Entrevista a Simo Lampinen, vencedor do Rali TAP 1970: Voando sobre o limite
Sonhava seguir as pisadas do avô e do pai e tornar-se uma lenda do motociclismo escandinavo quando, aos 13 anos, a poliomielite o atirou para a cama do hospital hipotecando, para sempre, a ambição de triunfar nas duas rodas. Apesar do infortúnio, o jovem Simo não se conformou com o que a vida lhe reservara e, com a força e a perseverança que caracteriza os grandes atletas, construiu o seu próprio destino, encontrando nos automóveis o refúgio ideal para alimentar o desejo de andar depressa. A lenta recuperação física contrastou com a rápida ascensão nos ralis e, com apenas 20 anos, tornavase o mais jovem vencedor de sempre do Rali dos 1000 Lagos. O talento do finlandês não passaria despercebido ao atento Cesare Fiorio, que o convidou a integrar as fileiras da ‘Squadra’ Lancia numa altura em que a equipa transalpina começava a dar cartas nos ralis internacionais. E seria precisamente ao volante de um Fulvia HF que Simo Lampinen viria a vencer a 4ª edição do Rallye TAP, corria o ano de 1970. Meio século após o triunfo na prova portuguesa, convidámos este notável finlandês e distinto contador de histórias a abrir o baú das memórias e a recordar episódios de uma vida preenchida, como o próprio caracteriza, a correr o mundo e a cultivar a amizade…
A poucas semanas de completar 77 primaveras, e apesar da anormalidade que atingiu recentemente as nossas vidas, Simo e a sua esposa Milli vivem dias de tranquilidade na cosmopolita cidade de Hamburgo, para onde decidiram mudar-se há alguns anos. “É um ótima cidade para pensionistas”, justifica o finlandês. Quando o contactei para propor esta entrevista, do outro lado surgiu uma voz enérgica que entoou sem hesitar “terei todo o prazer. A vitória no Rallye TAP foi fantástica e muito importante, quer para mim, quer para o John Davenport”. John é o reconhecido jornalista e navegador com quem partilhou o Fulvia vencedor do TAP de 1970. Desde o primeiro telefonema, e com a ajuda das novas tecnologias, escrevemo-nos regularmente. Lampinen gosta de partilhar memórias e histórias que marcaram a sua vida e, amiúde, envia excertos das várias pastas onde Milli tem colecionado recortes que ilustram uma época inesquecível que não voltará a repetir-se…
O jovem Simo estava talhado para desbravar uma carreira no motociclismo. A herança do pai e do avô era bastante forte…
O meu pai e o meu avô foram grandes heróis finlandeses das corridas de motos. O meu pai foi por diversas vezes campeão da Escandinávia na classe de 500cc, correu em várias pistas como Assen ou mesmo na Ilha de Man e eu tinha o sonho de seguir as suas pisadas. Além disso, enquanto a família do meu pai tinha uma das mais antigas fábricas de esquis da Finlândia, a família da minha mãe tinha um negócio de importação de motos das marcas Triumph, Norton, Yamaha, entre outras. Por todas estas influências, passei a minha infância em Porvoo a imaginar uma carreira de sucesso nas motos.
Com 13 anos, contraiu poliomielite e foi submetido a um longo período de recuperação. De que forma é que a doença hipotecou os planos de um jovem sonhador?
Naquele ano, a Finlândia debatia-se com uma epidemia de poliomielite e eu fui uma das muitas vítimas. Durante 4 meses, estive ligado aos ventiladores na sequência de ter perfurado um pulmão. Na primeira noite, deixei de conseguir mexer os dedos das mãos e dos pés assim como os tornozelos e, durante um mês, apenas conseguia mexer os joelhos, os cotovelos e a anca. Estive sem andar durante 3 ou 4 meses, iniciando uma longa recuperação que contemplou cirurgias e programas intensos de fisioterapia. Consegui recuperar uma boa parte da mobilidade mas não a totalidade, o que me obrigou a dizer adeus ao sonho de fazer corridas de motos.
Durante uma recuperação como a que foi sujeito, é possível manter um pensamento positivo?
