Domingos Piedade deixou-nos há 3 anos…

Por a 30 Novembro 2022 08:33

Domingos Piedade deixou-nos a 30 de novembro de 2019. Mas deixou também um legado fantástico no que ao desporto automóvel diz respeito já que não foram muitos os portugueses que tiveram ou têm papel de tão grande relevo no desporto motorizado. De vice-presidente da AMG a líder do conselho de administração do Circuito do Estoril, Domingos Piedade influenciou, dirigiu e privou com algumas da maiores figuras do automobilismo mundial. Há dois anos que lutava contra a doença, e foi com ela que perdeu a sua última corrida. Vamos recordá-lo através duma entrevista que lhe fizemos para a edição 2000 do Autosport, em 2016. Aqui fica.

AutoSport #2000 – Abril 2016

Nasceu em Lisboa, em 1944. Filho único de pai ribatejano e mãe cadavalense, a rebeldia conduziu-o à “prisão em Tomar”, a forma como caracteriza essa época da juventude. Lá conheceu José Carlos Botelho Moniz, o grande responsável pelo início, “aos 12, 13 anos”, da sua paixão pelos automóveis. “O Zé Carlos era um rapaz que também se portava bem, portanto o pai, Júlio, mandou-o igualmente para Tomar.”

O patriarca Botelho Moniz fazia corridas de automóveis. E quando ao fim-de-semana ia visitar o filho, Zé Carlos, “mais velho dois ou três anos” e que já gostava de motores, pegava no carro e fugia na companhia do nosso entrevistado. “Íamos para aquelas estradinhas ali ao pé do colégio Nuno Álvares de Tomar até que há uma altura em que ele me diz: ‘É pá, queres dar uma volta?’ E eu comecei logo a meter mudanças. Ia assim em terceira, que era bom para andar em todas as curvas e para andar para a frente”, recorda Domingos Piedade, entre um sorriso. Poder “comandar alguma coisa” encantou-o: “Tinha três pedais, um volante e uma caixa de velocidades, e aquilo fazia mais ou menos o que eu queria. Às vezes fugia assim para sítios mais esquisitos, mas pelo menos eu virava para um lado ou para o outro e ele lá ia. Depois fui ver uma corrida do pai Botelho Moniz no antigo Circuito de Cascais e gostei. Foi daí que começou”.

VINTE PAUS

Em pleno clima da Guerra Colonial, Domingos toma a decisão de sair do país. Antes de aterrar na Alemanha fica uma curta temporada em Inglaterra, como “Mário Martins da Silva e outros amigos que para lá tinham ido com o objetivo de cursar engenharia mecânica”. Ficou “duas ou três semanas, porque aquilo era um frio desgraçado e comia-se muito mal”, antes de seguir viagem rumo a Itália e à Suíça – momento em que o pai lhe disse que as travessias eram para acabar. Na Alemanha tirou o curso de engenharia mecânica. Aprendeu alemão, e outras línguas com os colegas do Instituto Superior da cidade de Colónia, conhecendo logo nos primeiros tempos de estudante universitário a pessoa que o traria em definitivo para as corridas: Rolf Stommelen, “um miúdo que tinha como carro de rua um Porsche 904 GTS, de modo que estava bem de vida. Éramos muito amigos e fomos sempre amigos até à morte dele, em 1983”, salienta. Viajaram juntos várias vezes rumo aos circuitos europeus, com Piedade invariavelmente sentado “no lugar do morto”. Foi com Rolf que fez o primeiro Targa, em 1966, e que depois, a convite de Lopes do Souto e “a troco de 20 paus por texto”, contou o desenrolar das provas e dessas aventuras no jornal “Motor” – uma forma de alimentar o gosto pela escrita e angariar mais uns cobres para o mealheiro.

