A história da carreira de Richard Burns
Já lá vai quase década e meia que nos deixou uma das maiores estrelas do desporto automóvel, Richard Burns. Campeão Mundial de Ralis em 2001, considerado a justo título como um dos melhores do seu tempo e, quiçá, com lugar na galeria dos melhores de sempre, um cancro roubou-lhe a vida quando estava no auge da sua maturidade como piloto. Perdeu-se um grande homem e um grande talento.
Inglaterra, considerada hoje em dia como uma das pátrias dos ralis, teve de esperar até 1995 para ter o seu primeiro Campeão do Mundo, o escocês Colin McRae. Ícone de gerações, McRae, com o seu estilo fogoso e exuberante, não raras vezes com danos para a máquina, foi o primeiro piloto inglês desde os tempos idos dos anos 60/70 e de estrelas como Pat Moss-Carlsson, Paddy Hopkirk e Roger Clark – o primeiro piloto britânico a vencer uma prova do WRC, o RAC de 1976 – a brilhar consistentemente nos palcos mundiais, tendo sido uma presença assídua entre 1993 e 2003 na modalidade. No entanto, pouco depois de Colin começar a brilhar em terras de Sua Majestade outro jovem espreitava o seu momento de glória: Richard Burns.
Nascido em Reading, não muito longe de Londres, a 17 de janeiro de 1971, Burns estava longe dos habituais viveiros de talento dos ralis ingleses – Gales, a Escócia e as terras do Norte, habitualmente parte integrante do então longo e desafiante Rali RAC. Ainda assim, desde cedo Richard demonstrou interesse nesta disciplina do desporto motorizado, graças ao seu pai, Alex. Ao contrário de tantos outros casos, aqui foi mesmo o pai Burns que deixou o filho experimentar a condução de um velho Triumph da família num campo nos arredores de casa com apenas oito anos, estimulando assim o seu “bichinho”. Desejoso de mais experiências, Richard foi inscrito pelo pai aos 11 anos num clube de condução para menores de 17, um grupo de voluntários que dava oportunidade aos jovens apaixonados pela modalidade de experimentarem ralis, circuito e todo-o-terreno em pequena escala, e Burns não tardou a distinguir-se, ganhando o título honorífico de melhor piloto do ano em 1984.
Ciente do seu talento e paixão, Alex Burns decidiu ajudar o filho e, aos 15 anos, inscreveu Richard na Jan Churchill’s Forest Rally School, uma conceituada escola de pilotagem no País de Gales. Em terras que “respiravam” ralis, estes anos foram determinantes para o jovem Burns decidir tentar uma carreira profissional. Afinando cada vez mais as suas capacidades nestas pequenas provas nos pisos florestais, Richard Burns estreou-se oficialmente em competição numa prova regional em 1988, a Newtown Stages Rally, ao volante de um Talbot Sunbeam Ti, apoiado financeiramente pelo pai e por um clube automóvel de Reading, o Craven Motor Club, que ajudava pilotos novatos.
A caminho do Mundial
Durante estes dois primeiros anos de carreira, Burns dedicou-se essencialmente a aprender o máximo nestes pequenos ralis regionais, sem procurar qualquer título. Importante era ganhar ritmo, adaptar-se aos vários tipos de terreno e sair cada vez mais da sua zona de conforto, perante o que se mostrou bem-sucedido e muito consistente. Ao mesmo tempo, correndo por quase todo o país, descobria especiais típicas do RAC e de outras provas do Open Britânico, o que seria vital quando desse um passo em frente. A questão era… para dar esse passo, não chegava o apoio de um clube local e do pai. Porém, o seu talento precoce era já tão evidente que David Williams, um experiente piloto dos regionais e até do nacional, decidiu patrociná-lo e comprou-lhe um Peugeot 205 GTi para competir no afamado Troféu Monomarca promovido pelos concessionários da marca de Sochaux em Inglaterra. Esperava-se um ano de aprendizagem, mas toda a experiência amadora de Burns, aliado ao seu talento natural e estilo fleumático, oposto ao do seu futuro rival Colin McRae, permitiram-lhe vencer no seu ano de estreia! Como prémio, disputou com o mesmo carro o Rali RAC de 1990, terminando no 28º posto.
