Três pedais… um pé!
Há um ano que a história de Nelson Silva passou a ser destacada no AutoSport. E um ano depois, muita coisa mudou para o piloto de Sintra, que continua a fazer história.
Foi por um acaso que conheci a história de Nelson Silva. Mas desde a primeira conversa que o contacto tem sido constante. Conheço a história muito bem, os pormenores e acima de tudo a teimosia de querer fazer o que é difícil. Na primeira conversa, conheci um piloto de karting que ia competir sem uma perna, contra outros pilotos sem limitações. A introdução da história era suficientemente espantosa, mas a história completa é ainda mais.
Na altura escrevi o seguinte:
“Era apenas mais um jovem que vivia a sua paixão pelos motores e pela velocidade de forma intensa. Habituado desde pequeno ao mundo dos karts e da velocidade, fez da alta rotação o seu modo de vida, até que em 2007, um acidente de moto lhe virou o mundo do avesso. Com duas pernas partidas, a recuperação da perna direita complicou-se e não restou mais nenhuma solução senão a amputação. Mas a amputação não lhe roubou a paixão pelas corridas. A vontade de viver um pouco mais rápido que os restantes falou sempre mais alto e apostou nos Karts. O começo não foi fácil e encontrar a adaptação ideal à sua limitação demorou algum tempo, mas a sua perseverança, com a ajuda de terceiros, permitiu-lhe encontrar a fórmula certa para poder ir para a pista. Mas a ambição de Nelson Silva foi crescendo e em 2022 vai tentar fazer o que muitos consideravam impossível. Vai competir no Campeonato de Portugal Rotax.”
12 meses depois, Nelson Silva fez o campeonato completo no Rotax, uma jornada do Campeonato de Portugal de Karting e ainda fez a Taça da Madeira. No final da época, fez o seguinte balanço:
“Foi um ano tremendo! Sabia que ia ser difícil, o que se confirmou, mas tinha em mim a força para chegar aos objetivos traçados e consegui. Terminei em sétimo na DD2 Master, num total de 13 inscritos. Fiz também uma prova no Campeonato de Portugal de Karting Toyota na categoria X30 Master, onde consegui o terceiro lugar na jornada de Leiria. Ainda fui convidado para participar na Taça da Madeira de Karting, onde fui recebido com todo o cuidado e atenção e aproveito para agradecer publicamente a toda a organização da prova que foi inexcedível, proporcionando-me todas as condições para competir.”
Depois de um excelente ano, Nelson Silva podia parar. Podia dizer que tinha feito a sua parte e dado um exemplo valioso e mostrado que era possível. Mas a sede de desafios fala sempre mais alto. Esta época seria de repetição do campeonato Rotax e uma presença numa prova do CPK, nos X30 Super Shifter, aquele que considerava o maior desafio que estava reservado para si. Mas o início do ano trouxe surpresas que mudaram completamente o panorama.
Um novo desafio
E o primeiro passo da sua nova aventura aconteceu no fim de semana passado, no Estoril Experience Day. Flávio Santos, chefe da TRS – Touge Racing Service, que no ano passado competiu e venceu na Civic Atomic Cup, na categoria AM (com a dupla Filipe Barreto / Francisco Viola), desafiou Nelson Silva a pilotar o Civic da equipa, sem adaptação. Destaca-se a confiança de Flávio Santos em Nelson Silva, cedendo-lhe um veículo de competição por algumas voltas. Mas na preparação para esta aventura surge uma ainda maior. Carlos Barbosa, da G´s Competizione também se interessou pela história e organizou duas sessões de 20 minutos em pista no mesmo evento para o Nelson, no Citroën C1 da equipa, um primeiro teste que poderia abrir as portas à participação numa prova de resistência. Num dia apenas, dois carros diferentes, dois desafios distintos, com uma coisa em comum. Ir para a pista com carros sem adaptação.
Conhecendo bem o Nelson, sabia que ele conseguia conduzir apenas com um pé, sem adaptação. Mas uma coisa é conduzir, outra coisa é pilotar numa pista com mais carros. Ele aceitou o desafio de imediato. Claro!
As primeiras voltas foram no Civic da TRS e a experiência correu muito bem. Nelson fez tempos apreciáveis, tendo em conta a sua limitação. Três voltas em que sentiu o gosto pela competição automóvel, diferente dos karts, mas também aliciante. Seguiram-se duas sessões com o C1 da G´s Competizione. Resultado? Um sucesso retumbante. Nelson Silva espantou quem foi com ele. Eu incluído.