O cartão pomposo que o certificava como repórter deu-lhe entrada no paddock e permitiu-lhe aproximar-se das equipas, situação que aproveitou para desenvolver a enorme rede de contactos de que dispõe hoje. E foi como “Correspondente Internacional” da publicação que conheceu Emerson Fittipaldi, numa corrida de F3 em Brands Hatch. Seguiram-se nomes como Ayrton Senna, Walter Röhrl e Michele Alboreto, duas vitórias como diretor de corrida do Team Joest nas 24 Horas de Le Mans e a vice-presidência da AMG. Em 2008 regressou a Portugal em definitivo para assumir na plenitude o cargo de Administrador do Circuito do Estoril. Há mais por onde escolher, o que diz tudo sobre a sua influência. E é precisamente pela carreira recheada de histórias e o facto de conhecer como poucos todas as vertentes do automobilismo que quisemos entrevistá-lo nesta edição comemorativa do AutoSport.

Do que pude perceber, a sua entrada ‘a sério’ no desporto motorizado efetivou-se a partir do momento em que começou a ir às provas e a conhecer os pilotos. Costumava arrastar alguém consigo nessas viagens?

Foi com o Rolf que comecei a ir às corridas. Mas o Emerson [Fittipaldi] foi, digamos assim, o ‘kick-off’ de tudo. Em 1969 fui a Brands Hatch ver uma corrida de F3 a pedido da redação de Lisboa, que me tinha dito que havia um brasileiro muito rápido que por ali andava a dar cartas. Como no fim-de-semana não tinha aulas pegava no carro e ia. Ali no centro da Europa estava a 500 km. Ainda por cima não havia limite de velocidade nas auto-estradas. Era uma maravilha… Quanto à segunda pergunta, talvez de vez em quando uma namorada, mas nem me lembro. Ia era muito de boleia com o Rolf. Sentava-me no lugar do morto e ia a tremer. Lembro-me de irmos para uma corrida em Paris e de ter lá chegado totalmente verde, porque fomos de 911 e aquilo era sempre a andar para a frente. Na altura ainda não havia os ‘press officers’, e havia assim uma placa tipo junta de freguesia, em madeira, com uns pioneses a segurar a lista de inscritos. E eu começo a ver que não havia nenhum nome português. Estava à espera, sei lá, de um Manuel António, Joaquim Francisco, uma coisa assim. Depois estava um tipo ao meu lado e eu perguntei: “Diz que há um brasileiro que anda muito. Sabe quem é?” “Sim, é o Emerson Fittipaldi!” Ao que eu respondi: “Mas esse tipo não é brasileiro” (risos). Esse tipo que me disse isso foi o Mike Doodson, veja lá, que estava a começar possivelmente no Motoring News, um dos grandes jornais da época. Olha para a placa e vejo o número 17. E lá fui eu à procura dele. Descer o paddock de Brands Hatch parecia assim a Calçada do Combro. Cheguei lá e dou de caras com um sujeito com umas grandes patilhas, e ao lado dele um concurdinha. Pensei: “É pá, aquele não pode ser o tipo que anda aí a dar cartas de Fórmula 3. O tipo não tem aspeto de quem dá cartas para o que quer que seja.” Mas lá disse: “Então bom dia!” Deram logo um ganda salto. “Como é? Ó português, senta aí!”, diz o Emerson, com o ‘Chiquinho’ Rosa ao lado. O tal ‘Chiquinho’ Rosa que é a figura mais importante do automobilismo brasileiro, que acompanhou toda a gente, do ‘Zé’ Carlos Pace, ao Emerson, ‘Nelsinho’, Tigrão. Foi aliás, até há bem pouco tempo, diretor do Autódromo de Interlagos. O ‘Chiquinho’ era a referência. A nossa ligação começou aí.

Como surgiu a oportunidade de se tornar ‘manager’ dele?

Eu fui ao primeiro GP que ele ganhou, em 1970, em Watkins Glenn, e mantivemos sempre o contacto. Entretanto acabei o curso nesse ano e comecei a trabalhar na indústria alemã. Não gostava nada, mas tinha de ser. Já não havia mais nada para estudar, então tive de meter mãos à obra. Até que no ano seguinte fui à distribuição de prémios com o Emerson, em Paris, no primeiro ano em que ele foi campeão do mundo. Nessa viagem, ele vira-se para mim e diz-me: “Pô português, você não quer vir organizar minha vida?” E eu disse: “A minha vida não e organizar-te, porra. Tu levantas-te já com meia hora de atraso. O teu dia tem que ter 30 horas senão não consegues viver.” Mas ele lá insistiu. O meu pai tinha falecido em março e sendo filho único achei que estava ali uma boa deixa para eu me pirar e fazer aquilo que queria. E assim foi. Perguntei à minha mãe se ela se importava que eu estivesse fora e que disse-lhe que num ano organizava tudo do Emerson.