Williams decidiu renovar-lhe o patrocínio por mais uma época, disputando o mesmo Troféu, e aí Burns demonstrou que nada do que acontecera até então fora sorte de principiante, vencendo com clara vantagem o Troféu Peugeot 205 GTi em 1991 e terminando o RAC em 16º, vencendo a classe, já com apoio do concessionário nacional. Os resultados não enganavam, e Inglaterra via-se, num prazo de cerca de cinco anos, com duas grandes promessas que, além de poderem apontar ao conceituado Open Britânico, tinham talento e reais ambições para progredir até ao cume do WRC. Mais uma vez, foi Chris Williams quem esteve ao lado de Burns neste momento delicado. O veterano piloto tinha comprado um Subaru Legacy RS de Grupo N para disputar uma mistura de provas do campeonato nacional e dos regionais, mas decidiu ceder o carro a Burns para a primeira prova, sabendo de antemão que o jovem de Reading era muito mais rápido. Williams não se sacrificou em vão, pois Burns brilhou em quase todas as provas que disputou, no seu ano mais concorrido até então, não raras vezes levando o seu Grupo N à luta com os principais carros de Grupo A, e vencendo o título na categoria. E, de novo convidado para disputar o RAC pela Peugeot, desta vez viu-se forçado ao abandono. Entretanto, McRae vencia o Open Britânico com um Subaru de Grupo A e preparava-se para disputar o Mundial já em 1993.
Os anos da Subaru – Parte I
Depois de ter conseguido a maior promessa inglesa de então, David Richards, diretor da Prodrive, que coordenava o programa competitivo da Subaru, apressou-se a contratar… mais uma! Deste modo, Burns assinou um contrato como piloto de fábrica da Subaru para 1993, dedicando-se essencialmente ao Campeonato Nacional Inglês. Contra um oposição de luxo, que incluía o mais jovem dos McRae, Alister, Gwyndaf Efans (pai de Elfyn Evans, piloto da M-Sport e vencedor do RAC em 2017) e os consagrados Malcolm Wilson e David Llewellin, Burns rapidamente impôs-se ao volante do seu Legacy RS e venceu quatro das cinco provas que compunham o campeonato, consagrando-se um mais que merecido campeão, o mais jovem da história do campeonato inglês, com apenas 22 anos. E, no final do ano, estreou-se ao volante de um carro de fábrica ao pilotar o terceiro Subaru no RAC (enquanto Colin McRae e Vatanen corriam com os Impreza), para terminar num promissor sétimo lugar, batendo de novo o seu colega da equipa “B”, Alister McRae.
Em 1994 Richard Burns tornou-se terceiro piloto da Subaru, ao lado de Colin McRae e Carlos Sainz. E o batismo de fogo, na sua primeira prova do WRC que não o RAC, foi logo… no Safari! Conduzindo um Impreza WRX de Grupo N, Burns provou estar à altura dos desafios e foi quinto na geral e segundo na categoria, batido apenas pelo experiente piloto queniano Patrick Njiru, seu colega de equipa. De resto, o seu programa centrou-se essencialmente no mega popular (à data) Campeonato de Ralis Ásia-Pacífico, aonde Burns foi colocado ao lado de um dos melhores pilotos da região, o neozelandês Possum Bourne. A temporada foi algo irregular, incluindo um dos seus (raríssimos) acidentes no Rali da Nova Zelândia – prova vencida pelo segundo ano consecutivo por Colin McRae – mas ainda assim Burns não desiludiu, focando-se em aprender a pilotar em troços muito diferentes dos europeus, para terminar o campeonato em terceiro, enquanto Bourne se sagrava Campeão. E, para terminar a época, disputou o RAC com a equipa de fábrica, desistindo com a suspensão partida.