Durante todo aquele tempo, o meu sentimento foi de otimismo. Sempre falei da doença sem problema, apesar das dificuldades que enfrentei. A família teve aqui um papel fundamental. O meu pai levava-me para o pé da sua moto e ajudava-me a subir para ela porque sabia que as motos faziam parte da minha vida. O meu primo levara a sua moto para o meu quarto para que eu a estivesse sempre a ver e para que aquilo me desse forças para recuperar. Quando a porta do motociclismo se fechou, abriu-se uma janela para os automóveis…
Com 17 anos, um ano antes do permitido, obtive uma autorização especial para tirar a carta de condução e assim poder ir fazer os tratamentos a Helsínquia levando o Jaguar da minha mãe. Nessa altura, ainda usava ligaduras, pois havia sido operado às mãos há pouco tempo e calçava luvas por cima das ligaduras.
Desde logo, percebi que as luvas iriam ter um papel fundamental na minha vida. Ajudavam-me a segurar melhor o volante. Um dia, peguei no carro da minha mãe e fui ver o Rali dos 1000 Lagos. Fiquei deveras entusiasmando. Sabia que as motos não eram opção e comecei a considerar a perspetiva de experimentar os ralis acabando por alinhar no Rali dos 1000 Lagos de 1961, precisamente com o Jaguar da minha mãe.
Quão importante foi Rauno Aaltonen para começar a encarar seriamente a competição?
Rauno Aaltonen foi o responsável pelo nascimento da expressão “finlandeses voadores” ligada ao automobilismo. O seu desempenho no Tour de France de 63, com um Mini, permitiu-lhe levar de vencida a Classe, relegando os BMW e os Jaguar para segundo plano. Perante tal prestação, o jornalista britânico Gerry Philips escreveu no Motoring News que Aaltonen havia sido um finlandês voador, recorrendo à conhecida expressão usada para descrever os atletas finlandeses que se haviam destacado nos jogos olímpicos das primeiras décadas do século XX. O pai do Rauno era meu padrinho e sempre tivemos uma ligação muito forte. O Rauno continua a ser o meu herói até aos dias de hoje. Ele tinha um negócio de representação das marcas Morris Minor, Mercedes e Saab em Turku e aconselhou-me a conduzir um Saab porque tinha “roda-livre” e eu podia conduzi-lo sem usar a embraiagem, o que era uma grande ajuda face às limitações que tinha. E assim participei em 62 no Rali dos 1000 Lagos com o meu Saab, vencendo a prova nos dois anos seguintes.
A essas vitórias somou o título de campeão finlandês de ralis. Como explica uma ascensão tão rápida?
Puro talento (risos)! Na periferia de Porvoo havia muitas estradas florestais onde conduzia ainda sem ter carta de condução. Sempre senti que tinha o instinto e o talento natural para andar depressa. Lembro-me de, certo dia, ainda sem carta, ter colocado uns amigos no Jaguar e conduzido a 200 km/h. Uma vez, quando andava naquelas estradas, alguém fez queixa à Polícia e esta veio ao meu encontro. Parei, deixei os polícias saírem do carro e arranquei a toda a velocidade em direção à fábrica da família. O polícia foi ter com o meu pai dizendo-lhe que o seu filho andava a conduzir sem carta e uma velocidade tal que eles não conseguiam apanhá-lo, ao que o meu pai respondeu: “então têm que arranjar carros mais rápidos” (risos)…
O que tornava o Saab 96 um carro quase imbatível nas estradas nórdicas?
Comparativamente ao Mini, que era o seu grande rival, o Saab tinha uma maior distância entre eixos e as rodas tinham um diâmetro superior. Se, em estradas cobertas de neve, isso podia ser prejudicial, quando não havia neve e os troços eram duros, aquela combinação era muito eficaz. Só tínhamos que colocar a frente do carro no sítio certo e a traseira acompanhava plenamente a descrição das curvas. O curso da suspensão tinha o dobro do que equipava o Mini, tornando-o mais estável. Era simplesmente fantástico conduzir o Saab. Quando chegou o 96 V4, o motor era mais pesado e isso refletia-se numa frente mais pesada também mas continuava a ser um carro ganhador que permitiu a mim, ao Stig Blomqvist ou ao Per Eklund vencermos muitos eventos na Escandinávia, na Escócia, etc.. Quando chegávamos às provas mais ao estilo das que se disputavam no sul da Europa, as tradicionais provas de montanha, com piso mais rápido mas com mais ganchos, perdíamos vantagem para os carros com suspensões mais baixas.
