MUDAR DE PISTA
Foi há dois anos que o mais laureado dos ciclistas olímpicos trocou a bicicleta pelos carros de corrida. Após se sagrar campeão da categoria LMP3 na European Le Mans Series, Chris Hoy prepara-se para cumprir o sonho de criança de correr nas 24 Horas de Le Mans. Nós falámos com ele.
O encontro decorreu à porta fechada, na motorhome da Ginetta. Chris Hoy e Charlie Robertson realizavam no Circuito do Estoril a última ronda da temporada de 2015 da European Le Mans Series – de certo modo uma prova de circunstância considerando que ambos tinham garantido o título da categoria LMP3 na ronda anterior, em Paul Ricard. Talvez por isso ‘Mr. Hoy’ estivesse tão relaxado. Mas, ainda assim, saltou à vista uma humildade e simpatia pouco habituais numa figura tão importante para o Reino Unido, o ciclismo e o desporto no seu todo.
Chris é o campeão da arte de andar depressa numa pista coberta. Dominou como ninguém o selim e o guiador, e a prová-lo estão as sete medalhas (seis de ouro e uma de prata) em quatro edições dos Jogos Olímpicos (2000, 2004, 2008 e 2012) – um feito que o torna no ciclista de maior sucesso da competição e que foi devidamente reconhecido pela Rainha de Inglaterra com o grau de Cavaleiro da Ordem do Império. Dois anos após a sua retirada oficial do desporto, o escocês prepara-se para correr em Le Mans em 2016. Nada mau para quem anda nisto há 24 meses – talvez o tempo que todos nós, em crianças, precisámos para andar, sem as rodinhas de apoio, de bicicleta…
PILOTO… AOS 37 ANOS!
De café ‘Ginetta’ nas mãos (um copo de plástico com o site e o Twitter da equipa ilustram as maravilhas do marketing das corridas) e gravador em cima da mesa, Chris começa por revelar que, até 2013, as suas únicas experiências fora dos maiores recintos de pista coberta do mundo tinham ocorrido em animados track-days, embora nunca mais do que “duas ou três vezes” por ano: “No final da temporada de ciclismo tinha um mês para relaxar, fazer treinos leves e outras coisas que me interessavam. E então costumava levar um carro ao pequeno circuito local que se encontrava perto da minha casa. Adorava fazê-lo, apenas por diversão. Nunca pensei que poderia vir a correr um dia”, referiu.
Chris não teria tido qualquer problema em passar mais alguns dias por ano neste tipo de brincadeiras, até por todo o tempo livre que o esperava quando anunciou a sua retirada do ciclismo, em março de 2013. Mas eis que pouco depois surgia a oportunidade de participar na SR1 Cup, um troféu para pilotos amadores idealizado pela Radical, um dos muitos fabricantes britânicos de veículos de competição:
“Estava à conversa com o Roger Green, o diretor de marketing da Radical, explicando-lhe que gostaria de experimentar o mundo do desporto motorizado. Mas que simplesmente não sabia por onde começar. Ao que ele me diz: ‘Bom, esta é a oportunidade perfeita para te iniciares’. Aceitei o desafio porque achava que era uma grande oportunidade. Mas, mais uma vez, nunca pensei que iria além disto. Até que apareceu a Nissan…” Aos 37 anos, acrescentamos!
Por intermédio de Andy Palmer, na época vice-presidente da marca japonesa, a Nissan – que já tinha uma relação de patrocínio com as equipas britânicas e os próprios Jogos Olímpicos de Londres – propôs que Chris se tornasse num dos seus embaixadores. Um repto que foi ‘negociado’ da seguinte forma: “Seria fantástico. Mas e se também me deixassem fazer algumas corridas convosco?” A provocação teria como resposta outro desafio: “Tudo bem. O que achas de Le Mans como o teu derradeiro objetivo?” Num passo de mágica, Chris tinha passado de um condutor amador com um historial de atravessadelas em track-days para piloto oficial da Nissan no Campeonato Britânico de GT aos comandos de um potente GT-R Nismo GT3. “Eles já tinham provado que era possível trazer novatos da PlayStation para as corridas. Portanto a fazer esta transição seria com eles e é fantástico que estejam a apoiar-me”, referiu, com um sorriso.