1995 seria mais do mesmo. Com McRae e Sainz como pilotos principais, Burns iria focar-se nos Antípodas, disputando ainda algumas provas no WRC. Se no Ásia-Pacífico os resultados não corresponderam propriamente ao esperado, no WRC Burns foi sétimo em Portugal, abandonou com problemas de motor na Nova Zelândia, mas terminou em alta no RAC, numa prova dominada pelos carros da marca nipónica. McRae e Sainz lutaram pela vitória e pelo título, já que partiam empatados para a última ronda do campeonato, e Burns cedo se estabeleceu como o “melhor dos outros”, isolando-se no terceiro lugar. Decerto que o homem de Reading esperava ficar na Subaru ao lado de McRae, depois de Sainz ter decidido mudar de ares e assinar pela Ford, mas a Prodrive decidiu centrar-se em McRae e dividir o segundo carro por Kenneth Eriksson e Piero Liatti, inscrevendo ocasionalmente um terceiro. Deste modo, Burns terminou a sua ligação de três anos à Prodrive e partiu em busca de um lugar a full-time no WRC…
Primeiras vitórias com a Mitsubishi
Infelizmente para Burns, o único lugar disponível era o de segundo piloto da Mitsubishi, substituindo precisamente Eriksson. E o construtor japonês estava totalmente focado em levar o promissor Tommi Mäkinen ao título e não investia a 100% no segundo carro, geralmente usado apenas em part-time no WRC, já que os interesses da equipa também rondavam muito a luta com a Subaru no Campeonato Ásia-Pacífico. Após dois anos de experiência, Burns estava motivado para vencer este campeonato, mas um violento acidente no Rali da Tailândia e um abandono muito prematuro na Indonésia (também pontuável para o WRC) acabaram com quaisquer ambições ao título. Ainda assim, brilhou nas restantes provas, conseguindo a sua primeira grande vitória no Rali da Nova Zelândia – fruto do rotativismo que vigorou no WRC entre 1994 e 1996, a prova neozelandesa contou apenas para o Campeonato FIA de 2 Litros, e não para o WRC em geral, o que não tira mérito à vitória de Richard. Vice-campeão no APRC, batido apenas pelo Subaru de Kenneth Eriksson, Burns mostrou estar à altura das responsabilidades nas poucas provas que disputou no WRC, sendo quarto na Argentina e quinto na Austrália, embora fechando a época com um acidente na sua primeira prova de asfalto ao mais alto nível, a Catalunha.
Com Mäkinen finalmente Campeão do Mundo em 1996, a Mitsubishi decidiu-se por alargar gradualmente o programa de Burns no WRC, possibilitando-lhe uma maior aprendizagem. Pilotando o Mitsubishi Lancer Evo IV, sob o nome de Carisma Evo IV por motivos de marketing, Burns foi segundo no Safari, após uma prova verdadeiramente espetacular, desistindo em seguida com problemas mecânicos em Portugal e na Argentina. Depois disso terminou o campeonato com uma série de cinco quartos lugares consecutivos – na Acrópole, Nova Zelândia, Indonésia, Austrália e RAC – concluindo o WRC em sétimo. Nesse ano, precisamente no Safari, venceu a sua primeira especial, e acumularia mais cinco ao longo da época, demonstrando assim o seu grau de maturidade.