Em 1965, participou nas 24 horas de Le Mans integrado na equipa Triumph. Fale-nos dessa experiência de correr numa prova mítica como Le Mans…
Foi uma experiencia fantástica. Na altura, tinha um contrato com a Triumph e havia competido em provas como o Monte Carlo, o Rali das Túlipas, entre outras, e a equipa achou que eu devia alinhar em Le Mans precisamente com o Spitfire, fazendo equipa com Jean-Jacques Thuner. Ao todo, a Triumph alinhou com 4 carros e 8 pilotos e eu era o mais rápido em pista, quer nos treinos, quer na prova, de dia ou de noite. Isso foi bastante estimulante para mim.
Lembro-me da sensação de cumprir as primeiras voltas à pista e de fazer a reta Mulsanne, ainda sem chicanes, onde chegávamos aos 200km/h, e de ver passar por mim os protótipos de Chris Amon, Master Gregory, entre outros, a 250, 270 km/h. Aquilo era um bocado assustador e exigia muita atenção na abordagem à curva Mulsanne mas conseguimos chegar ao fim na 13ª posição e vencemos a classe.
Apesar de já ter provado o seu valor, a vitória no RAC de 68 foi determinante para outros voos?
A vitória no RAC, com o Saab 96 V4 e navegado pelo meu amigo John Davenport foi o momento mais importante da minha carreira na medida em que deu a conhecer o meu nome a toda a gente do desporto automóvel. Essa visibilidade abriu, claro, muitas portas e valeu um telefonema de Cesare Fiorio a propor-me um contrato de 2 anos com a Lancia. Respondi-lhe, obviamente, que ficara muito lisonjeado com o convite.
Não podia recusar! No final desse ano, poucos dias depois do RAC, participei ainda no Rali Londres-Sidney com o Gilbert Staepelaere num Taunus da Ford Alemanha. Liderávamos a prova quando, pouco antes de chegar à Austrália, tivemos uma saída de estrada, batemos no muro de uma quinta e danificámos uma peça do braço da direção que, hoje em dia, não custaria mais de 10€. Os mecânicos ainda conseguiram reparar o carro depois de passarem umas horas de volta do Ford e acabámos por terminar em 16º lugar. Foi uma experiência incrível, passámos por sítios magníficos, como Cabul, Bombaim e depois, Perth e Sidney já em território australiano…
Como foi a adaptação à cultura latina da equipa Lancia?
Foi rápida, embora os resultados tardassem a aparecer. Desisti no Monte Carlo e no Safari mas, a partir de certa altura, começaram a melhorar até conseguir a primeira vitória, precisamente no TAP de 1970. Acabei por ficar no grupo Fiat até 1977 e tive a felicidade de ajudar a equipa a sagrar-se por quatro vezes
campeã do mundo de ralis.
Do ponto de vista da pilotagem, como compara o Lancia Fulvia com o Saab 96?
Atendendo às minhas limitações físicas, a principal diferença, e que para mim constituía uma dificuldade, era o facto de o Fulvia não ter “roda-livre”, ou seja, tive que passar a usar a embraiagem para engrenar as mudanças. Para me ajudar, a Lancia fez uma série de adaptações ao carro: o pedal do travão era maior e o da embraiagem foi chegado mais para a esquerda de modo a conseguir usar a embraiagem e travar com o pé esquerdo. Além disso, o meu banco era elevado 2 ou 3 centímetros à frente para permitir levantar melhor os pés. Com estas modificações, consegui adaptar-me progressivamente ao Fulvia. Em troços duros e de piso irregular, o Saab era incrível mas, em ralis como o Monte Carlo, o Sanremo ou a Acrópole, o Lancia era mais eficaz.
