Grande Prémio do Japão de F1: A Consagração dos Campeões
Nação misteriosa e dona de uma cultura milenar única, o Japão é também um dos países mais desenvolvidos do mundo e com uma profunda ligação ao mundo automóvel e ao desporto motorizado. Assim sendo, não é de todo inesperado que a Fórmula 1 tenha criado facilmente raízes profundas no país do Sol Nascente.
Por Guilherme Ribeiro
Na atualidade, o Grande Prémio do Japão é uma das provas mais tradicionais do calendário e merecedora de “lugar cativo” para os a maioria dos fãs de F1. No entanto, o primeiro G.P. do Japão de F1 só se realizou em 1976, no rápido traçado de Mount Fuji. Depois de uma visita na época seguinte, o Japão só recebeu de novo a F1 em 1987, mas, a partir daí (com a exceção dos anos do COVID-19), tornou-se presença assídua no calendário, disputado em Suzuka, considerado como um dos circuitos mais técnicos e desafiantes do calendário mundial (com um intervalo entre 2007 e 2008, em que a F1 regressou a Fuji, já profundamente modificado por Hermann Tilke para tornar o circuito mais seguro e moderno…).
Devido à organização tradicional do calendário, que se manteve até à primeira década do Século XXI, a prova japonesa sempre se disputou no início do Outono, com a época dos tufões e tempestades do Oceano Pacífico a pregar algumas partidas aos pilotos e, sendo uma das últimas rondas do campeonato, assistiu a várias decisões do título mundial, muitas delas emocionantes e rodeadas de controvérsia. Com o alargamento – a meu ver, exagerado – do número de provas no Mundial de F1, a prova japonesa deixou de ser tão relevante para coroar campeões mas, ainda à data da escrita deste artigo, assisti pelas nove da manhã à consagração do neerlandês Max Verstappen que, ao volante do seu Red Bull, venceu expressivamente uma prova interrompida e reduzida pela chuva intensa e conquistou o seu segundo título consecutivo. É, então, momento para revisitar com o leitor as memórias de todos os títulos mundiais decididos em território nipónico.
1976 – Hunt vs. Lauda – quando a realidade é muito melhor que a ficção
À partida para o G.P. do Japão de 1976, a luta pelo título estava ao rubro, com Niki Lauda (Ferrari) a chegar ao Extremo Oriente com três pontos de vantagem sobre James Hunt (McLaren). À “vista desarmada”, parece um campeonato renhido desde a primeira prova, mas, na verdade, foi um dia trágico que proporcionou esta oportunidade. Niki Lauda e a Ferrari entraram na temporada de 1976 a dominar de uma forma ainda mais evidente que na temporada anterior e, só mais próximo do Verão é que James Hunt e a McLaren começaram a mostrar ter andamento para lutar pelas vitórias. No entanto, à partida do G.P. da Alemanha, Niki Lauda tinha uma vantagem deveras confortável e era uma questão de tempo até se sagrar campeão. A prova disputava-se no velho Nürburgring, num dia chuvoso e, durante a segunda volta, Lauda despistou-se numa zona húmida na secção de Bergwerk e o Ferrari incendiou-se com o impacto.
Salvo graças à atuação heroica de outros pilotos envolvidos no acidente ou que pararam para tirar o austríaco inanimado daquela bola de fogo, Lauda ficou internado ás portas da morte, não só pelas queimaduras, mas pela quantidade de fumos tóxicos que inalou. Com uma resiliência incrível e uma capacidade de recuperação quase sobre-humana, Lauda regressou à competição após seis semanas, perdendo apenas duas provas!! No entanto, o austríaco estava fisicamente muito diminuído e James Hunt tinha aproveitado para se aproximar muito do piloto da Ferrari. Lauda aguentou-se melhor do que o esperado e não perdeu a liderança do campeonato, mas, no dia do G.P. do Japão, caía uma chuva intensa no Autódromo de Fuji. Com condições de visibilidade dantescas, Lauda optou por entrar nas boxes no final da segunda volta e abandonar, não tendo qualquer problema em reconhecer que não estava preparado para correr naquelas condições e arriscar a vida por um título. Na verdade, as queimaduras faciais sofridas por Lauda tinham afetado a flexibilidade das pálpebras e, perante tais condições de visibilidade, Lauda não conseguia pilotar em segurança.
James Hunt, que tinha assumido a liderança na largada, precisava de apenas quatro pontos para vencer, e dominou a prova enquanto a pista estava encharcada. No entanto, quando a pista começou a secar rapidamente, Hunt perdeu terreno devido à degradação excessiva dos pneus e, a poucas voltas do fim, um furo obrigou-o a parar na box, atirando-o para quinto. Com “a faca nos dentes”, Hunt ultrapassou Alan Jones e Clay Regazzoni e chegou de novo a terceiro embora, na confusão das voltas finais, não se tivesse apercebido que tinha acabado de conquistar o título por apenas um ponto!!! Foi um final épico, que merece ser contado numa futura edição do Autosport.
