Armindo Araújo: o último a vencer o Rali de Portugal com um 2WD
Foi com um carro de tração dianteira que Armindo Araújo iniciou a sua história de sucesso no Rali de Portugal. Três vitórias à geral em 2003, 2004 e 2006 cimentaram o seu estatuto para sempre. Recorde-as connosco, na primeira pessoa.
Nos primeiros 15 anos da sua história o Rali de Portugal foi ganho por pilotos aos comandos de carros de duas rodas motrizes. Desde o Renault 8 Gordini de Carpinteiro Albino em 1967 a o Fiat 131 Abarth de Markku Alen em 1981, foi sempre um 2WD a vencer. Só que desde aí, de 1982 para cá, que o 4X4 reinaram com três honrosas exceções.
Joaquim Moutinho e Edgar Fortes (Renault 5 Turbo) em 1986. 17 anos depois, Armindo Araújo, Miguel Ramalho e o Citroën Saxo Kit Car fizeram história ao interromperem o domínio dos 4X4. É isso que vamos recordar…
Poder-se-ia dizer que as circunstâncias ajudaram. Que o piso enlameado que resultou das condições adversas da prova maior dos ralis portugueses, em 2003, ‘baralhou’ as contas. Ou que o Citroën Saxo Kit-Car era mais leve do que os seus rivais do Grupo N.
Mas, em primeiro lugar, Armindo Araújo teve que ‘estar lá’ para beneficiar delas. Segundo, não há como escamotear o seu superior andamento, muito menos o feito extraordinário de triunfar à geral com um carro de duas rodas motrizes e 1.6 litros de cilindrada.
Inicialmente delineado para o Algarve (viria a confirmar-se dois anos depois), a edição em causa do Rali de Portugal disputou-se nas estradas de Trás-os-Montes, com passagem por Bragança e Macedo de Cavaleiros. Foi o segundo ano em que a prova deixou de contar para o Campeonato do Mundo de Ralis e tinha como grandes favoritos os pilotos com carros da Produção, nomeadamente Pedro Leal e Gustavo Louro. Mas ao cronómetro tudo foi diferente: Armindo Araújo, que à partida tinha como objetivo delineado vencer a F3, entra a ganhar, sendo o mais rápido na primeira prova especial de classificação, ‘Morais’, e colocando imediatamente 10,5s entre si e Pedro leal. A partir daí foi um ‘vê se te avias’, com a estocada decisiva a dar-se ainda no primeiro dia, já que na PEC3, ‘Senhora das Neves’, acrescenta mais 19,5s à diferença que o separa do seu principal adversário. Termina a primeira etapa com 33,3s de vantagem, deixando todos boquiabertos, e no dia seguinte retoma as hostilidades, com três triunfos consecutivos nas classificativas de ‘Senhora do Campo 1’, ‘Bragança 1 e ‘Celas 1’. Perde 3,4s na segunda passagem por ‘Senhora do Campo’ e ganha 0,7s na especial seguinte. Depois deixa cair 13,6s no último troço, ‘Celas 2’, mas a vantagem amealhada no primeiro dia tornava impossível qualquer dissabor.
SEMPRE A APRENDER
O segredo para este histórico triunfo – daqueles que definem uma carreira – esteve também na escolha de pneus e na leveza do carro, com Armindo a revelar ao AutoSport um pequeno segredo (já lá vamos) que contribuiu para o desfecho positivo. Só que a condução do piloto não pode ser ignorada, sendo mesmo o seu maior arquiteto, como se pode ler nas palavras de um co-piloto muito satisfeito na figura de Miguel Ramalho: “O Armindo esteve absolutamente fantástico nesta prova. Não só foi a melhor ao lado dele… mas a melhor de toda a minha carreira. Excedeu tudo o que eu poderia esperar dele”, referiu na época ao AutoSport. Já Pedro Leal mostrava-se surpreso com o andamento do eventual vencedor da prova: “Se me perguntassem no início do rali se com estas condições meteorológicas era ‘para nós’, teria dito que sim, claramente. Agora? Já não sei nada, estou sempre a aprender.”