EMBARAÇOSO
Apesar do entusiasmo da voz, a época seguinte nos GT não seria famosa, com o agora ‘piloto’ a pagar o preço da inexperiência. Um sétimo lugar em Silverstone, a quarta prova do campeonato, foi o melhor que o escocês e o seu companheiro de equipa Wolfgang Reip fizeram até meio do ano. Mas eis que em julho, no icónico Spa-Francorchamps, surgiu o primeiro pódio. Com ele tudo mudou: “Foi um momento muito importante porque duas semanas antes eu tinha sofrido um acidente no Festival de Velocidade de Goodwood que afetou realmente a minha confiança. Foi embaraçoso… à frente de muitas pessoas… No fundo, o pior sítio possível para se ter um acidente. Se tiveres um azar numa corrida ninguém se interessa muito pelo assunto porque faz parte deste mundo. Mas neste tipo de eventos como Goodwood tudo o que a imprensa quer saber é quanto custou o carro e o tipo de idiota que tu és. Voltar pela primeira vez ao mundo da competição após esse incidente e conseguir um pódio com o Wolfgang foi mesmo o que eu precisava, pois apercebes-te que, para estares nessa situação, as tuas indicações sobre o carro, a forma como ele foi acertado – e as condições da pista e alguma sorte, porque não – tiveram influência no resultado.”
“Todos os homens pensam que são grandes pilotos. Mas só quando estás numa pista com um carro a sério é que percebes que na verdade somos todos medianos e que os tipos que são bons são realmente muito bons”
Sobre as semelhanças entre o ciclismo e o desporto motorizado, Chris refere a “atenção pelo detalhe” como o maior ponto em comum entre as duas disciplinas: “Tanto numa como noutra olham-se sempre para todas as áreas à procura de otimizar o que existe. Mas já sobre o talento, jeito ou destreza, na verdade não existem quaisquer semelhanças”, acrescenta. Há ainda outro paralelismo – a capacidade de foco no que pode ser controlado: “No ciclismo há muita coisa a acontecer ao teu redor. Tens os teus adversários, as câmaras de televisão, a multidão, o barulho… Eu costumava focar-me no meu trabalho, naquilo que tinha de fazer. E é exatamente igual dentro de um carro de corrida. Existem muitas distrações e é um desporto perigoso, mas tu focas-te no que tens de fazer, nos princípios básicos da condução e em poderes entregar o carro ao teu companheiro de equipa.”
Antes tinha-nos dito que o seu passado como um atleta de topo não era propriamente uma vantagem no momento de suportar tudo o que um carro de competição pede do corpo: “São exigências físicas distintas. Mas é claro que o ciclismo ajudou. Aliás, podes ver que muitos pilotos utilizam-no como uma forma de se prepararem para as corridas. A única coisa que sei é que não é pela forma física que sou mais lento do que os outros. É pelo lado mental, a habilidade. E a dificuldade de tentar aprender uma coisa nova. É como se eu agora começasse a jogar ténis ou a aprender a tocar piano. São coisas que normalmente se iniciam muito cedo. Todos os homens pensam que são grandes pilotos. Mas só quando estás numa pista com um carro a sério é que percebes que na verdade somos todos medianos e que os tipos que são bons são realmente muito bons. E tentar encurtar essa diferença entre o tipo que gosta de conduzir carros e pensa que é um bom piloto e alguém que realmente consegue fazê-lo de forma satisfatória é um grande desafio. É por isso que eu tenho um grande respeito pelos pilotos de topo, como por todas as pessoas que são verdadeiramente extraordinárias nas suas áreas. Elas fazem com que as coisas pareçam tão fáceis, mas é tudo menos isso.”
Uma das grandes características dos melhores pilotos do mundo é a sua capacidade de camuflar o medo inerente a uma atividade de alto risco como aquelas que invariavelmente têm como palco os circuitos. Para ‘Sir’ Hoy, “o medo ajuda a manter-te focado” e faz parte da “emoção” que rodeia as corridas: “São perigosas, excitantes, assustadoras. Mas também muito divertidas e capazes de entregar um rasgo enorme de adrenalina de cada vez que entramos no carro. Isso nunca muda. Nunca te aborreces. Nunca te habituas a isso. É sempre o mesmo entusiasmo de cada vez que ligas a ignição e sais do pitlane”, refere.