Do que mais se orgulha mais no plano desportivo?

De ter amigos. Ainda há pouco tempo tive três horas com o Walter Röhrl. Ele contou ali uma história qualquer, eu depois contei outra e ficamos ali uma data de tempo. O tipo do corporate marketing e imprensa da Porsche até estava com os olhos esbugalhados. Achou incrível como nós os dois ainda tínhamos aquela relação. Foi uma vivência muito intensa, extraordinária com o Walter. Cinco anos em que trabalhamos juntos. E é disso que eu me orgulho. Ou de continuar a ser convidado para ver algumas corridas: o ano passado estive no WEC na China e em Abu Dhabi para a Fórmula 1, depois de oito anos sem ir a um Grande Prémio.

E no plano pessoal?

Tenho mais coisas boas no plano profissional do que no pessoal. Mas nesse campo destaco a minha vida com a Ana Paula [esposa] nos últimos quase trinta anos.

Os pilotos têm hoje a vida mais controlada?

Eles hoje são autómatos. Veja os botões. Quando eles se sentam num Fórmula 1 trazem 100 horas de simulador. É tudo fácil. E depois têm de estar preparados para ouvir as informações e os pedidos que lhes são feitos a partir da box. Em Le Mans, por exemplo, eles levam com cerca de dez interferências por volta. “Faz isto”, “faz aquilo”, “não te esqueças disto”. Além das ultrapassagens, da concentração, da chuva, da noite e dos faróis ainda têm que estar a ouvir um tipo do outro lado.

Qual o motivo para o desporto motorizado ter perdido interesse? Foram os portugueses que se desiludiram ou o automobilismo que os deixou ficar mal?

Já alguma vez foi a um shopping center no fim de semana? Se estiver a chover não está lá muito mais gente? Porquê? Conforto… Agora imagine um shopping center aberto. Não está lá ninguém. E a oferta é a mesma. No futebol e nos automóveis é a mesma coisa. Eu lembro-me de as tribunas de Brands Hatch serem de madeira, e aquilo estava sempre cheio. Antigamente se você quisesse saber como era tinha de estar lá. Como não havia televisão em casa, não havia hipótese. Hoje é totalmente diferente. Depois, você chega a um Allianz Arena [estádio do Bayern Munique) e diz: “Uau, que grande estádio!” Pois… mas tem tudo. Tem conforto e tudo o que é necessário para que as pessoas se sintam bem, estejam contentes e possam desfrutar. Os grandes autódromos – grandes, modernos, têm tudo. Já viu como é Bahrain, Abu Dhabi? Só que o Estoril não tem. E o sujeito que está em casa vira-se para a mulher e diz assim: “Maria, vamos ao Estoril”. A primeira coisa que ela faz é ir ao Yahoo ver como está o tempo, porque se estiver mau arranja-se logo uma desculpa qualquer de que a avó está doente. É complicado. Não tem a ver com o produto ou a oferta serem maus. Nós é que não conseguimos ’encher’ os circuitos de bem-estar. Tão simples como isso. Mas é assim em quase todo o lado.

O ‘desencanto’ está mais relacionado com as condições do que com o espetáculo?

Tem a ver com as condições, mas não só. Você chega a casa e diz: “Olha querida, amanhã às 14h vamos ver a corrida de ELMS.” E a Sofia responde assim: “E quem é que fica com a avó? E quem é que come o cozido e mais o doce que ela fez?” “Ok, já não vamos.” E ela: “Olha lá, não dá na televisão?” “Dá.” “Então vês aí”. E você fica em casa, vê a corrida e de vez em quando vai dar uma garfada no cozido antes de voltar outra vez para ver a prova. Porque do outro lado dizem logo: “Estás louco! Vamos apanhar chuva, depois o puto não tem sítio para comer…” Você acha que estas invenções do Bernie com a qualificação são o quê? Ele está a ver se consegue inventar a roda quadrada, porque a redonda já existe. Já toda a gente tem.

Na sua opinião, o que poderia ser feito para atrair novamente o público?