Com as mudanças regulamentares no WRC para 1998, que concentrou os ralis no formato de trevo que hoje lhe conhecemos, ao mesmo tempo que o Campeonato Ásia-Pacífico perdia importância, a Mitsubishi decidiu, pela primeira vez, fazer todo o calendário com dois carros, com Mäkinen e Burns. Iria ser ainda uma época de aprendizagem, já que Burns não conhecia quase metade do calendário, mas se alguém duvidava da sua adaptabilidade a terrenos como o asfalto e a neve, cedo se enganou. Quinto na sua estreia no Monte Carlo, Burns estava entre os melhores na Suécia até bater num banco de neve e perder muito tempo, embora vencesse pelo meio três especiais! Melhor ainda, no Safari, com a sua longa experiência na duríssima prova queniana, Burns conseguiu a sua primeira vitória no WRC aos 27 aos, após uma luta titânica com McRae e Mäkinen! Se dúvidas havia, a regularidade evidenciada na restante temporada, mesmo nos pisos de asfalto, demonstrou que Burns era um dos mais completos pilotos do WRC, e a vitória no Rali RAC, após uma grande luta com Colin McRae, na prova que decidiu o campeonato a favor de Mäkinen (que o diga Sainz, que perdeu o campeonato por pouco mais de 300 metros), só confirmou aquilo que já se sabia. Burns era um piloto maduro e o seu estilo regular e tranquilo, mesmo sem desprezar o constante slide com a sua máquina, davam dividendos e o piloto foi sexto no Campeonato e ajudou a Mitsubishi a conquistar o seu único Mundial de Construtores.
Os anos da Subaru – Parte II
Ciente da liderança de Mäkinen na Mitsubishi – o finlandês era então tricampeão mundial – Burns regressou à Subaru, ao lado do veterano Juha Kankkunen e de Bruno Thiry, ironicamente substituindo Colin McRae. Porém, a época da Subaru começou nitidamente em baixa, e na primeira metade da época Burns valeu-se da sua regularidade para ir conquistando pontos. No entanto, na Argentina, os Subaru estavam finalmente capazes de lutar pelas vitórias e dominaram a prova, com uma luta titânica entre Burns e Kankkunen. A poucas especiais do fim, ciente da importância de uma dobradinha, David Richards ordenou aos seus pilotos que conservassem posições, mas Kankkunen – que já não vencia uma prova do WRC desde 1994 – decidiu fazer “orelhas moucas” e atacou Burns, que acreditou até ao fim que as ordens iriam ser cumpridas… até ser ultrapassado pela velha raposa finlandesa na última especial.
Não devem ter faltado discussões na motorhome da Subaru nesse dia, e o ambiente entre as duas estrelas estava, decerto, em decadência, mas Burns “vingou-se” de seguida e venceu o rali seguinte, na Acrópole. Na Finlândia, nova dobradinha, mas desta vez com vitória mais que merecida e sem contestações por parte de Kankkunen, a sua última vitória no WRC. Burns foi, de seguida, segundo na China, mas o abandono no Sanremo com problemas mecânicos pôs fim a todas as ilusões na luta pelo campeonato, mesmo tendo vencido na Austrália, já que Mäkinen assegurou facilmente o seu quarto Mundial nesta prova. Ainda assim, Burns demonstrou facilmente ser o mais rápido dos pilotos da Subaru em 1999 ao conquistar uma espetacular vitória no RAC, batendo Didier Auriol na luta pelo vice-campeonato e terminando a época com 55 pontos.
A dupla manteve-se em 2000, mas rapidamente se viu que Kankkunen estava, definitivamente, no seu ocaso, e Burns assumiu desde o início a liderança da equipa de David Richards, mostrando-se desde cedo um candidato ao título, lutando taco-a-taco com McRae, Sainz e Grönholm. O Subaru parecia ser o carro a bater e Burns venceu, na primeira metade da época, três provas – Safari, Portugal e Argentina – assumindo a liderança do campeonato. No entanto, “no melhor pano cai a nódoa”, e uma sequência de três abandonos (problemas mecânicos na Acrópole e na Nova Zelândia, e um despiste na Finlândia) permitiram aos seus rivais recuperarem todo o atraso perdido. Assim, a segunda metade da época foi disputada taco-a-taco, com a Subaru a perder a sua superioridade, obrigando Burns a dar o seu melhor. Mesmo com novo abandono no Sanremo por problemas mecânicos, o segundo lugar na Austrália foi suficiente para manter o inglês na luta pelo título e este fez o que tinha a fazer com uma exibição magnífica no RAC, que lhe deu a quarta vitória da época, mas que não chegou para bater Marcus Grönholm na luta pelo cetro. Novamente vice-campeão, com 60 pontos, era evidente que seria uma questão de tempo até Burns conseguir a sua primeira coroa.