Dava-se muito bem em troços com curvas fechadas e ganchos e o segredo era aprender a colocá-lo corretamente para abordar as curvas. Para facilitar o deslizar em curva, montávamos uns pneus um pouco mais estreitos atrás. A isto, juntava-se a astúcia de Cesare Fiorio que, com pequenos detalhes e truques, fazia a diferença…
Há muitas histórias acerca de Cesare Fiorio. Fale-nos um pouco da personalidade do líder italiano…
O Cesare é uma pessoa fantástica, um verdadeiro homem do desporto motorizado. Havia sido piloto e, por isso, conhecia e pensava a competição. Estava permanentemente focado nos resultados e na forma de os atingir. Tinha o mérito de escolher as melhores pessoas para a sua equipa e era um homem da casa tal como o seu pai também havia sido, conhecia as pessoas, a fábrica, os engenheiros da Lancia e falava a linguagem deles. Depois, nas provas, era de uma enorme inteligência e procurava sempre novas soluções para ganhar vantagem. Às vezes, eram pequenas coisas que faziam a diferença. Uma vez, no Safari, na época do Stratos, tínhamos um longo caminho de Nairobi até Mombaça. Os carros estavam equipados com rodas de 13 polegadas e, então, ele fez as contas e concluiu que, se colocássemos rodas de 15 polegadas à frente, essa operação demoraria um minuto e meio mas permitia que o carro fosse mais rápido em cerca de 25km/h, o que se traduziria num ganho superior a três minutos no percurso. O Cesare era assim e aceitava sem problema as ideias dos outros. Estava constantemente a questionar e a ver possibilidades para melhorar o desempenho da sua equipa.
Que memórias guarda da vitória no Rali TAP de 1970?
Mais do que da competição em si, lembro-me do entusiasmo que o rali gerava nas pessoas. Uma das provas de classificação era disputada na pista de ciclismo de um estádio em Lisboa (ndr: Estádio de Alvalade) e, para chegarmos ou sairmos do estádio, era uma loucura, tal era o trânsito. Cheguei a pensar que não conseguia controlar a tempo. Depois, quando entrámos no estádio e vimos aquela gente toda sentada, pendurada nas bancadas, percebemos o trânsito lá fora. Era muita gente! Á saída do estádio, e durante todo o rali, estávamos constantemente a acenar às pessoas. Lembro-me de pensar que os portugueses gostavam realmente de carros de rali. E essa acabaria por se tornar uma imagem de marca do Rali de Portugal. Naquele ano, em Arganil, houve um grande incêndio florestal e o rali foi discutido entre mim e o meu companheiro de equipa, o Sandro Munari.
Mas eu sempre gostei de etapas longas e desgastantes e decidi atacar em praticamente todo o percurso, chegando ao Estoril no primeiro lugar. O John Davenport era muito profissional e fez sempre um excelente trabalho no que respeita às horas dos controlos e das assistências, o que me permitiu concentrar na condução. Curiosamente, o Fulvia que venceu o TAP está em perfeito estado de conservação. Pertenceu a Amilcare Belestrieri, depois à equipa Grifone e foi, mais tarde, comprado pelo meu amigo Carlo Stella que mantém o chassis, a transmissão, entre outros componentes, de origem. Quando há encontros de clássicos de ralis em Itália, o Carlo convida-me e eu não perco a oportunidade de matar saudades do Fulvia e de rever velhos amigos…
Que Portugal encontrou em 1970?
Sempre achei que Portugal, apesar de fazer fronteira com Espanha, se distinguia do país vizinho. Penso que tem mais semelhanças com a Finlândia e, talvez por isso, sempre gostei de Portugal. O país evoluiu muito e, no início, era uma aventura ir a Portugal. Visitei-o muitas vezes, como piloto, com amigos e, mais tarde, como observador da FIA, tendo estado bastante envolvido na mudança do rali para o Algarve e no regresso ao WRC. Os portugueses são positivos e, enquanto espectadores, são do mais apaixonado que existe. Só encontrávamos um ambiente semelhante em Sanremo. Ambientes como aqueles que ainda hoje se vivem em Fafe, por exemplo, são únicos e uma experiencia completamente diferente daquelas que conhecemos noutros locais.
Conheceu nessa altura o César Torres e os vossos caminhos viriam a cruzar-se muitas vezes. Na sua opinião, porque se tornou César uma pessoa tão influente no desporto automóvel mundial?
César era uma das pessoas mais influentes da FIA. Era um dos “Bernie Ecclestones” do jogo de forças dentro da federação. Mas esse poder não lhe caiu do céu. Ele construiu esse poder porque tinha uma abordagem fantástica ao desporto motorizado, conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia. E ele dirigia-se às pessoas com uma postura sempre positiva. Era um homem forte e determinado.