Eu lembro-me, nos tempos iniciais do Rali de Portugal, que eu e o César [Torres], que para mim é uma referência por tudo o que fez pelo desporto automóvel nacional e internacional, sabíamos de cor a lista de inscritos com o nome dos pilotos e co-pilotos. Que havia quatro estações a fazer em direto a cobertura do rali. Cheguei a ficar pendurado numa árvore a noite inteira a dar informações sobre os pilotos que passavam, e a falar em alemão durante cinco minutos na rádio. São outros tempos, e eu não quero viver de saudosismos. Mas acho que havia raça. O sujeito sofria pelo desporto que gostava, fosse futebol, hóquei em patins ou as corridas. E desse ponto de vista considero que a forma de transmitir e de interessar as pessoas não foi seguida com paixão.

Depois de muitos anos a negligenciar as redes sociais, a Fórmula 1 finalmente deu um passo nesse sentido com o lançamento de uma página oficial no facebook. Sinais de mudança?

Repare: o Bernie vai fazer 86 anos em Outubro. Eu lembro-me de como a minha mãe estava com 86 anos. Coitada, já faleceu. Mas eu lembro-me. E ele não está muito diferente. O que ele tem é a cabeça, que está boa. Mas não deixa de ser um gajo chato, que tem as suas dificuldades e suas necessidades. Alguém lhe deve ter dito, talvez uma das filhas, “Ó pai, a media hoje tem que ser encarada de uma forma diferente, não pode ser só televisão a pagantes.” Você sabe quanto é que a RTL gasta por ano? 90 milhões de euros. Vai para as corridas com vinte pessoas e não gasta só com o Bernie, gasta com a Fórmula 1. Tem que pagar a todos os pilotos alemães para garantir os exclusivos, e depois aos team managers e aos comentadores, ao DC e ao Niki. A Sky a mesma coisa. Eles estão todos no lugar, enquanto nós andámos quinze anos a fazer Grandes Prémios sem ir a lado nenhum, porque tínhamos a informação que vinha da internet e também porque entretanto algumas equipas também possibilitavam que fosse efetuados contactos diretos com eles. O resto era para inventar. É muito difícil você estar atualizado, a não ser o Tiago [Monteiro], que de vez em quando falava com um ou outro piloto, se não estiver lá e conversar com as pessoas. Até porque depois tem sempre uma coisa qualquer para dizer, nem que seja para preencher os tempos mortos. Agora está um pouco melhor. O primeiro Grande Prémio foi com o “formiga” [António Félix da Costa] e foi uma maravilha. Com o Filipe a mesma coisa e depois com o Tiago será igual. Depois, os comentadores são vivos e empregam emotividade. A diferença é que eles têm o [Martin] Brundle, o DC [David Coulthard], tipos que têm acesso a tudo. Têm acesso aos engenheiros, aos mecânicos e aos chefes de equipa. Mas até nos circuitos onde o pessoal tem tudo à mão as bancadas não estão cheias. Onde é que você se diferencia? Se tiver um ‘após-venda’ melhor. Tem que dizer “we care” – tratar toda a gente muito bem e dar coisas que os outros não dão

Na Fórmula 1 há o “we care”?

Eu acho que não. Porque existe uma data de chefes e não há índios.

Acha que a modalidade deveria regressar ao passado para potenciar o espetáculo?