No final de 2000, Kankkunen deixou a Subaru, que contratou os jovens Petter Solberg e Markko Märtin, deixando assim Burns como líder incontestável da equipa. Porém, a última evolução do Impreza não estava ao nível das duas temporadas precedentes, e Richard Burns viu-se forçado a recorrer à sua habitual regularidade para acumular pontos. Valeu-lhe uma época de loucos, em que oito pilotos ganharam pelo menos um rali e em que nenhum construtor conseguiu assumir uma primazia e regularidade a nível de fiabilidade suficiente para permitir uma caminhada para o título a algum dos pilotos, ou então os erros destes. No final da primeira metade da época, Burns era apenas quinto no mundial, com os melhores resultados a serem dois segundos lugares na Argentina e Chipre, os únicos pódios até então. Se o campeonato parecia perdido, graças a uma ligeira subida de forma na segunda metade da época aliada a erros dos rivais e à distribuição de pontos – que tornou o WRC de 2001 como um dos mais disputados da história – Burns conseguiu recolocar-se na luta pelo título com um segundo lugar na Finlândia e uma vitória – ironia do destino, seria a sua última – na Nova Zelândia. Deste modo, Burns chegou ao RAC em condições de vencer o Mundial (ver Caixa) e, mais uma vez apostando na regularidade, esperou até que os rivais cometessem erros para, tranquilamente, levar o seu Subaru até final e terminar em terceiro, conquistando assim o valioso título. Pode não ter sido a melhor época de Burns, mas para ser campeão a regularidade é um fator necessário, e Richard nunca vacilou nesse aspeto.
Desilusões na Peugeot
Aos 30 anos, Richard Burns era, assumidamente, um dos melhores pilotos do mundo, e tinha finalmente confirmado com o título a velocidade e talento que deixara antever. No entanto, a Subaru não tinha demonstrado a consistência esperada e com Auriol de saída da Peugeot, Burns fez tudo para conseguir negociar um lugar com a marca de Sochaux. De facto, desde o título de Grönholm em 2000 que a Peugeot se mostrava a melhor equipa do pelotão, e só um péssimo começo de temporada em 2001 impediu Marcus de lutar pelo título nesse ano. Deste modo, em 2002, a Peugeot reunia dois dos melhores pilotos do mundo, ao mesmo tempo que tinha no terceiro carro um piloto rápido em terra, mesmo se algo irregular – Harri Rovanperä – e a super-estrela do asfalto, Gilles Panizzi.
Quem esperava um domínio Peugeot em 2002, acertou em cheio. No entanto, foi notório desde o início que Burns nunca se adaptou bem à equipa, talvez por esta estar já muito habituada a trabalhar com os seus colegas de equipa, que estavam na formação desde 1999 ou 2000 (ou até desde os tempos da F2, com Panizzi). Grönholm tinha liderado grande parte do projeto de desenvolvimento e era agora um piloto no auge da sua maturidade – e provaria o talento que tinha ao ser dos poucos capazes de lutar de igual para igual com Sébastien Loeb até à sua retirada – e Burns ressentiu-se, depois de ser o capitão incontestável da Subaru desde finais de 1999. Além disso, Burns não conseguiu estabelecer uma relação tão próxima com o seu engenheiro e com a restante equipa como Grönholm e Panizzi e, deste modo, começou a época de forma algo apagada, mais uma vez apostando em conquistar o máximo de pontos possíveis. Na Catalunha e em Chipre conseguiu dois segundos lugares consecutivos, e a Peugeot teria conseguido outra dobradinha na Argentina, novamente com Burns no segundo posto, se os dois carros não tivessem sido desclassificados numa questão de dias. Porém, dois abandonos, na Acrópole e no Safari – ficou célebre a luta inglória de Burns e do seu fiel co-piloto Robert Reid para tirar o Peugeot atolado na areia à entrada do parque de assistência da prova queniana – deixaram Grönholm definitivamente na frente e, batido claramente na terra por este e cilindrado por Panizzi no asfalto (o reinado de Gilles neste piso só foi desafiado por Sébastien Loeb), terminou a época com três abandonos consecutivos, dois dos quais por acidente, sinal que estaria talvez a puxar desesperadamente pelo carro numa tentativa de salvar a época com uma vitória. O quinto lugar, com 34 pontos, soube nitidamente a pouco.