Em 2003, Armindo Araújo elogiou o trabalho da equipa técnica da Citroën. Treze anos depois fez o mesmo aos microfones do AutoSport, contando também as suas recordações do Rali de Portugal que o tornou famoso: “Nos reconhecimentos a prova estava bastante enlameada. Havia grandes inclinações no terreno e este estava bastante escorregadio, mas eu expliquei à minha equipa técnica da Citroën que o meu ‘feeling’ tinha sido muito bom, e que nós perderíamos a subir, mas que também poderíamos ter uma vantagem nas descidas mais íngremes, uma vez que o nosso carro era muito leve. Achava, portanto, que um bom compromisso poderia dar-nos algo mais do que aquilo que era expectável.” A solução? Correr em terra com o ‘kit’ de asfalto, relembra: “A Citroën basicamente deu-me a chave do sucesso com uma preparação fantástica para esse rali, optando, e bem, por transformar em apenas uma semana o carro de terra no carro de asfalto, que era uma viatura mais leve, menos reforçada e que poderia trabalhar um pouco melhor em termos de carroçaria, e dar-me até um pouco mais de tração.
Foram basicamente umas afinações-limite, se assim se pode dizer. Fizeram um excelente trabalho, e penso que eu também tive um desempenho interessante, porque realmente não cometi erros, fui forte desde o início e consegui passar para a frente dos teoricamente mais fortes Grupo N. Fomos construindo um resultado que nos permitiu vencer contra toda a ideia que seria impossível para nós andar à frente. Motivou-me muito para o futuro, e foi muito bom para a equipa, e para o campeonato.”
GRANDE SURPRESA
Sobre as sensações de vencer pela primeira vez à geral a prova rainha dos ralis portugueses, Armindo confessa que “é sempre uma honra” muito grande: “Mesmo não estando a contar para o Mundial, é sempre o Rali de Portugal e a prova mais importante do nosso campeonato. Era uma prova que eu obviamente queria vencer. Sabia que era quase impossível, mas nunca baixei os braços. Ataquei forte, e tudo funcionou em cima da estratégia que referi. Acho que nós fomos a sensação da prova, e a surpresa da prova, ao construirmos e fazermos um resultado que ninguém estava à espera, basicamente.”
Se o resultado obtido em 2003 causou espanto, o mesmo não pode ser dito da edição do ano seguinte. A concorrência, pelo menos, estava avisada das capacidades da dupla campeã nacional em título, e das suas capacidades no Rali de Portugal. Pedro Leal/Luís Ramalho voltaram a ser a maior ameaça aos vencedores em 2004, terminando novamente a prova no segundo posto, enquanto Pedro Dias da Silva/Mário Castro foi substituído por Fernando Peres/José Pedro Silva no lugar mais baixo do pódio. Terá sido, por isso, a confirmação do que o piloto de Santo Tirso já tinha feito um ano antes, ou uma prova totalmente distinta? De acordo com o próprio, a repetição do triunfo foi o resultado do “cada vez mais forte” binómio Armindo/Citroën: “Nós estávamos muito bem entrosados. Conseguíamos fazer e desenvolver o carro muito bem e rapidamente, e é muito importante que as tomadas de decisão sejam rápidas. Começámos a ser uma equipa que se adaptava às condições das corridas e do terreno muito rapidamente e eficazmente. E isso tornou-nos muito fortes no campeonato, e deu-nos muitas vitórias. Portanto, o segundo ano é um pouco a continuação do bom trabalho que já vinha do ano anterior.”
O piloto português admite que já não se recorda se utilizaram a mesma estratégia do ‘kit’ de asfalto em 2004, mas que é “natural” que o tenham feito: “Não posso precisar a 100 por cento, mas no fundo foi uma estratégia muito idêntica, até porque já levávamos a informação do ano anterior. Foi atacar do início a fim. A descer era completamente a fundo para nos compensar todas as partes a subir. Foram ralis difíceis, em que tínhamos de andar constantemente a correr riscos, e riscos grandes para compensarmos e ganharmos muito tempo antes de enfrentarmos as zonas enlameadas e sempre a subir, onde claramente íamos sempre a perder tempo.”
NOVO TRIUNFO… DE GRUPO N!