A atraí-lo para o desporto esteve “uma pista da Scalextric” oferecida pelo pai e o desafio de testar as suas capacidades: “Quanto me retirei não queria dizer às pessoas que tinha acabado com o ciclismo e que agora ia passar os dias com os pés esticados, a falar do antigamente. Quero provar novos desafios e ter novos objetivos pelos quais olhar em frente. E nem é que eu seja propriamente uma daquelas pessoas que adoram correr riscos na sua vida. Mas penso que é importante colocarmo-nos à prova em áreas onde estejamos desconfortáveis e que puxem pela nossa capacidade de superação. Não apenas no desporto, mas em tudo o que fazemos”, avança.
APRENDER OS LIMITES
Para alguém com pouca experiência na matéria, poderia pensar-se que Chris procuraria ter uma abordagem cuidada sempre que se encontra ao volante. Mas o britânico afirma que os erros foram necessários na sua transformação como um piloto de corridas: “Tem tudo a ver com confiança. As pessoas podem sentar se contigo e dizer o que tens de fazer, mas na verdade tem tudo a ver com a experiência e com seres capaz de aprender sozinho. Tens de cometer erros para aprender: ‘Travei demasiado tarde’, ‘entrei demasiado depressa aqui’. Se estiveres sempre a conduzir devagar nunca irás aprender os teus limites e os limites do carro, e tens de andar depressa para cometer esses erros. Mas depois quando os cometes podem ser bastante públicos e visíveis, o que também é complicado. No ciclismo tudo passava por treinar no duro. Treinar, treinar, treinar. Todos os dias. Seis horas por dia, seis vezes por semana. Mas aqui tens apenas um conjunto limitado de horas dentro do carro, portanto tens de fazer com que cada volta conte para extrair o máximo desempenho.”
Dono ou não da razão, a verdade é que a estratégia parece ter funcionado. Em 2015, a dupla Chris Hoy/Charlie Robertson festejou três vitórias e um pódio nas cinco corridas da ELMS. “É fantástico. No início do ano não pensava de forma alguma no campeonato. Apenas em fazer o meu trabalho no máximo das minhas capacidades, até pela responsabilidade. O Charlie não está a fazer isto apenas porque é algo de que ele gosta muito – as corridas são a vida dele, portanto eu quero fazer o melhor possível para garantir que não estou a prejudicar a sua temporada ou a impedir as suas oportunidades. E depois também quero fazer justiça ao esforço da equipa, sendo rápido e fazendo um bom trabalho procurando não cometer muitos erros.”
FORMA DISTINTA
Nesse sentido, e apesar da diferença de idades (39 anos contra os 18 do colega de equipa), Chris beneficiou muito dos ensinamentos de um verdadeiro piloto profissional, até porque não teve medo de colocar as suas dúvidas ao jovem Robertson: “Aprendi muito dele e ainda mais nestas circunstâncias, em que o trabalho de equipa é decisivo e eu queria evoluir. Alguém na minha posição tem de estar sempre a colocar questões, a pedir conselhos e a observar o que fazem. Ele pode ter apenas 18 anos, mas tem 13 de experiência – corre desde os cinco ou seis anos – enquanto eu tenho dois. Portanto posso aprender de todos os quadrantes. Da sua abordagem ou de coisas pequenas ou básicas que tomas como garantido. E já consigo ver a evolução desde o início da temporada. No início do ano o meu cérebro estava completamente preenchido com todos os aspetos primários da condução, enquanto agora já começam a fazer parte da minha natureza no sentido em que já não penso neles. Tudo é mais instintivo. E então consigo utilizar o meu cérebro para pensar noutras coisas, como a estratégia, a posição do carro, defender, ultrapassar ou deixar que outros pilotos me ultrapassem. Por isso consegues ver no espaço de uma temporada como a transição se processa. Não é apenas ao nível dos tempos por volta – é também na forma como abordas toda a corrida.”
Já Charlie Robertson afirma que trabalhar com Chris Hoy foi “realmente especial”, acrescentado que o antigo ciclista é “um grande exemplo” para qualquer desportista: “Competir num nível muito alto como ele o fez, e depois mudar de desporto e estar disponível para aprender e realmente melhorar tão depressa é impressionante. Ele tem sido um excelente companheiro de equipa e pessoa com quem se trabalhar. Penso que nos ajudamos mutuamente porque ele traz um lado profissional para o desporto. Pode ajudar-me porque eu ainda sou novo, ainda estou a aprender. E posso utilizar essa sua forma de encarar as coisas na minha carreira, enquanto procuro ajudá-lo na sua condução. Os progressos têm sido enormes. Sempre que ele entra no carro, parece mais confortável, mais seguro, mais rápido e em todos os aspetos mais parecido com um piloto de corridas”, reforçou.