Burns esperava que 2003 se revelasse bem mais auspicioso, mas a Peugeot tinha perdido a sua superioridade e tinha agora que se bater taco-a-taco com a Subaru e a Citroën (esta com a “dream team” composto por McRae, Sainz e o jovem, mas já mais que provado, Loeb). Num campeonato muito equilibrado, Burns até esteve melhor que Grönholm graças à sua implacável regularidade, o que lhe valeu passar pela liderança do campeonato durante grande parte deste, mesmo se nunca conseguiu vencer. A quatro provas do fim, Burns só tinha desistido uma vez e tinha conseguido sete pódios em 10 ocasiões, o que o deixava na luta pelo título. Infelizmente, os mais observadores já tinham notado uma ligeira quebra de forma de Burns, e no asfalto do Sanremo e da Córsega o inglês ficou nos últimos lugares pontuáveis, graças ao sistema que dava pontos até ao oitavo lugar! Tudo bem que Burns não era um ás no asfalto, mas as performances tão insípidas lançaram o alerta. Pior ainda, Burns perdeu a liderança do campeonato quando, mais uma vez rodando nos pontos, se desconcentrou e bateu no Rali da Catalunha. Ainda assim, estava claramente na luta pelo título e os seus fãs esperavam que o passe de magia no RAC lhe desse a vitória e o segundo título…
O drama
Richard Burns dirigira-se ao longo da M4 para os reconhecimentos do Rali RAC ao lado do seu amigo e rival Markko Märtin (Ford) quando, repentinamente, perdeu os sentidos. Valeram os excelentes reflexos de Märtin, que conseguiu agarrar o volante e evitar um acidente, mas a luta pelo título estava acabada para Burns, que foi obrigado a fazer testes médicos e a um período de repouso passado pelos médicos da FIA. Infelizmente, o diagnóstico foi arrasador. Burns sofria de um tumor na cabeça, aparentemente inoperável. Os primeiros rumores ainda disseram que era benigno, mas não tardou a que se confirmasse uma realidade bem mais grave – um astrocitoma, uma forma bastante maligna de cancro cerebral.
A luta de Burns, daí em diante, foi pela vida. Desde o diagnóstico, Burns foi submetido a vários tratamentos agressivos para diminuir o tumor na esperança de o tornar operável, mas o prognóstico foi sempre muito reservado e, apesar de uma bem-sucedida operação em abril de 2005, não demorou a perceber-se que Burns não teria muito tempo de vida. Em agosto foi organizada uma “fan tour” pela coleção de carros privada de Richard Burns, mas o piloto estava incapaz de conduzir e foi Robert Reid que assumiu as rédeas da pilotagem de alguns dos seus carros mais míticos. A partir do verão, a saúde de Burns degradou-se continuamente e o piloto inglês entrou em coma em meados de novembro, vindo a falecer no dia 25 desse mês, ironicamente quatro anos depois de, em 2001, ter conquistado o seu título mundial.