Acho. São precisos dez gajos para o motor começar a trabalhar… Deixem isso para o WEC. No WEC é que você tem que ter quatro engenheiros para aquilo pegar. Mas também já não pega, e muito menos de empurrão. E às vezes não pega e eles nem sabem porque não pega. Levam aquilo para a fábrica para saber o motivo, mas depois só sabem que vai pegar 15 dias depois. Tornem as coisas simples. Não podem haver vinte e quatro tipos num pit-stop. Há sempre um que dá um pontapé ao lado. Não podemos ter decisões de corrida dependentes de um tipo que tem uma pistola pneumática na mão, nem paragens nas boxes de dois segundos. Qual é a diferença se todos forem obrigados a parar 30s? Deixo vinte pessoas em casa e garanto que tudo está como deve ser, e que não existem porcas nem rodas a voar. Há dois momentos que definem o espetáculo da Fórmula 1: um é o Grande Prémio de Donington, em que o Ayrton faz fez as contas e percebeu que passando por fora na linha da meta tinha de percorrer mais 50 metros e então foi direto à boxe. Fez a volta mais rápida, mas nenhum dos artistas hoje consegue pensar nisso porque o computador e os 52 técnicos não sabem isso. Muitos dos que estão a olhar para os visores nunca viram carros de corrida na rua. E se um dia os computadores falharem por qualquer carga de água e tiverem que ler a corrida pelo cronómetro, não sabem. A segunda coisa que faz a emoção da Fórmula 1 chama-se “volta de qualificação do Ayrton em Monte-Carlo”. É o que falta – emoção. Para começar, você não tem volante. Tem ali uma coisa qualquer modelada à sua mão e você só tira as mãozinhas daquilo para dizer adeus caso ganhe a corrida. É tudo plastificado. Veja lá se eles tiram uma bandeirinha do bolso para mostrar ao público, como fazia o Ayrton ou o Rubinho? Ou uns donuts como o Zanardi, que inventou isso? Falta emoção. Você tem que fazer um F1 que faça barulho. Que faça um “bráá”. Temos que fazer alguma coisa para que as pessoas digam que vão ficar em casa à hora de almoço para ver a corrida e não para ver a largada. Portanto deixem ficar as patilhas, ponham lá um volante redondo, que eu ainda não vi um carro de rua com aquilo, e tornem as coisas difíceis. Num desafio. Voce vê o onboard camera do Colin McRae e depois ve o do Lewis Hamilton e um parece automobilismo e o outro ténis.

Que evolução tecnológica mais o impressionou nos últimos 30 anos? Telemetria? Fibra de carbono?

A segurança. Antigamente, cada ‘porrada’, cada morto. Nunca mais me vou esquecer de em 1973 o Roger Williamson morrer porque na ‘porrada’ os tubos de combustível saíram e continuaram a verter gasolina na altura em que se deu a primeira faísca. Portanto, em primeiro lugar, saliento a válvula de segurança, porque foi a primeira vez, que quando o tubo saia, cortava dos dois lados. Depois, a fibra de carbono, com o John Barnard. Americanos… Ele é que traz pela primeira vez aquilo dos EUA e põe-no nas mãos de um mexicano, o Hector Rebaque. Depois, os travões, embora seja uma evolução negativa para o desporto, para o ‘show’. Porque antigamente os travões de aço separavam os rapazes dos homens. Hoje travam todos aos 50 metros. De seguida, a aerodinâmica, porque veio trazer uma evolução grande para as marcas, para o carro de rua. E por fim a eletrónica, que devia ter tido ali um fecho, porque a evolução foi tão grande que hoje nem os eletrónicos percebem porque aquilo funciona. No entanto, se me pedir para escolher um, escolho a segurança. Hoje vemos grandes ‘castanhadas’ e só por muita infelicidade temos acidentes fatais como o do Jules Bianchi.

Qual foi a maior alegria que teve no desporto motorizado?

A vitória em Le Mans em 1984. Ver aqueles alemães – e eu tenho também nacionalidade alemã – todos de Weissach na minha boxe para ver o que estava a acontecer, porque a gente estava a dar-lhes na cabeça e eles nem sabiam para que lado é que se iam virar, deu-me muito gozo. E ganhar a corrida logicamente. Mas também dez minutos depois apaguei. Estava há 38 horas em pé. Não tinha falhado uma única cronometragem de volta a volta. Já de vivência, é difícil. Foram tantas, de tantos amigos. Mas destacaria a vitória de F3 do campeonato alemão do Pedro Lamy, porque fui um campeonato que ele não queria fazer, uma decisão que ele não queria tomar e uma aposta que lhe marcou a carreira, porque no ano seguinte fez F3000 e daí seguiu para a Fórmula 1. O prazer que me deu vê-lo adaptar-se em Estugarda e correr numa equipa em que o pessoal só falava alemão… Ele era um menino rico da Aldeia Galega que o pai sempre tratou bem, que toda a gente lhe passava a mão no pêlo, eu também, e penso que esse passo foi o modelar, se quiser, de um espírito totalmente diferente daquilo que ele tinha, com um resultado de sucesso. Era o mesmo que pô-lo a si comentar o campeonato do mundo de cricket…

E a maior desilusão?