Depois de dois anos a vencer com um carro de duas rodas motrizes, Armindo Araújo dá em 2005 o ‘salto’ para a Mitsubishi, passando a correr de… Grupo N. Uma mudança que, a juntar à estreia do Rali de Portugal no Algarve, com um figurino totalmente distinto, e a outro tipo de objetivos, contribuiu desta feita para que se saldasse pelo terceiro lugar do pódio, atrás de Daniel Carlsson e Mikko Hirvonen – ambos em máquinas semelhantes. Nesse ano, a tática, garante, foi outra: “Bom, aí a estratégia, as nossas aspirações para a prova e a minha postura para a corrida foram completamente diferentes. Era o meu primeiro ano de Mitsubishi, e um Grupo N nunca tinha vencido o campeonato. E a proposta feita pela Mitsubishi quando me contratou era muito clara: eu tinha que ser campeão nacional e ao ser campeão nacional poderiam abrir-se as portas para uma internacionalização. Logo foi em função destas duas premissas que o campeonato foi trabalhado desde o início. Quando chegámos ao Rali de Portugal eu tive uma reunião com o presidente da Mitsubishi, o Dr. Paulo Cabrita, onde lhe disse que queria muito poder lutar pela vitória, mas que naquele primeiro ano era mais inteligente da minha parte olhar para o campeonato, para tentar fazer tudo para segurar pontos que me permitissem ser campeão no final do ano, em vez de uma luta cerrada que me pudesse colocar fora de prova. Ele concordou comigo. Deu-me toda a força e disse que realmente era a melhor estratégia, e nós fomos para o Rali de Portugal a pensar apenas e só em amealhar pontos e em não comprometer o campeonato, e isso traduziu-se num ter Para mim foi suficiente. Foi bom, não cometi erros, e traduziu-se no meu título no final do ano – uma estratégia completamente dentro daquilo que era o esperado”, recorda. Armindo referiu depois as características “completamente distintas” do rali no Algarve: “Era um rali rápido, duro. O ritmo da corrida era bastante diferente do campeonato nacional, sendo uma prova que se assemelhava mais a um evento do campeonato do mundo. A sua velocidade nos troços era mais elevada, e portanto eu fui muito calculista para essa prova, pensava só no campeonato.”
Toda esta estratégia foi “exatamente o oposto” no ano seguinte, lembra: “Em 2006, depois de ter sido campeão nacional e de já estarmos a estudar uma internacionalização, eu tenho novamente uma reunião com o presidente da Mitsubishi onde lhe digo claramente que nós já tínhamos demonstrado que podíamos ganhar o campeonato num Mitsubishi e num Grupo N, que éramos os campeões em título e que, portanto, eu queria correr alguns riscos e lutar pelo resultado da prova do Rali de Portugal. Queria ter espaço para, caso alguma coisa corresse mal e comprometesse o campeonato, a minha equipa continuar comigo. Ele aí, mais uma vez, concordou comigo a 100 por cento e disse que eu tinha luz verde, ‘carta-branca’ para atacar e para lutar pelo resultado, e fui para o Algarve com tudo. Felizmente correu bem. Conseguimos vencer o rali à geral com pilotos estrangeiros presentes, com muitos bons pilotos, o que basicamente serviu um bocadinho de cartão-de-visita para eu me poder internacionalizar no ano seguinte.”
Em 2007, no regresso ao Mundial, o piloto português participou com um Lancer WRC, “um presente que a Mitsubishi” lhe ofereceu para se estrear com um carro de última geração na maior das provas nacionais, mas em que a diferença para os demais era notória. “Não era um carro ganhador, mas era uma viatura muito interessante. Infelizmente a um quilómetro do final do último troço desistimos. Foi um erro meu. Alarguei um bocadinho numa trajetória e bati num tronco cortado de uma árvore. Foi uma desistência algo inglória, mas aprendi muito aí. Foi uma experiência muito importante, muito boa para mim e para os meus patrocinadores, mas aí já era basicamente impossível aspirar a mais com aquele carro e com a minha pouca experiência de WRC. O resultado final não ia ser interessante ou desinteressante, seria um resultado dentro do que era possível. Penso que era um 10º lugar à geral, o que já seria bom.”
INESQUECÍVEL
Após as três vitórias à geral, o outro grande momento chegaria em 2009 ao festejar em ‘casa’ o primeiro triunfo no PWRC – Campeonato do Mundo de Produção de Ralis. Mas Armindo contabiliza muitos outros: “Sabes que cada momento tem a sua história. Eu felizmente já ganhei o Rali de Portugal com um duas rodas motrizes contra tudo o que era expetável, portanto foi um momento fantástico na altura. Depois consegui ter uma vitória na produção, a minha primeira vitória na produção, no meu Rali de Portugal, frente ao meu público, o que também foi um momento maravilhoso e inesquecível, sem dúvida. Foi a cereja no topo do bolo, e fui considerado o piloto do rali por toda a comunidade do WRC, que me ofereceu o prémio Abu Dhabi. Mas eu também não posso deixar de dizer que tive a honra de estrear a Mini, uma marca mítica, no nosso Rali de Portugal, e que, apesar do final que teve, na altura foi realmente uma honra muito grande ser eu, e um piloto português, a estrear um carro no campeonato do mundo de um construtor deste nível. Tudo tem o seu momento, a sua história, e eu felizmente já tive muitos momentos e boas histórias no nosso Rali de Portugal.”
