Recordar Gilles Villeneuve: Campeão sem coroa

Por a 8 Maio 2020 07:20

TRIBUTO A GILLES VILLENEUVE – CLIQUE AQUI PARA VER O VÍDEO

Passam hoje 38 anos sobre a morte de Gilles Villeneuve. Eram 13 horas e 52 minutos da tarde da sábado, oito de Maio de 1982, faltavam oito minutos para o final da qualificação para o GP da Bélgica, quando um desentendimento com o veterano Jochen Mass causou a morte ao piloto mais querido da sua época.

Mesmo tendo ganho “apenas” seis Grandes Prémios e sem nunca ter sido Campeão do Mundo, Gilles Villeneuve entrou no panteão dos grandes nomes do automobilismo por direito próprio e ainda hoje é recordado como um dos maiores pilotos de todos os tempos. O seu estilo inconfundível, a sua coragem sem limites, a sua combatividade única, fizeram de Gilles Villeneuve um piloto aparte, cuja carreira tem sido amplamente documentada nas últimas quatro décadas. Para recordarmos o genial canadiano, recolhemos três testemunhos bem distintos: o de Joann, a sua companheira, que nos fala de como viveram e de como era Gilles na intimidade; o de Jacques, o seu filho, que explica o legado que recebeu de Gilles; e o de Niki Lauda, o grande campeão da época em que o canadiano correu na Fórmula 1 e que há algunas anos nos deu a sua visão pragmática do homem que considerava “o melhor de todos nós.” Três testemunhos, três imagens diferentes de Gilles Villeneuve, mas unânimes na homenagem que fazem a este verdadeiro Campeão sem coroa que foi o último piloto por quem Enzo Ferrari sentiu uma verdadeira paixão!

Jacques Villeneuve: “Gilles teria orgulho em mim!”

Para Jacques Villeneuve só havia uma profissão possível: a de piloto. Tendo perdido o pai ainda na infância, o Campeão do Mundo de 1997 confessa ter poucas recordações de Gilles, mas admite, agora, ter pensado muitas vezes no mítico piloto ao longo da sua carreira. E explica a razão pela qual era tão avesso a falar do pai quando chegou à Fórmula 1: «Desde que me lembro sempre quis ser piloto, como o meu pai. Íamos com ele para todos os circuitos, a minha mãe, a minha irmã e eu e esse era o nosso universo. Por isso nunca me passou pela cabeça ter outra profissão, mas como criança nunca percebi os enormes sacrifícios que o meu pai fazia para ser piloto de Fórmula 1. E quando a minha mãe me perguntou o que eu queria ser, anos depois da sua morte, respondi logo que queria ser piloto! Desde a minha primeira corrida, em karting, quando tinha 15 anos, que fui perseguido pela pergunta “o que pensaria o teu pai ao ver-te correr” e respondi para mim próprio que ele ficaria seguramente orgulhoso, mas não esperava que durante mais de dez anos quase todas as questões que me colocassem fossem acerca dele. Quando cheguei à F1 isso foi uma constante e criei uma barreira à minha volta, não respondendo a perguntas sobre Gilles. Não porque tivesse algo contra ele, como até chegaram a escrever, mas porque queria concentrar- me na minha carreira. Levaram anos até deixarem de me chamar “Gilles” sem darem conta que o faziam.»

«Houve muitas alturas em que pensei nele: quando ganhei a minha primeira corrida, em F3 no Japão; quando ganhei em Indianápolis; ou quando fui Campeão do Mundo. Teria sido bom ter o meu pai ao meu lado, para partilhar esses resultados com ele e ver que ele tinha orgulho no que eu estava a fazer. Falando com amigos seus fiquei a saber que, sem me dizer nada, Gilles esperava que eu fosse como ele e me tornasse piloto. Era por isso que ele era muito mais exigente comigo do que com a minha irmã: porque queria que eu tivesse um carácter como o seu para estar preparado para ser piloto.»