A corrida em Le Mans de 1986. Seria a terceira vez que o mesmo carro, o mesmo piloto, o mesmo motor, o mesmo chassis e o mesmo patrocinador ganhariam Le Mans. Nunca tinha acontecido. Nós corríamos com um motor muito lean e às 3h00 da manhã, no acidente que vitimou o Joe Gartner – não havia ainda toda esta telemetria atual e as comunicações rádio eram pobres, a mensagem para o Klaus Ludwig passar de lean para richer não chegou. Acabamos por fazer um buraco no pistão quando liderávamos com uma volta e meia de avanço.

Qual foi a decisão mais difícil que teve de tomar enquanto diretor de equipa

A que não tomei: não ter retirado os carros antes da corrida de 1999. Já tínhamos voado nos treinos e depois voámos de manhã. A partir do momento em que o Mark voou, aterrou e não aconteceu nada, eu pensei: pronto, rasgámos os vouchers todos da sorte. Nessa altura devíamos ter retirado os carros. Mas tanto o Norbert haug, como o Hans Werner Aufrecht e outros que estavam presentes foram a favor da continuação. Depois do voo do ‘warm-up’ também houve ali uma reunião para se saber continuávamos em prova, mas os pilotos tinham a ideia de que se o Schneider corria, eles também iam. Hoje penso que foi um erro os pilotos terem participado numa decisão quando nenhum deles estava com coragem para dizer que não queriam ir. Aí devia ser a liderança a dizer que não, mas eu tinha duas pessoas acima. Felizmente correu bem.

De todos os pilotos de topo com quem trabalhou, consegue selecionar três que de facto o tenham impressionado?

Número 1, o Walter [Röhrl]. O Walter perdeu um irmão ainda jovem, que era um miúdo que fazia tudo melhor do que ele. Esquiava melhor, guiava melhor, remava melhor. Fazia tudo melhor. Então tudo o que faz na vida é para mostrar ao irmão que está lá em cima. E tudo na vida dele é organizado. Ainda hoje, o Walter é multimilionário. Multi. Já era. Ele começou a ser milionário quando eu trabalhei com ele cinco anos. E eu não fico surpreendido se o Walter hoje em dia viver com 1500€ por mês. Não gasta mais do que isso. Manda pôr sola nos sapatos. Só não vira as calças porque é chato. As camisas de manga comprida, quando ficam ‘cossadas’, corta-as e passam a ser de manga curta… (risos). E tal como ele é na vida, é assim guiar. É o tipo mais preciso que existe. Seria impossível ele guiar hoje os atuais carros de rali, porque ele nunca na vida punha as rodas fora da berma. Nunca pôs. Número 2, que me marcou pela forma de guiar e não só, o Michele [Alboreto] – do outro mundo. Nunca na vida vai existir outro piloto como ele. Um tipo extraordinariamente rápido, um miúdo bom. Estive com ele desde o início, da Fórrmula Abarth, ao Lancia Beta Montecarlo e depois até à sua entrada na Fórmula 1. Ganhou Le Mans e depois morreu em 2001 numa estupidez em Lausitzring. Depois é difícil – há vários que eu gostaria de mencionar, desde o Emerson, ao Ayrton, ao Pedrinho [Lamy], que era o meu menino, o Jean [Alesi] e mais tarde, o [Klaus] Ludwig.

A sua relação com o Ayrton Senna é obviamente conhecida. Mas queria perceber como se conheceram e o que sentiu na primeira vez que falou com ele?