Experiente como poucos a nível interno, e aquele com melhor palmarés e que mais conhece as provas que atualmente fazem parte do Campeonato do Mundo de Ralis, Armindo Araújo assegura que, a exemplo do que dizem todos os adeptos nascidos neste canto da Península Ibérica, o Rali de Portugal é mesmo “o melhor rali do mundo”, e com distância para os demais: “Eu sou português, e portanto as pessoas podem entender-me mal. Mas eu fiz todas as provas do campeonato do mundo de ralis do panorama atual e não tenho dúvidas em afirmar que nós somos o melhor rali do mundo, mas sem sombra para dúvidas e com uma grande margem do primeiro para o segundo lugar. Penso que temos tudo que é bom dentro de um campeonato do mundo e numa organização de uma prova do Mundial, e só perderemos a prova, ou alguém nos colocará fora, por algum motivo fora o desportivo”, alerta.
“Não tenho qualquer tipo de dúvida disso e falo por experiência na primeira pessoa”, reafirma, salientando o “público fantástico, que adora e entende o conceito de ralis”, a organização e a atitude das forças de segurança como fatores diferenciadores: “Ao contrário de Portugal, existem provas do Mundial que não entendem o conceito de ralis. Temos público que não gosta da modalidade e não nos quer na zona onde o rali está a decorrer.
Tratam mal os pilotos e querem afastar-nos de lá. Depois, em Portugal temos uma Polícia que nos apoia e fiscaliza no bom sentido, para nós cumprirmos as regras, para o público estar numa boa posição em relação aos carros e também para que os pilotos possam estar defendidos relativamente ao tráfego e ao público, enquanto noutros países a Polícia pura e simplesmente considera-nos uns criminosos.
Anda atrás de nós a controlar a velocidade, a ver onde nos pode multar… Isso é comum em todas as provas do Mundial menos na nossa, onde obviamente temos que cumprir, como todos, mas a Polícia está ali para nos ajudar. No capítulo da organização, temos pessoas que não te dão apenas os regulamentos gerais. Todos os pormenores são pensados, acautelados e trabalhados para as equipas e os pilotos terem menos problemas, dos reconhecimentos ao final da prova. Temos ainda um clima ótimo para a prática da modalidade, umas condições de terreno fantásticas e excelentes acessos, portanto tudo o que nos permite ter o melhor rali do Campeonato do Mundo. É o que eu sempre disse e mantenho. Ainda se podia dizer que a nossa prova faz parte de um leque de bons ralis, como Espanha ou Suécia. Mas não é assim. Em termos globais, não há outra ao nosso nível”.
MOLDURA HUMANA
É por isso que, para Armindo Araújo, o debate ‘Norte vs Sul’ é “relativo”, embora não deixe de enumerar as diferenças entre os dois eventos: “Antes de mais, o nosso País é de pequena dimensão. Portanto, o confronto Norte/Sul é relativo. No que às características da prova diz respeito, o Rali de Portugal no Sul é um rali mais fácil de organizar. É um rali mais concentrado e portanto é um rali mais cómodo de se fazer, penso eu, para a organização, equipas e pilotos. Já o rali no Norte tem uma grande carga histórica, passando por troços míticos. Agora é uma prova que tem muito mais trânsito e em que os troços são mais lentos, sinuosos e estreitos. No entanto, penso que o que sobressai mais no rali do Norte é a quantidade de fãs que conseguem estar mais perto dos troços, pilotos e equipas, resultando numa moldura humana maior do que aquilo que acontece no Algarve”, descreve. Mais acima ou mais abaixo, o espetáculo nunca fica comprometido, garante: “Tanto um como outro são dois ralis convencionais de terra, ou seja, são dois ralis bons em termos de campeonato do mundo, realistas e ajustados à performance de pilotos e máquinas, portanto não se fica a perder em termos de espetáculo piloto/máquina correndo no Norte ou no Sul”.
Recordámos a primeira fase da carreira de Armindo Araújo, e das suas vitórias no Rali de Portugal, mas a história, como se sabe, teve sequência, e nos dois últimos anos, 2018 e 2019, Armindo Araújo venceu o Rali de Portugal entre os concorrentes portugueses, agora com a Hyundai. Este ano, como se sabe, não vai poder levar o seu Skoda Fabia R5 Evo à mesma posição, pois o rali foi cancelado. Logo se verá em 2021…