda ganhei muitos marcos alemães… Não posso deixar de recordar a forma justa e impecável como fui tratado pela Comissão Desportiva nessa altura, pois apesar de, naturalmente, ter sido castigado
com a perda de tudo o que acima mencionei, ainda poderia incorrer num castigo bem mais pesado do que aquele que foi aplicado. Não seria justo dizer coisa diferente…”
A CÉLEBRE REUNIÃO NO ESTORIL SOL
Na sequência do acidente de Joaquim Santos na Lagoa Azul, na primeira etapa do Rali de Portugal de 1986, os pilotos de fábrica fizeram uma reunião de onde sairia um comunicado anunciando a decisão coletiva de abandonarem o rali, alegando falta de condições de segurança. Joaquim Moutinho foi o único piloto português presente. Confrontado, passados todos estes anos, com a possibilidade de partilhar o que se passou naquela suíte do Estoril-Sol, a resposta
foi imediata: “Agora posso! Dos pilotos portugueses, fui o único a marcar presença, convidado pelo falecido Henri Toivonen, com quem travei uma boa relação num Rali da Madeira em que ele havia participado com um Porsche de Grupo B da Rothmans. Chegados ao local, deparámo-nos com todos os pilotos
oficiais e ainda alguns patrões das marcas Peugeot, Lancia, Audi, MG Metro, etc. Quem conduziu todo o processo, digamos assim, foi o Walter Röhrl. De pé, com um papel na mão, foi escrevendo o tal comunicado. Jean Todt tentava dissuadir toda aquela gente de tomar tal atitude, mas não conseguiu.
Tudo isto demorou umas duas horas. Depois, passaram o papel a todos, um a um, para ser rubricado. Quando chegou a minha vez, comentei que se firmasse a minha assinatura naquele documento, estaria a assinar a minha desistência para sempre da competição, pois era em Portugal, e em mais sítio nenhum, que
praticava automobilismo. Seguiu-se um tempo de espera, que me pareceu uma eternidade. Instantes depois, o Walter Röhrl comentou que entendiam a situação perfeitamente, e que seria um suicídio da minha parte alinhar naquela atitude. E bateram palmas, o que nos deixou, ainda assim, pouco confortáveis, a mim e ao Edgar. Foi, de facto, uma situação incómoda!”
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