1987 – Piquet vs. Mansell – a segunda derrota de “Il Leone”
Depois de uma década de ausência, a F1 regressou ao Japão em 1987, para não mais sair. Depois da aventura Honda na F1 (1964-1968), nenhum grande construtor japonês se tinha aventurado na categoria máxima e o forte cenário competitivo interno, aliado ao interesse nacional da maioria dos patrocinadores, fez com que o automobilismo japonês, em oposição às duas rodas, continuasse a crescer, mas de forma praticamente isolada do mundo exterior.
Durante os anos 70, vários pilotos nipónicos tinham aparecido na Europa, chegando mesmo a correr pontualmente na F1, e dois construtores artesanais – Maki e Kojima – tinham colocado de novo o Japão no mapa da categoria-rainha do desporto automóvel. No entanto, estas aventuras nunca tiveram grande sucesso nem seguimento por vários fatores, partindo da omnipresente falta de dinheiro e acabando no choque cultural gigantesco. Porém, a Honda decidiu investir nos monolugares nos anos 80, alcançando rapidamente sucesso como fornecedora de motores na Fórmula 2 e dando o salto para a F1 em 1983, agora com os possantes motores turbo. Depois de testar com a Spirit, a Honda entrou numa parceria com a Williams que não demorou a dar frutos, com a primeira vitória a surgir em 1984. Em 1986, a Williams-Honda tinha o melhor carro, mas a luta interna entre Nelson Piquet e Nigel Mansell, aliada à regularidade, inteligência e capacidade tática da McLaren e de Alain Prost permitiram ao francês roubar o título à Williams nas voltas finais do G.P. da Austrália de 1986.
Em 1987, a Honda fornecia motores à Williams e à Lotus, mas ficou claro desde muito cedo que nem a Lotus nem a McLaren tinham andamento para a equipa de Grove e a segunda metade do campeonato foi, de novo, uma luta acirrada entre ambos. Mansell obteve mais vitórias, mas sofreu com mais problemas mecânicos, o que deu uma confortável liderança a Piquet à chegada da ronda japonesa (apesar de Piquet ter sofrido um grave acidente nos treinos do G.P. de San Marino que o deixou com sequelas para o resto da carreira e lhe diminuiu os reflexos ao longo da temporada). Mais regular e mais forte psicologicamente que Mansell, Piquet tinha o título praticamente ganho, mas o inglês não ia desistir sem luta. Infelizmente, nos treinos de sexta-feira, Nigel Mansell sofreu um violento despiste nos esses e fez uma concussão lombar que o afastou para o resto da temporada, entregando automaticamente o título ao seu rival brasileiro. Por muito teatral que Mansell fosse, a lesão foi bastante dolorosa e privou os espectadores de um duelo épico. Na corrida, sem preocupações pelo título, Piquet não forçou e Gerhard Berger dominou a prova, pondo fim ao jejum de vitórias da Scuderia, que durava desde 1985.
1988 –Senna vs. Prost – Ayrton Senna Superstar
Desde o domínio da Ferrari em 1952 e 1953 que não havia uma potência tão esmagadora quanto a McLaren em 1988. Obra-prima de design e engenharia, o McLaren MP4/4-Honda, nas mãos de Alain Prost e Ayrton Senna, dominou por completo a temporada, vencendo 15 das 16 provas, só perdendo o G.P. de Itália devido a um erro de Senna nas últimas voltas. À chegada ao Japão, Prost e Senna discutiam o título entre si, com a concorrência “a milhas”, mas com uma nuance. À data, só contavam os melhores 11 resultados em 16 provas, o que favorecia o piloto com mais vitórias ao invés da regularidade. Prost tinha mais pontos e tinha sido bem mais regular, mas uma vitória de Senna (que tinha maior número de vitórias) daria automaticamente o título ao piloto brasileiro, cuja superioridade em velocidade pura era clara.