Como era o ambiente vivido na equipa Lancia nos anos 70?
De uma forma geral, era bom. Eu sempre fui uma pessoa otimista e adaptei-me bem. É claro que a equipa não era indiferente ao facto de Amilcare Balestrieri e Sandro Munari serem italianos. Eles próprios disputavam o lugar de melhor piloto da casa. Ballestrieri tinha o respeito e a admiração de todos mas o Munari era um rei para os italianos. Em 1974, a Lancia revoluciona o mundo dos ralis com o Stratos e, enquanto Munari passeava a sua classe na nova máquina, o Simo conduzia o Lancia Beta Coupé.
Porquê?
A razão prendia-se com o problema das minhas pernas. No Stratos, nós íamos praticamente sentados no chão e isso tornava-se difícil para mim. Por isso, acordámos que eu guiaria o Beta Coupé, que também não andava mal. Em 1974, a Lancia participou no Rali do Canadá, o Munari com o Stratos e eu com o Beta Coupé. Na última etapa, nós liderávamos o rali quando, às cinco da manhã, debaixo de um frio gélido, somos mandados parar pelo Daniele Audetto que me arrasta para uma cabine telefónica onde, do outro lado da linha, estava Cesare Fiorio. Propuseram-me então um negócio: para Fiorio, o Stratos tinha que ganhar e, para isso, eu deveria parar no último controlo e penalizaria por atraso, dando a vitória a Munari. Como compensação ganhava mais dois anos de contrato com a Lancia. Aceitei, embora me tivesse custado, sobretudo porque nunca havia ganho um rali do campeonato do mundo. Todas as provas que havia ganho, 1000 lagos, Marrocos, TAP haviam acontecido antes do nascimento do Mundial. Mais tarde, percebi que tinha desperdiçado a oportunidade de conduzir o Stratos. Um dia, Mike Parkes convenceu-me a dar uma volta com ele, a bordo de um Stratos, por ocasião de um Rali Sanremo. Fiquei imediatamente maravilhado com o carro e com a facilidade com que o conduzia, apesar dos meus problemas físicos.
Pensei para comigo quão estúpido havia sido por não ter optado por conduzir o Stratos em todas as provas. Ainda cheguei a alinhar com o carro em alguns ralis como o da Suécia ou o Safari. Na Suécia, em 76, o Waldegård e o Valdfridsson conduziram carros de fábrica e eu corri com um carro de testes. O Cesare Fiorio assegurou-me que o carro seria bem preparado e a única coisa que eu teria que arranjar era pneus. Os carros oficiais calçavam os Pirelli de cerca de 450 pregos e eu levei uns pneus feitos com borrachas Nokia, moldados pela Kumi-Helenius,com metade da largura e cerca de 200 pregos Kometa. No final da primeira noite, eu estava a ser 2 segundos por quilómetro mais rápido do que eles mas, infelizmente, saímos de estrada num local onde não havia ninguém para nos ajudar. Perdemos 7 minutos para voltar à estrada mas ainda recuperámos algum tempo, conseguindo terminar no quarto lugar. Apesar de o ter conduzido tão pouco, se tivesse que escolher um carro para conduzir em troços rápidos, escolheria o Stratos sem hesitar, embora, para pisos mais duros, o meu carro de eleição seja o Saab 96.
No final de 1977 chegou ao fim a ligação ao grupo FIAT e muda-se para a Triumph, então liderada pelo seu antigo navegador John Davenport. Como era conduzir o motor V8 do TR7 num troço de ralis?
O TR7 era um carro muito particular devido à maneira como estava construído. A suspensão era boa mas eu e o Fred Gallagher, o meu copiloto na altura, íamos sentados quase em cima do eixo traseiro e isso dificultava imenso nas curvas, sobretudo em terra porque fazíamos as curvas praticamente sentados em cima da valeta! Em asfalto, essa caraterística não era muito problemática e o Tony Pond conseguiu bons resultados com o carro.
Em 1979, abandona a competição com 36 anos de idade. O que pesou na decisão?
