“Mercedes Cor de Rosa”: a maior polémica desde 2007?
Depois de muitas ameaças desde o primeiro dia de testes da pré-temporada e de uma pandemia que colocou o mundo em pausa, no Grande Prémio da Estíria, o segundo da época, o Racing Point RP20 Mercedes foi protestado. Explicamos o que está em causa.
Quando o carro de Silverstone foi apresentado na jornada de abertura da primeira bateria de ensaios de Barcelona, rapidamente ficou nas bocas do paddock, sendo imediatamente apelidado de “Mercedes Cor de Rosa”, devido às suas evidentes semelhanças com o Mercedes W10, que no ano passado conquistou ambos os títulos.
O construtor de Estugarda fornece à Racing Point unidades de potência, caixa de velocidades, assim como os periféricos da unidade motora, desde 2009, então conhecida como Force India, mas a estrutura de Silverstone, na Era Turbohíbrida, tem vindo a adoptar uma filosofia distinta da Mercedes para a construção do seu monolugares, seguindo a concepção de “high rake” (n.d.r.: com a altura ao solo mais elevada na traseira) ao passo que a equipa de Brackley mantém a concepção clássica, com o carro quase paralelo ao solo.
Ora com a caixa de velocidades desenvolvida de acordo com as necessidades da Mercedes, esta não estava optimizada para a Racing Point, que até 2019, porém, não tinha os meios financeiros para alterar o caminho que tinha traçado ainda como Force India, mas com o investimento de Lawrence Stroll teve mais liberdades para este ano.
O plano é correcto, não vale a pena tentar fazer algo para o qual os componentes não foram concebidos, mas as semelhanças entre o RP20 Mercedes e o Mercedes W10 são evidentes.
Andy Green desde o primeiro dia de testes de Barcelona que garante que o monolugar da equipa foi concebido tendo por base milhares de fotografias do “Flecha de Prata” do ano passado, mas isto não convenceu o paddock, apesar de garantir que a FIA deu o seu aval à equipa.
Desde que Lawrence Stroll comprou a estrutura inglesa que se assiste a uma aproximação da Racing Point à Mercedes, alimentada pela amizade existente entre o canadiano e Toto Wolff, que se tem notado de diversas formas, uma delas a compra de acções da Aston Martin por parte do austríaco.
No campo da marca britânica, que no próximo ano dará nome à equipa de Silverstone, o novo CEO da marca adquirida por Stroll é Tobias Moers, que anteriormente era o CEO da AMG-Mercedes, ao passo que os motores usados nos Aston Martin de estrada são oriundos da marca Estugarda, tal como as unidades de potência que a equipa usa e usará no futuro.
Por fim, toda a aerodinâmica do RP20 foi concebida e testada através do túnel de vento de Brackley, ou seja, da equipa de Fórmula 1 da Mercedes, o que cria ainda mais suspeitas quanto à origem do monolugar deste ano da Racing Point.
É evidente que uma equipa pode copiar integralmente as superfícies aerodinâmica de outro carro e integrar no seu, esta é uma prática comum na Fórmula 1 há décadas, mas mais complicado é colocar todos esses componentes a funcionarem em uníssono.
Para além disso, a aerodinâmica tem de funcionar de mão dada com a dinâmica do arrefecimento da unidade de potência e todos os seus acessórios e as formas para escoarem o ar quente são internas e raramente surgem em fotos.
É neste ponto que se centram as dúvidas das restantes equipas, uma vez que a performance do RP20 Mercedes deixa antever que tudo naquele carro funciona muito bem e tem sido erros operacionais da Racing Point a impedir de concretizar em resultados o andamento que tem demonstrada.
Para dar uma ideia da capacidade do monolugar de Silverstone, no Grande Prémio da Estíria, depois de ter trocado de pneus, na trigésima oitava volta, Sérgio Pérez recuperou quase quatro segundos a Lewis Hamilton e quase seis a Valtteri Bottas até à sexagésima oitava volta, antes do toque entre o piloto da Racing Point e Alex Albon.