Quando o conheci vi um miúdo determinado, completamente controlado pelo pai e pelo Armando Botelho, que era o manager, com quem eu trabalhei depois quando o Ayrton veio para a Europa. Depois em 1981, quando ele tinha 21 anos e veio para a Europa, vi um miúdo que foi imediatamente bem-sucedido no que fazia. Mas tinha um problema que eu não sabia o que era. E como dizia um amigo brasileiro: Põe problema nisso”. O tipo era bonito, já estava casado, a mulher era linda, tinha dinheiro, e depois continuei a segui-lo porque logo a seguir o Armando pediu se eu lhe dava uma mão, a ele Armando, porque ele não queria estar continuamente na Europa, o que eu fiz, e depois, passados uns dez anos, em 1991, quando ele fui campeão pela terceira vez, eu fui buscá-lo ao aeroporto de Estugarda, que ele chegou com o aviãozinho dele para irmos à Boss, porque ele era um ‘mão de vaca’. E então tinha direito ao que quisesse. E quando a gente saiu eu disse: Porra, Becão, a gente vai precisar de um contentor.” E ele disse: “Pô, e daí?” E eu disse”fica feio”. “Fica feio o…” Quando nos íamos de Estugarda para a boss, que era a 30 km, e eu ia a guiar, e ele vinha cansado, tinha vindo do Brasil e ele diz: “Sabe uma coisa português?” – o que é curioso porque todos os brasileiros sempre me trataram pelo português, uns por Domingos, outros por Domingão, outros por Murruga, que é um coisa de português. E ele diz assim: “Sabe uma coisa português? eu trocava este título por um de go-kart” Foi a primeira vez que eu vi onde estava o problema todo. Ele nunca foi realizado. Um puto que naquela altura tinha, depois no final teve 65 pole-position, ganhou 42 gp, foi o maior ídolo que jamais o Brasil alguma vez teve – esquece o Pelé. Ele conseguiu que o Brasil estivesse atrás dele num desporto que nenhum brasileiro tinha. Quer dizer, eles sabiam quem era o Emerson, quem era o Pace, o Nelson Piquet. Mas vibrar com “a que horas a gente se vê no domingo?” às 14h. Então tem de ser antes da corrida. A menina dizer ao pai que vai casar e ele perguntar a que horas tem corrida, que eu tenho de ver a corrida antes do casamento. Um homem que fez isso tinha aquele celeuma, aquela força, falhou em ser campeão do mundo de karts. Foi duas ou três vezes vice. Então ele trocava um Mundial de Fórmula 1 por um Mundial de Kart. Daí ele dizer que o maior piloto dele era o Mike Wilson. Porquê? Porque ganhou o campeonato do mundo de kart seis vezes. Para você ver o tipo que era. Depois foi o sujeito que pelo menos uma vez deixou de falar com os melhores amigos. Com o Galvão Bueno, com o Reginaldo Leme, com o Mark Sutton e com o Domingos. É normal. E depois recomeçava como se não tivesse acontecido nada. Eu dizia: “Becão, isto não é interruptor. Vai tomar no…” (risos).

Foi manager dele?

Fui eu que fiz o contrato dele com a Lotus no final de 1984, fui eu que o tirei das negociações da Toleman, do Alex Holtcrich!!! confirmar, fui eu que o ajudei em 1982, 1983, 1984 e 1985, e no terceiro Grande Prémio, em Monte-Carlo, separámo-nos.

Porquê?

Porque ele teve um desaguisado com o Michele [Alboreto] na qualificação, lixou-lhe a qualificação, ficou à espera dele em Rascasse para lhe lixar a volta, e o Michele ia para a pole com a Ferrari em 1985, e o Michele saiu do carro, foi direto ao Ayrton, apontou-lhe o dedo. Depois acalmei o Michele, mas quando voltamos para o paddock entrou na motorhome da Lotus e o Michele disse: “olha, a próxima vez eu espero por ti, mas não é numa curva de primeira. É numa curva de quinta. Vão-te buscar à ultima fila da bancada com uma pinça porque vais ficar em bocadinhos”, o Michele que era um doce, foi o piloto mais extraordinário, o maior amigo que tive, verdadeiro, de todos os pilotos com que lidei. E o Ayrton quando ele saiu disse assim: “Oh Armindo, cê viu o que o cara disse?” “Vi”. “Cê acha bem?” “Acho. Cê foi um filho da..”. “Ah aí você tem que decidir. Ou eu ou ele” E eu disse: “está decidido”. Deixamos de falar, de 1985 a 1988. O primeiro dia que ele começou na McLaren voltou a falar, porque o contrato Lotus tinha sido feito por mim, que foi válido em 1985, 1986 e 1987. Quando terminou o contrato Lotus e o contrato McLaren eu já era outro tipo. Não fazia parte daquilo. Portanto um sujeito do mais complicado que eu vi na minha vida. Um tipo extraordinário, do outro mundo. Mas haja paciência.