Na qualificação, Senna deu um passo gigante para o título ao conquistar a pole-position na frente do seu colega de equipa. O dia da corrida amanheceu frio e muito nebulado e, no momento da largada, Ayrton Senna deixou o motor ir abaixo, só conseguindo largar pelos próprios meios devido à ligeira inclinação da reta da meta em Suzuka. Enquanto Prost se isolava na frente, Senna era décimo-quarto, mas imediatamente iniciou uma fabulosa recuperação, ultrapassando seis carros só na primeira volta! Se Prost ganhava tempo na frente, Senna encetava uma recuperação digna de génio para chegar ao terceiro lugar com 14 voltas cumpridas. Nesse momento, começava a chover ligeiramente em Suzuka e Prost estava sob forte pressão do sensacional Ivan Capelli (March/Leyton House), chegando mesmo a ser ultrapassado pelo italiano após uma dobragem mal conseguida. Enquanto isso, Senna aproveitava a chuva e a luta entre os pilotos da frente para ganhar terreno.
Pouco depois, Capelli abandonava com problemas elétricos, depois de pressionar Prost até a mecânica ceder. Além de não se sentir muito à vontade no piso molhado, Prost estava com alguns problemas de caixa de velocidades, que o atrapalhavam nas dobragens. Tal não tira mérito a Senna que, com pneus slicks num traçado cada vez mais molhado, fazia voltas cada vez mais rápidas e não tardou a alcançar o francês e a aproveitar uma dobragem para passar pelo francês e disparar na frente, vencendo a corrida e o título com enorme autoridade. Foi a primeira e única vez na história da F1 que o título não foi vencido pelo piloto com mais pontos – se os resultados fossem contados na totalidade, Prost seria campeão (merecido) com 11 pontos de avanço sobre Senna, graças a uma regularidade impressionante – e contribuiu para que esta regra fosse eliminada em 1991.
1989 – Prost vs. Senna, uma ‘guerra sem quartel’
Se a convivência entre Senna e Prost nunca foi fácil desde o início, o ambiente foi-se degradando na segunda metade da temporada de 1988 e atingiu um ponto de não-retorno após o G.P. de San Marino de 1989, quando Senna não respeitou um pacto feito com Prost na presença de Ron Dennis e de John Hogan, representante da Marlboro. Sem “clubismos”, são por demais conhecidas as virtudes e os defeitos destes dois campeoníssimos e Prost, com as suas jogadas políticas de bastidores e a imprensa, só piorou a situação. No entanto, há que dizer que as declarações de Prost sobre San Marino fora ditas “off the record” a um jornalista francês que, adequadamente, se “esqueceu” do pormenor e revelou a história. A partir daí, os dois lados ficaram em guerra aberta, com acusações mútuas e um Prost cada vez mais isolado no seio da McLaren. Apesar do domínio da equipa de Woking não ser minimamente semelhante a 1988, a McLaren ainda era claramente superior às rivais e, à chegada ao Japão, Prost e Senna eram os únicos que podiam vencer o campeonato. Graças a uma maior consistência, Prost chegava na frente e Senna precisava de vencer no Japão e na Austrália para depender apenas dele para ser campeão, mais uma vez devido às regras de pontuação da época.
Senna fez a pole-position. Por seu lado, Prost pediu aos seus engenheiros para retirarem o Gurney flap do seu McLaren, apostando assim numa afinação que lhe daria maior velocidade de ponta num circuito bastante rápido. Senna largou mal e Prost disparou no comando, para não ser mais incomodado durante a primeira metade da prova. No entanto, após as paragens para troca de pneus, Senna estava com maior ritmo e, com pneus mais frescos, começou a aproximar-se de Prost, que decidiu jogar taticamente, permitindo a aproximação de Senna. Com vantagem em termos de velocidade, Prost obrigava Senna a arriscar muito e a desgastar os pneus, enquanto geria a degradação dos seus até à estocada final. No entanto, Senna tinha vantagem nas zonas mais sinuosas da pista e os McLaren rodaram juntos durante algumas voltas, sempre com Prost a manter-se friamente na liderança. No entanto, na volta 47, Senna conseguiu apanhar o cone de ar de Prost na zona mais sinuosa e chegar à última fase do circuito colado ao francês, arriscando tudo por tudo para ultrapassar na chicane que antecedia a reta da meta…
Senna arriscou pelo interior, travando o mais tarde possível, mas Prost percebeu a manobra e decidiu fechar a porta, virando mais cedo para a chicane. Antes da prova, Prost tinha dito a Ron Dennis que não iria mais deixar-se intimidar pelas manobras agressivas de Senna e que, caso este forçasse a ultrapassagem, não iria hesitar em fechar a porta. O resultado é conhecido por todos. Os McLaren colidiram e ficaram enganchados um no outro, sem danos de maior em nenhum dos carros. Enquanto Prost, tendo o título garantido, optou por sair do carro e desistir, Senna, que não tinha deixado o motor ir abaixo, gesticulou furiosamente para os comissários para libertarem o seu McLaren, que tinha apenas a frente partida. Resolvida tal operação, Senna avançou pela escapatória da chicane e regressou à pista ainda no comando, tal foi o domínio McLaren nessa tarde de Outubro, parando imediatamente na box para mudar a asa dianteira e regressando à pista em segundo, a 5 segundos do Benetton de Alessandro Nannini. Duas voltas depois, Senna ultrapassou Nannini com uma manobra semelhante na chicane e cruzou a meta vitorioso, adiando a decisão do título para Adelaide.