Os pneus do mexicano eram mais frescos que as dos homens da Mercedes – tinham menos quatro voltas que os do finlandês e menos onze que os do inglês – mas nem assim o andamento do piloto da Racing Point deixa de impressionar.
Pode-se até apontar que Hamilton não precisava de atacar, dado estar confortavelmente na liderança, mas Bottas teve de rodar no máximo para apanhar e ultrapassar Max Verstappen e os danos que ostentava no extractor aerodinâmico do seu Mercedes não eram assim tão relevantes em termos de andamento.
Olhando para este nível de performances, a Racing Point não é apenas uma ameaça para a Renault, que foi quem apresentou o protesto, ou para a McLaren, mas até a Red Bull e a Mercedes em determinadas circunstâncias poderão estar em risco face à equipa de Silverstone.
O ponto em questão no protesto da Renault são as peças listadas no regulamento desportivo do Campeonato do Mundo de Fórmula 1 de 2020, constantes no Apêndice 6.
Este documento obriga a que todas as partes listadas – chassis, estrutura de impacto dianteira, rollbars, todas as superfícies aerodinâmicas, com excepção da caixa de ar para o motor e os escapes, e as condutas de ar de arrefecimento para os travões – têm de ser, obrigatoriamente, projectadas pela equipa ou por uma terceira parte cuja identidade não seja um adversário ou tenha contacto directo ou indirecto com outro concorrente.
A Renault agarrou precisamente nas condutas de ar de arrefecimento dos travões do Racing Point RP20 Mercedes para protestar os monolugares de Pérez e de Stroll, dada a sua semelhança com as do Mercedes W10.
O caso da equipa do construtor francês gira em torno da configuração interna deste componente, dado, muito embora seja possível copiar o exterior destas condutas através das fotos, para replicar o interior só seria possível através dos planos da equipa de Brackley.
Para verificar a legalidade do componente da Racing Point, a FIA, que considerou admissível o protesto da Renault, instruiu a Mercedes a entregar as condutas de arrefecimento dos travões do Mercedes W10, o que diz bem da seriedade com que a entidade federativa está a levar a situação.
Caso seja provado que os componentes em questão tenham a configuração interior semelhante, concluir-se-á que a Racing Point teve acesso a dados ou documentos que lhe deveriam ser vedados, o que coloca a Mercedes também nos bancos dos réus, uma vez que só esta poderia ceder a informação aos homens de Silverstone.
Este é um cenário que não será fácil de gerir pela FIA e pela FOM, uma vez que, num momento difícil, com a crise económica provocada pela pandemia da COVID-19, terá duas equipas que intencionalmente e descaradamente não cumpriram o regulamento.
No passado, em 1978, a Arrows apresentou um monolugar, o FA1, que era uma cópia do Shadow DN9, ambos concebidos por Tony Southgate, e, depois de um protesto da equipa de Don Nichols, Jackie Oliver foi obrigado a deixar os seus carros na fábrica e competir com um modelo completamente diferente.
Dificilmente a FIA e a FOM chegarão ao ponto de banir o Racing Point RP20 Mercedes de competir este ano e no próximo, ou de castigar exemplarmente a Mercedes, devendo haver um acordo entre todos os intervenientes. Mas caso se verifique que a Racing Point não cumpriu o regulamento, será aberta uma das maiores polémicas na Fórmula 1 desde que a McLaren foi considerada culpada de ter espionado a Ferrari, o que levou a que fosse excluída do Campeonato do Mundo de Construtores de 2007 e a que pagasse à FIA um multa de cem milhões de dólares.
Não. A maior polémica é como é que há um acordo de confidencialidade entre um organizador de uma competição desportiva e um competidor, relativamente a uma infracção a um regulamento, e em vez de sair cá para fora (como acontece no mundo normal) uma penalização, e sua justificação, ou uma absolvição, e sua justificação, sai coisa nenhuma, porque, no entender das duas entidades, “chegámos aqui a um acordo”. Nunca tinha visto.