«Confesso que só fechei o seu capitulo quando pilotei o seu Ferrari de 1978 em Goodwood há alguns anos. Foi a minha maneira de lhe dizer “obrigado e adeus”, pois nunca o tinha realmente feito. Ter pilotado um carro que tinha sido dele aproximou-me bastante de Gilles e permitiu-me percebê-lo melhor. Agora que vou correr em Le Mans admito que teria sido maravilhoso partilhar o Peugeot e a mesma paixão com ele. Consegui melhores resultados do que ele, mas isso foi porque tive melhores carros e a oportunidade certa. O meu pai é uma lenda do automobilismo e as lendas não se batem: admiram-se.»

Joann Villeneuve: «Com o Gilles vivíamos sempre no limite»

Companheira de Gilles Villeneuve ao longo de toda a carreira do canadiano, Joann Villeneuve fala candidamente do seu marido. Da forma como se conheceram, dos anos de dificuldades que viveram, da sua mania da perfeição e, claro, das suas loucuras fora das pistas. Um relato que mostra bem a personalidade do genial piloto canadiano: «Conheci o Gilles numa discoteca que ficava entre as nossas duas vilas, perto de Montreal. Foi a minha irmã Simone que me falou dele e quis apresentar- nos. Na altura ele não falava de corridas mas parecia muito interessado em música, pois tocava muito bem piano e trompete, que era a sua especialidade e o levara à orquestra de Jazz da escola. Mas percebi logo que ele gostava de conduzir depressa, algo que herdou do seu pai, Séville, e qualquer saída de carro parecia-me um rali, pois andávamos mais de lado do que para a frente. E ele também estava sempre com a cabeça debaixo do “capot”, pois tinha alma de mecânico e queria melhorar sempre o carro. O Séville ofereceu- lhe uma moto de neve e foi com ela que o Gilles começou a competir. Tornou-se imediatamente no melhor piloto da zona e, pouco depois, de todo o país, ganhando corridas e campeonatos. Depois vieram os automóveis, mas não tínhamos dinheiro e vivíamos como ciganos. Vivíamos numa pequena motorhome, pois casámos cedo e logo depois nasceram o Jacques e a Melanie e, desde que houvesse dinheiro para ele correr e para nós comermos estava tudo bem. Mas um dia ele teve de vender a motorhome para comprar um carro novo e passámos a viver em casa dos nossos pais e a deslocarmo-nos numa roulotte. Estávamos no limiar da pobreza, mas ele vivia a sua paixão e a mim aquele estilo de vida não me desagradava.»

«Com o contrato com a Ferrari acabaram os nossos problemas de dinheiro. Arrendámos uma vivenda perto de Grasse, no Sul a França, mas o Gilles detestava perder tempo a entrar e sair dos circuitos e, por isso, comprámos uma nova motorhome e vivíamos lá dentro durante os Grandes Prémios. Assim ele podia estar com os mecânicos até tarde e passar, também, mais tempo com as crianças, pois eles iam connosco para todo o lado. Parecendo tímido e despreocupado o Gilles queria controlar tudo o que fazíamos e se eu ia almoçar com uma amiga ao fim de uma hora já estava a ligar para o restaurante para me perguntar quando é que eu voltava para casa! Controlava o que eu vestia, com quem eu falava, o que eu tinha preparado para o almoço – tudo. Era quase um maníaco, mas era exigente consigo próprio e, por isso, também com quem estava à sua volta. Quando começou a perder cabelo tratou logo de saber como se faziam implantes; quando começou a ter problemas para ler, deixou de o fazer em público e só colocava os óculos em casa.»

«As suas loucuras eram assustadoras para mim, mas também divertidas. No Canadá, numa estrada cheia de neve, mandou-me conduzir e, de repente, puxou o volante, “para ver como é que te safavas!” E no helicóptero, uma vez, largou os comandos e disse-me: “pilota tu, ou vamos cair!” Tal como ele vivíamos no limite porque essa era a sua forma de estar no Mundo.»

Niki Lauda: «Gilles era o meu tipo de louco!»