Depois do meu pai e do meu avô, eu era a terceira geração após a criação da fábrica de esquis e senti que tinha a obrigação de me dedicar ao negócio da família. Além disso, tinha 3 filhos e precisava de estar mais tempo com eles, de os ver crescer. Já tinha vivido o suficiente em termos de competição e era altura de dizer adeus. Na altura, a Triumph queria que eu continuasse e até tinha propostas de outras equipas. No final do RAC de 79, a última prova que disputei, quando me dirigia para o Aeroporto de Heathrow, o Ove Andersson ligou-me a oferecer um lugar na Toyota mas acabei por recusar…
Contudo, não conseguiu estar muito tempo longe da emoção dos ralis…
É verdade. Dois anos depois de abandonar, a federação finlandesa convidou-me para liderar uma equipa júnior de ralis, com o objetivo de descobrir os talentos da futura geração. Daquela fornada, saiu Juha Kankkunen que, após se destacar na Finlândia, conseguimos que ele fizesse o Rali RAC de 83 com um Toyota Celica, obtendo um sétimo lugar. Nascia uma nova estrela. Na altura, o jovem Juha ainda não dominava o inglês e, no final dessa prova, acabei por ser eu a responder aos jornalistas. Quando me perguntavam como explicava o bom desempenho de Kankkunen, eu respondi: se quiserem ganhar, têm que ter um finlandês (if you want to win, you must have a finn!”) Era a época em que os finlandeses davam cartas nos ralis…
Mais recentemente, os finlandeses têm estado arredados desse domínio. Acredita que Kalle Rovanperä pode vir a interromper esse hiato?
Tenho a certeza! Kalle é um campeão. Sabes, ainda hoje sou o mais jovem piloto a ter ganho o Rali da Finlândia. Tinha então 20 anos. Se, este ano, o rali se realizar e o Kalle ganhar, passará a ser ele o detentor desse recorde e eu já lhe disse, a ele e ao pai, que me daria um enorme prazer entregar-lhe esse título. É uma família pela qual tenho uma enorme estima. Acompanhei o pai dele, o Harri, desde o início e agora acompanho com interesse o percurso do Kalle.
Competiu naquele que é considerado o período romântico dos ralis. Como era o ambiente vivido nas décadas de 60 e 70?
Existe uma grande diferença entre o ambiente vivido naquela época e o dos dias de hoje. Atualmente, os ralis, como outras modalidades, são um grande
negócio e tudo gira à volta do negócio. Naquele tempo, essa componente também existia mas não havia as regras ou as restrições que vemos hoje.
Dou-te um exemplo: nos anos 60 e 70, os pilotos escandinavos competiam em equipas diferentes mas isso não os impedia de se juntarem no final do dia e de jantarem juntos. Obviamente, os pilotos cumpriam as suas obrigações contratuais, iam aos eventos das marcas que representavam mas havia tempo para nos encontrarmos e, durante as assistências, mesmo competindo em equipas diferentes, era comum ir ter com o Timo Mäkinen ou com o Rauno Aaltonen, que conduziam para outras equipas, e partilhávamos questões relacionadas com as afinações e dicas para melhorar o nosso desempenho. Isso era frequente, pelo menos entre os escandinavos. Hoje isso é impensável. Todo o dia dos pilotos está hoje direcionado para o negócio. Têm eventos com os media, eventos com os patrocinadores das equipas e eventos com os seus próprios patrocinadores, o que torna a sua vida bastante tensa. No nosso tempo, conseguíamos equilibrar a parte tensa da competição com um lado mais divertido e descontraído. Lembro-me que, quando saíamos ao fim do dia para jantar, os pilotos e mecânicos latinos iam de fato e gravata e os britânicos e escandinavos levavam jeans e t-shirt, o que gerava uma grande brincadeira entre todos…
A experiência acumulada enquanto diretor de prova foi determinante para abraçar o cargo de observador da FIA para a segurança dos ralis. Que desafios encontrou nessa missão?