O Domingos conviveu igualmente de perto com o Michael Schumacher, tendo-o até ajudado de certa forma ali ao inicio…

Dei-lhe o primeiro capacete integral, as primeiras botas de corrida.

Viu nele o mesmo que em Senna? Como se distinguiam e aproximavam na abordagem às corridas?

Muito idênticos. Só com uma diferença. O Michael tinha no quarto dele um poster do Ayrton. Ele tinha visto o Ayrton em Nivel, ao lado de casa dele, e tinha ficado impressionado. Tinham a mesma atitude, em bom português eram dois filhos da dentro do carro, mas tinham que ser para serem campeões do mundo, que eu nunca vi nenhum com uma coroazinha de sacerdote a ganhar um Mundial. Foram do carro eram diferentes, mas dentro eram assim. Repare: o Schumacher entrou pelo carro dentro do Villeneuve para lhe tirar o mundial que não conseguiu, e o Ayrton esperou pelo Prost em Suzuka para lhe mandar para fora. A única diferença grande que tinham era que um vinha de uma família de bem e outro vinha de uma família modesta, mas os dois com vontade de ganhar, os dois tudo para a gente, e nada para os outros, o que também é demonstrativo. É o que acontece por exemplo com o Vettel, que tem a mesma atitude. E depois o Michael talvez fosse menos complicado porque vinha de um meio social mais baixo. Portanto ele tinha ali assim às vezes mais compreensão, mas também tinha mais afastamento de muitas pessoas. Sabe, o Michael falava muito mal alemão. Ele vem de uma região ali ao pé de Colónia, Kerpen, marcada por dois dialetos muito fortes. E ali fala-se qualquer coisa a meio. Era como se você falasse com uma pronúncia muito forte do norte ou das ilhas. Então ele falava pouco. Inglês zero. Eu fiz parte do júri de escolha dele para entrar na equipa de F3 do Willy Webber. E lembro-me que havia diversos parâmetros para escolha e um deles era comportamento à mesa e a falar. E quando foi isso eu não estava. Eu não era responsável por essas analises. E quando cheguei olhei e vejo duas ou três cruzes vermelhas. E o motivo era a postura na mesa. Ao que eu digo: “E dái? É que isso a gente consegue corrigir. Agora se ele for lento, pô-lo a andar depressa não dá. Passou, e foi assim. Ele aprendeu inglês em seis meses, e o inglês era yes, understeer, oversteer, maybe tomorrow good race. Entao so falava isso. Quando alguém perguntava outra coisa ele já não respondia. Ele para que as pessoas não lhe falassem, não o contactassem, não se apercebessem de que ele era de baixo nível, ele fazia uma cara de mau, olhava para as pessoas e estas iam-se embora, e ele ficava todo contente. Mas depois connosco, e ali com o meu filho Maki, tem um desgosto enorme. O Maki é um ano mais novo que ele, e o Micha vinha para Colónia, ele tinha um Audi 80, porque ele era aprendiz de mecânica da Porsche na oficina da Porsche, e então ele vinha a sexta-feira ou ao sábado para Colónia para irem depois para as discotecas. e o meu filho Maki ainda não tinha carta. e ele vinha. Tudo o que ele fazia tinha de ser alto risco. Era a adrenalina que ele tinha. Daí o correr de moto, depois de ter caído saber que não podia ter acidentes. Mas as coisas são como são.

Por fim, que papel o AutoSport, na sua opinião, teve na divulgação do desporto nacional e internacional?

Eu acho que o AutoSport teve colaboradores importantíssimos que transmitiram por terem estado presentes a verdade do desporto automóvel. É o caso do João Carlos Costa, e depois mais tarde, já no início dos anos 90, aquele que ainda continua a ser o sujeito que mais vezes está nas corridas, que é o Luís Vasconcelos. Eu penso que seria um crime se pessoas como eles não continuassem a fazer o que fazem, e sobretudo, maior ainda, se não formarem sucessores.

Subscribe
Notify of
7 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
últimas AutoSport Histórico
últimas Autosport
autosport-historico
últimas Automais
autosport-historico
Ativar notificações? Sim Não, obrigado