Richard Burns foi alvo de numerosas homenagens, não só dentro do meio do automobilismo, mas também em programas como o conceituadíssimo Top Gear, já que o apresentador Jeremy Clarkson era um grande amigo do piloto. Nesse dia, contudo, as homenagens foram repartidas com a antiga glória do Manchester United George Best, que faleceu no mesmo dia de Burns após uma vida de excessos que se seguiu à sua curta mas brilhante carreira futebolística. Por ironia do destino, Burns estava de saída da Peugeot e a caminho de assinar pela Subaru, o seu segundo regresso à equipa, para substituir o já veterano Tommi Mäkinen. Em 2006, a marca nipónica fez uma homenagem a Burns no circuito de Castle Combe e em 2007 lançou uma versão especial do WRX STI, com maior performance e preparada pela Prodrive. Ainda em 2006, no Goodwood Festival of Speed, foi lançada uma Fundação destinada a pessoas com deficiências e doenças graves, a RB Fundation, que rapidamente estabeleceu um acordo com o Michael Park Fund, também esta uma fundação em memória do falecido co-piloto Michael Park, vítima de um acidente no Rali RAC de 2005 e que levou à retirada do desporto do piloto Markko Märtin. Por fim, a banda escocesa Travis dedicou o seu álbum The Boy With No Name a Richard Burns.
Foi um fim triste e dramático para a carreira de um grande homem e piloto. Por ironia do destino, Burns era visto como uma pessoa algo arrogante e altiva, fruto da sua timidez para com o público e de um estilo de vida mais aproximado ao de um campeão de Fórmula 1 do que de Ralis. Não que isto estivesse errado, longe disso, mas “a malta dos ralis” estava habituada a temperamentos diferentes. No entanto, todos reconhecem que Burns era uma pessoa afável e de bom trato. E, ao volante, conseguia aliar uma rapidez estonteante e uma grande adaptabilidade aos terrenos com uma regularidade implacável, o que foi a chave para o seu título e para muitos dos seus resultados. Era também, segundo recordam os seus engenheiros e mecânicos, uma pessoa extremamente metódica na afinação do carro, e também na preparação dos ralis, e um mestre na gestão tática durante a prova.
Rali RAC 2001: A Batalha de Inglaterra
2001 foi um dos anos mais competitivos da história do WRC, talvez o mais disputado entre marcas e pilotos desde a criação do Mundial de Pilotos em 1979. Após a 13ª ronda do Mundial, o Rali da Austrália, quatro pilotos podiam ainda lutar pelo título. Colin McRae (Ford) arrancava na frente com 42 pontos, seguido de Tommi Mäkinen (Mitsubishi), com 41, e de Richard Burns (Subaru), com 40. No entanto, com 10 pontos em disputa, Sainz (Ford), com 33 pontos, ainda estava matematicamente na luta pelo campeonato, não fosse dar-se uma hecatombe. Quanto aos Construtores, apesar dos problemas na fase inicial da época, a Peugeot tinha “dado a volta ao texto” e liderava o campeonato com 90 pontos, contra os 86 da Ford.
A nível de inscritos, a Peugeot recorria aos seus pilotos titulares, Grönholm e Auriol, e ao especialista na terra Harri Rovanperä, que tinha brilhado na Suécia ao conquistar a sua primeira e única vitória no WRC. A Ford apresentava-se com Sainz e McRae, com fortes esperanças no título da estrela escocesa e, para ajudar, o terceiro carro era entregue à estrela dos ralis britânicos Mark Higgins. A Subaru recorria à tripla habitual, Burns, Solberg e Märtin. Já a Mitsubishi inscrevia apenas dois pilotos, Mäkinen e Freddy Loix. Presentes, mas completamente fora destas “guerras”, estavam a Hyundai e a Škoda. A marca de Mlada Boleslav alinhava com Schwarz, Thiry e Kresta, enquanto a Hyundai trazia Eriksson, Alister McRae e Liatti. Não faltavam privados, como era habitual naqueles tempos, por isso estavam reunidos todos os ingredientes para um bom rali. E, com uma luta tão cerrada pelo título, a prova foi denominada de “Batalha de Inglaterra”, até por que ambas as estrelas inglesas estavam na luta pela coroa.