O bom desempenho de ambos deverá, em teoria, garantir-lhes um lugar nas 24 Horas de Le Mans deste ano: “O prémio por vencer a categoria LMP3 é uma entrada em Le Mans e eu adoraria correr com o Team LNT na prova de 2016. Temos uma boa equipa e sinto me em casa, por isso gostaria de continuar esta parceria com a Ginetta e obter ainda melhores resultados no próximo ano”, explica Charlie, um sentimento partilhado por Chris Hoy: “Existem muitas coisas que têm de acontecer no momento certo, mas adoraria correr em Le Mans e penso que isso será possível em 2016. É o meu sonho. Sabes, não existem muitos desportos onde tu possas competir, no mesmo local, com os melhores atletas do mundo. Será como entrar na final do Mundial de Futebol a partir do banco de suplentes. Le Mans é a prova mais recomendável e desejável do mundo. E é um enorme desafio. E como vimos com pessoas como o Patrick Dempsey ou o Steve McQueen, indivíduos de quadrantes ou indústrias distintas, é possível lá chegar se tiveres paixão pelo desporto e quiseres realmente trabalhar no duro e ser comprometido.”
Esse desejo, no entanto, não lhe impede de ser realista: “Sei que não sou o campeão da European Le Mans Series porque sou o piloto mais rápido do plantel. Sou parte de uma equipa que colocou no terreno um pacote de carro/pilotos e teve alguma sorte. Sinto-me muito orgulhoso, mas tenho noção de que nunca serei o piloto mais rápido do mundo. O que não me impede, por motivos de conquista e realização pessoal, de gostar de me ver a melhorar. De ver os tempos por volta entre mim e o piloto profissional a estarem cada vez mais próximos. De fazer o meu trabalho e ser capaz de dominar o carro. É um sentimento totalmente diferente do ciclismo, mas não menos satisfatório quando vences uma corrida. É uma sensação incrível quando cruzas a linha de chegada ou estás no pitlane a apoiar o teu companheiro e vences a corrida. E há realmente a sensação de que é um esforço de equipa. De todos.”
Sobre o que gostaria de experimentar no futuro, Chris diz apenas que o seu objetivo passa por “aproveitar” ao máximo as oportunidade concedidas: “Eu simplesmente adoro corridas. Por isso não há nada que eu gostasse de fazer em particular, tirando obviamente o desejo de correr nas 24 Horas de Le Mans. Pode ser qualquer coisa, da resistência aos monolugares, em pista ou fora-de-estrada.” Palavra de Hoy, Chris Hoy.
André Bettencourt Rodrigues
“A experiência que Chris teve este ano em Le Mans, durante os testes para a corrida de 24 Horas, trouxe-lhe de volta as memórias de infância e a pista de Scalextric oferecida pelo pai: “Lembro-me de guiar pela primeira vez no circuito e de estar em êxtase ao longo das primeiras duas ou três voltas. Por vezes tenho que beliscar-me e lembrar-me da sorte que tenho por poder estar nesta posição.”
Apesar de Radical SR1, Nissan GT-R Nismo GT3 e Ginetta LMP3 terem uma forma de serem conduzidos, na sua essência “todos adotam a mesma filosofia”. Chris considera por isso que um piloto de topo deve ser capaz de saltar de carro em carro e ainda ser rápido. “As corridas de GT eram sobretudo sobre gerir da melhor forma os pneus, enquanto na LMP3 posso puxar mais, o que é bom. Mas não há ABS, nem controlo de tração, portanto as tuas indicações são bem mais importantes. É um estilo de condução diferente, mas os princípios são os mesmos.”
A dupla Chris Hoy/ Charlie Robertson celebra a terceira vitória do ano e o ambicionado título da LMP3 na penúltima corrida da temporada, as 4 Horas de Castellet
Chris Hoy confirmou ao AutoSport que nada está assinado ou definido para esta temporada, mas que adoraria continuar com a Ginetta: “À parte do sentimentalismo, o Team LNT é realmente uma grande equipa. A qualidade do carro e profissionalismo são evidentes.”