Surgiu a hipótese de dar uma volta com ele. A ideia era filmar a volta, mas sinceramente arrumei o telemóvel e limitei-me a apreciar o espetáculo. Como ele consegue acelerar, travar e embraiar com apenas um pé é um mistério para mim (e para muitos). Mas ele consegue fazê-lo. “Temos piloto” pensei eu.
Espanto geral
Entendi o espanto de Carlos Barbosa que falou comigo depois de também ter visto as capacidades do Nelson: “fiquei surpreendido com a desenvoltura que ele mostra nas trocas de caixa. Não esperava que ele trocasse tão bem. E não fui só eu, outras pessoas que andaram com ele também ficaram surpreendidas. Já está marcado e ele vai fazer a prova de resistência, nos dias 16 e 17 de setembro, aqui no Estoril. “
Nelson Silva conseguiu mais uma vez espantar o mundo. Mas mais importante que isso, voltou a abrir portas para outros que enfrentam desafios semelhantes. Carlos Barbosa referiu mesmo que a sua estrutura pode equacionar uma equipa dedicada apenas a pessoas com dificuldades físicas, dando as condições para que quem queira entrar no desporto motorizado, mesmo com limitações. Mas quando a ideia de correr num carro adaptado foi mencionada, Nelson disse logo: “Não! Ou é sem adaptação, ou não quero! É para mostrar que posso e que é possível. Não é para ser fácil.”
Não é fácil, mas torna-se um pouco menos difícil com pessoas como o Flávio Santos e o Carlos Barbosa que viram para lá da limitação e que abriram as portas ao Nelson. Merecem todo o reconhecimento pelo trabalho que desenvolvem e pela visão que mostraram.
A ironia da vida
Num dia em que conversávamos sobre o seu percurso, Nelson ainda estava algo incrédulo com as portas que se abriam. “Eu faço isto por mim, para me provar a mim próprio que é possível e faço para abrir portas para outros. Eu bem sei o que passei e as dificuldades que encontrei para chegar até aqui. Mas eu aguento. O que quero é que pessoas que possam não aguentar tanto tenham as mesmas oportunidades.”
Ainda hoje me questiono como ele fez para travar para a curva três, como ele segurou o carro na 4 e fez o trabalho de redução para a parabólica interior. Mas esses não foram os maiores desafios que encontrou na vida. Aquele “sapateado” caricato é apenas uma das provas de que tudo é possível e que este desporto por vezes tão ingrato por vezes dá segundas oportunidades de formas inusitadas.
Do que não restam dúvidas é da sua perseverança, da sua resiliência. Se a teimosia desse dinheiro, o homem tinha orçamento para correr na F1. Mas é esta teimosia que abre portas. Aguardando ainda o contacto da FPAK, que até à data ainda não se interessou por este caso, Nelson vai conquistando cada vez mais admiradores. Quer no trabalho que faz na sua equipa, a Albakarting, onde é chefe de equipa, mecânico e mentor dos jovens que quiseram correr na sua equipa, quer ao volante de um karting, e agora de automóveis.
No fim de semana passado, no Estoril, pude presenciar mais uma das ironias da vida. A velocidade, que quase lhe tirou tudo, ainda o faz sorrir e agora abre-lhe portas para novas oportunidades e aventuras. A velocidade, que no passado foi madrasta com ele, permite-lhe mostrar a todos que a determinação e a força mental são receitas infalíveis para se chegar onde quer… mesmo que demore.
E houve um pormenor que me fez sorrir. A paixão pelas corridas do Nelson, foi também incutida pelo pai (grande fã de Ayrton Senna), que infelizmente não está com ele para festejar estes triunfos. Mas foi no Dia do Pai que Nelson Silva provou que pode fazer magia com um pé e três pedais, na mesma pista onde o herói do seu pai (e seu herói também) venceu pela primeira vez na F1. Onde quer que esteja, o Sr. Eugénio estará certamente orgulhoso, tal como toda a família.
Nelson Silva vai voltar às pistas em breve, com um projeto repensado, fazendo três rondas do CPK nos X30 Super Shifter e uma ronda do Troféu C1 Eurocup num carro de competição sem adaptação. A história continua!
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Extraordinário, não tinha conhecimento. Grande exemplo. Parabéns!