No início dos anos 90, aceitei o cargo de diretor do então denominado Rali dos 1000 Lagos, hoje Rali da Finlândia. Mais tarde, fui também diretor dos Ralis da Sardenha e da Turquia, colaborando de perto na direção de outras provas como o Rali de Omã. Penso que esse capital de conhecimento legitimou o convite da FIA para ser o observador para a segurança dos ralis do WRC. O maior desafio que tive pela frente foi o de incutir uma mudança de mentalidade na forma como o espectador deve ser encarado e tratado num rali e como o podemos ajudar a escolher os melhores sítios para ver a prova. Quando iniciei as funções, os espectadores escandinavos acatavam as instruções do organizador mas, quando me reunia com os organizadores do sul da Europa, deparava-me com uma cultura diferente pois o organizador achava que a responsabilidade de escolher o local e de salvaguardar a segurança era do próprio espectador. Foi um enorme desafio incutir nos organizadores a ideia de que estes deviam chamar a si a responsabilidade pela colocação dos espectadores, porque não podia ser o público a tomar essa decisão, sobretudo porque, tradicionalmente, nesses países, o espectador quer estar perto da ação, tocar nos carros, etc.. Foi uma mudança difícil e gradual. Lembro-me de discutir este assunto com o ACM e o organizador do Rali Monte Carlo dizia-me: “ok, Simo, nós garantimos que a estrada está limpa quando o troço começa mas não garantimos que o público esteja colocado em segurança e, se um carro sair de estrada e bater num espectador, a responsabilidade é deste porque está mal colocado”.
Repara que isto, para o organizador, já era uma cedência e uma evolução face ao que se vivera até aí mas, ainda assim, longe do que assistimos hoje, com normas uniformizadas em todo o campeonato do mundo. O meu papel era mudar essas mentalidades e reuni muitas vezes com os organizadores, criei cursos para os marshall sobre a colocação de espectadores, das fitas delimitadoras, etc.. Na altura da mudança do Rali de Portugal para o Algarve estive bastante envolvido no que às questões da segurança dizia respeito.
Como vê a evolução que os ralis sofreram nas últimas décadas?
Percebo que a evolução tem que acontecer em tudo o que nos rodeia e os ralis não são diferentes. Mas há um aspeto que me deixa na dúvida se o caminho traçado tem sido o mais correto: antigamente tínhamos o Porsche 911, com tração e motor traseiro, tínhamos o Saab 96 com motor e tração dianteira, o Escort com motor dianteiro e tração traseira e muitos outros. Os carros eram diferentes e todos se distinguiam. Os ralis eram também uma competição entre conceitos mecânicos. Hoje, isso não acontece e penso que um dos maiores erros da FIA é promover a uniformização dos carros. Atualmente tens 3 equipas e se colocasses o patrocínio da Red Bull em todas elas, 80% das pessoas, quer na TV, quer ao vivo, à beira dos troços, não conseguiria identificar o carro que tinha à sua frente. Os regulamentos são muito rígidos e isso, na minha opinião, é preocupante porque me questiono quão apetecível será para as grandes marcas apostarem naquela plataforma para comunicar os seus produtos se todos eles são tão idênticos…
Competiu com algumas das maiores estrelas que mundo dos ralis conheceu. Quem foi para si o melhor piloto que enfrentou?
Dentro do leque de pilotos escandinavos, diria Stig Blomqvist e Per Uklund, mas é difícil porque havia um conjunto de pilotos muito bom, incluindo figuras como Markku Alén ou Hannu Mikkola, por exemplo. Fora da Escandinávia, a minha escolha iria para Walter Röhrl, um piloto muito forte.
Como passa os seus dias atualmente?
Em 2007, mudei-me para Hamburgo com a Milli, a minha companheira de sempre. Depois de sairmos de Jyväskylä não queríamos voltar para Porvoo e o meu filho Tuomas desafiou-nos para vir morar para Hamburgo. É um bom sítio para pensionistas. E mantenho contacto com o desporto automóvel. Todos os anos vou ao Rali da Finlândia e sou também convidado para eventos de clássicos em Itália, França ou Alemanha. É uma excelente forma de recordar o passado e de rever os muitos amigos que fiz neste desporto.
Que lições de vida retirou desses longos anos que dedicou aos ralis?
Durante todos estes anos, trabalhei com muita gente. Pessoas de diferentes partes do mundo e de culturas muito diversas. Corri o mundo graças
ao desporto automóvel. Só não estive no Alasca. De resto, conheci todos os continentes. Convivi com pilotos, navegadores, chefes de equipa, mecânicos,
engenheiros, organizadores. Cada pessoa tem as suas ideias e a sua forma de ver as coisas. Isso permitiu-me ter uma mente aberta e essa é talvez a
maior lição que obtive nestes anos que me proporcionaram um enorme prazer, tantas foram as alegrias que vivi…