Dificilmente se encontrará na história da Fórmula 1 uma diferença de estilos maior do que a que separava Gilles Villeneuve de Niki Lauda. Frio, calculista, verdadeiro estratega das corridas, o austríaco nada tinha a ver com o genial equilibrista canadiano, mas entre os dois existia uma grande respeito mútuo e uma franca amizade. Lauda fala sempre com carinho do seu antigo companheiro de profissão, não escondendo a admiração que tinha pelo seu talento e personalidade. «Ainda hoje sinto falta do Gilles quando venho aos circuitos. Doido como ele era pela Fórmula 1, ainda estaria no paddock dos Grandes Prémios hoje em dia, mesmo que já corresse noutra categoria – sim, porque ele era daqueles que nunca deixaria de correr! Sempre tive um grande carinho pelo Gilles e desde a primeira vez que o vi em pista que percebi que ele tinha um talento superior a todos nós e era capaz de fazer coisas que mais ninguém fazia. É verdade que ele bateu muito nos seus primeiros anos na Fórmula 1, porque queria perceber o limite ultrapassando-o, mas mesmo na véspera da sua morte passou-se uma coisa que me mostrou que, no fundo, ele não mudou, no essencial, até ao fim. No início do primeiro treino livre daquele GP da Bélgica eu sai para a pista à sua frente, para fazermos a volta de instalação.

Eu ia devagar porque a pista estava muito suja e à terceira curva ele passou-me e foi-se embora, andando logo a fundo. Pouco depois fez um pião, não tocou em nada e fomos os dois para as boxes. Saí do meu carro e fui-lhe perguntar porque é que ele era tão doido, a correr riscos numa volta de instalação e a resposta dele ficou comigo para sempre: Niki, eu só sei pilotar assim – a fundo o tempo todo!»

«Mas Gilles só corria riscos consigo próprio e de todas as vezes que discuti posições com ele na pista nunca me senti minimamente em perigo porque o Gilles era ultra-profissional e cem por cento correto. Duro mas honesto e isso hoje em dia já não se vê muito… Dava gosto pilotar contra ele, pois não podíamos deixar de o admirar, já que punha toda o seu coração na pilotagem e teria sido Campeão do Mundo em 1982 e 1983 se não tem morrido. Fora das pistas ele também era único. Uma vez, em Zolder, estava no meu hotel, de noite, e ouvi um helicóptero por perto. Os helicópteros não podem voar à noite e como sou um apaixonado pela aviação sai do quarto, fui ao jardim e quis ver quem era aquele maluco. Claro que era o Gilles, que ficou muito satisfeito quando me viu e disse-me: graças a ti encontrei o meu hotel. Sai tarde de Nice, anoiteceu e eu estava perdido, mas quando te vi aqui percebi que este deveria ser o meu hotel! Digamos que ele era maluco, mas era o tipo de maluco de que eu gosto! O que mais apreciava nele era a sua honestidade e frontalidade. Como eu, o Gilles dizia o que pensava, sem fazer jogos políticos ou utilizar a imprensa. Era um homem puro, que falava o que lhe ia na alma, sem malícia, sem maldade, com toda a verdade. Gente dessa faz falta neste mundo onde andamos todos preocupados em ser politicamente corretos!»

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Fernando Cruz
Fernando Cruz
4 anos atrás

Concordo com Niki Lauda. O Gilles Villeneuve seria Campeão do Mundo em 1982 e 1983. No primeiro ano seria uma luta titânica com Didier Pironi, mas o canadiano acabaria por levar a melhor. Terá sido o que aconteceu em Imola que deitou tudo a perder, contribuindo para o sucedido em Zolder. Perdemos assim aquele que seria um dos melhores campeonatos de sempre. Tal como aconteceu em 1994 com outros protagonistas. Dois campeonatos tristemente amputados por acidentes trágicos, em que o melhor do mundo perde a vida logo no início. Tal como também tinha acontecido em 1968 quando morreu Jim Clark.

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