Como de costume, Colin McRae partiu imediatamente ao ataque, esperando conseguir uma boa vantagem sobre os seus adversários para depois entrar em ritmo de cruzeiro para o título, sabendo que estava na frente do campeonato. E, logo na segunda especial, ficou de fora um dos maiores rivais, Tommi Mäkinen, que danificou a suspensão num buraco e perdeu muito tempo, desistindo no final da especial. Só nessa especial ficaram de fora outros dois pilotos de fábrica – Liatti, com a transmissão quebrada, e Solberg (que podia ser uma ajuda preciosa para Burns), com problemas mecânicos. Pouco depois, Sainz via esfumar-se as suas parcas hipóteses na luta pelo seu terceiro título com um furo, enquanto McRae, sempre em “Maximum Attack”, caía vítima da própria exuberância na quarta especial quando cometeu um erro e capotou violentamente o seu Ford Focus, abandonando no local. Agora, restava-lhe esperar pelos azares alheios, como ocorreu com Mäkinen no RAC de 1998…
Burns perdeu o seu outro apoio quando, na PEC 5, Markko Märtin desistiu com o motor quebrado, e um erro do inglês por pouco não o deixou fora de prova. Deste modo, Grönholm ganhava uma boa vantagem no final do primeiro dia, na frente de Burns e de Rovanperä, enquanto Sainz tentava desesperadamente recuperar o atraso causado pelo furo. No final da etapa, a Škoda perdia também Kresta, fruto de um acidente. Após um primeiro dia de loucos, sentia-se que tudo podia acontecer…
O segundo dia arrancou com Grönholm ao ataque e Burns a jogar à defesa, ciente que bastava-lhe terminar em quarto para ser campeão, já que os sete pontos e a grande vantagem no cronómetro em relação a Sainz eram mais do que suficientes. Para melhorar a situação, o inglês viu-se livre da pressão de Rovanperä quando este se atrasou depois de bater numa pedra. Pouco depois, era a vez de Loix desistir com a transmissão quebrada, enquanto Auriol se despistava e perdia muito tempo, demonstrando estar longe dos seus melhores tempos, e Alister McRae brilhava em casa com o Hyundai, apesar de alguns excessos. Mas o pior aconteceu na PEC 11, quando Sainz perdeu o controlo do carro e despistou-se contra uma zona de espectadores. Felizmente, não houve mortos, mas Sainz não se sentia capaz de manter a concentração e optou por abandonar o rali, e a Ford retirou também Mark Higgins da prova. Burns só precisava mesmo de três pontos para bater McRae, mas as provas só acabam no fim…
O último dia seria uma prova “de nervos” para Burns. A não ser que errasse ou a mecânica falhasse, Grönholm tinha a vitória garantida, e as estradas alagadas convidavam a diminuir o ritmo. Burns fez o mesmo, mas Rovanperä não. Sem nada a perder, o finlandês impôs um ritmo muito forte e não tardou a ultrapassar Burns para assegurar mais uma dobradinha à Peugeot, enquanto Burns ficava seguro no terceiro lugar quando Alister McRae, sem dúvida muito inspirado e com um Hyundai a colaborar, ficava com o pára-brisas encravado. Se bem que o escocês teve de abrandar um pouco, não cometeu erros e conseguiu manter o quarto lugar, na frente do Škoda de Schwarz e do seu colega de equipa Eriksson. As posições permaneceram assim até ao final do rali, com a Peugeot a confirmar um mais que merecido título de Construtores e Burns a assegurar, graças à regularidade, o Campeonato de Pilotos. De destacar a excelente campanha da Hyundai, geralmente em luta com a Škoda para evitar ser a “lanterna vermelha” no Mundial de Construtores, mas a exibição, particularmente do mais novo dos McRae, não foi suficiente para ultrapassar os checos.