O resto é por demais conhecido. Senna foi imediatamente desclassificado por ter atalhado pela escapatória, em vez de meter marcha-atrás e fazer a chicane (teoricamente, seria mais lógico desclassificar por ter precisado de ajuda externa para regressar à pista), acusando em seguida Balestre e o colégio de comissários de agirem deste modo para favorecer Prost, francês e (aparentemente) amigo de Balestre. Certo é que a vitória foi entregue a Nannini e que Senna e a McLaren iniciaram uma guerra com a FISA que fez correr muita tinta e deixou os dois campos mais extremados que nunca. Os comissários sempre negaram ter havido qualquer conluio quando tomaram essa ação e rumores apontam para uma eventual vendetta contra Ron Dennis e não contra Senna por parte de Balestre (já que Prost iria para a Ferrari e levaria consigo o precioso número 1). O que se passou exatamente naquela sala não se sabe nem se vai saber, porque a maioria dos intervenientes já faleceram e ninguém falou nem apareceram memórias de ninguém, pelo que duvido que algum dia se descubra. Por ironia do destino, o título de 1989 teria sido bem mais merecido por Senna, que venceu mais provas e só não liderava o campeonato por alguns incidentes e muitos azares mecânicos porque, ao contrário do ano anterior, Prost raramente foi capaz de bater Senna em velocidade pura.
1990 – Senna vs. Prost – o ajuste de contas
Senna e Prost chegaram a Suzuka novamente sozinhos na disputa pelo título. Depois do final controverso em 1989 e da humilhação imposta por Balestre e pela FISA durante a pré-época, Senna estava mais focado que nunca em bater o seu rival e conquistar o seu segundo título, considerando que tinha sido vítima de uma manipulação deliberada no ano anterior. A McLaren continuava a ter o melhor carro, mas Prost e a Ferrari tinham conseguido estar por perto e, durante o Verão, uma série de vitórias por parte do francês, aliado a alguns erros de Senna, permitiram ao campeão do mundo tomar a liderança do campeonato. Pela primeira vez desde 1985, a Scuderia estava na luta pelo título, mas, como tinha acontecido tantas vezes (e continuou a acontecer…), a Ferrari teve dificuldades em acompanhar o desenvolvimento das rivais na fase final da temporada e Senna recuperou terreno e parecia ser capaz de sentenciar o campeonato antes de Suzuka. Porém, o brasileiro desistiu devido a uma falha mecânica em Espanha e a vitória de Prost permita-lhe lutar pelo título até ao fim, embora precisasse de terminar à frente de Senna e, preferencialmente, ganhar e ter alguns adversários entre os dois para poder levar a discussão do título até Adelaide.
Senna voltou a fazer a pole, mas Balestre tinha determinado que a grelha seria formada com o pole-position do lado sujo da pista. Senna e Berger pediram aos comissários para anular (com lógica) esta decisão, ao que os japoneses acederam, mas Balestre imediatamente usou o seu poder ditatorial para impor a sua vontade. Enfurecido, Senna remoía a sua vontade de ajustar conas com Balestre e Prost, decidindo que na primeira curva não daria quartel. Dito e feito. Prost largou bem melhor que Senna e tomou o comando, mas deixou espaço suficiente para Senna se meter e, deliberadamente, o brasileiro forçou a ultrapassagem e atingiu em cheio o Ferrari, levando a um acidente que deixou os dois carros nas barreiras, o que lhe entregou imediatamente o título. Senna nunca escondeu as suas intenções deliberadas, provavelmente a maior mancha na sua carreira. Não que Prost tivesse sido santo no ano anterior, mas Senna não precisava de ter feito o que fez, principalmente numa curva de alta velocidade, já que poderia ter tido consequências graves para ambos. Infelizmente, estes tipos de manobras abriram precedentes para os finais de campeonato de Adelaide em 1994 e Jerez de la Frontera em 1997 e para uma crescente agressividade e intencionalidade de manobras em pista que em nada acrescentam à nossa modalidade senão vergonha.
(continua…)
Se o Senna fizesse o que fez em 89 hoje seria penalizado, e em 90 o mesmo. A manobra de 89, naquela curva era impossivel, ontem como hoje. Foi algo de desesperado.Mas, como era o Senna…Se fosse outro qualquer, o discurso teria sido outro.