A nova F1 de 2022
Não há memória de uma mudança regulamentar tão radical e tão profunda na F1. Muito mudou e vai mudar este ano, numa espécie de recomeço para o Grande Circo, decidido em capitalizar o crescimento recente, tentando evitar erros do passado.
A F1 não para e se ainda estamos a recuperar da fantástica época de 2021, que ficou para a história como uma das mais entusiasmantes e imprevisíveis, os engenheiros das equipas dão os toques finais nas novas máquinas que irão para a pista em fevereiro. Dizer que 2022 traz mudanças é um eufemismo. 2022 é ano de revolução na F1.
Se a hegemonia Mercedes na era híbrida trouxe coisas negativas, como a falta de competitividade e falta de interesse por parte dos fãs, é justo dizer que trouxe coisas boas. Os responsáveis pela competição começaram a pensar em formas de melhorar o espetáculo e se algumas medidas discutidas não saíram da gaveta (e ainda bem) outras começaram a ganhar peso. A introdução de corridas sprint, por exemplo, é uma tentativa de apimentar o fim de semana e dar mais espetáculo. Mas Ross Brawn, diretor técnico cessante da F1, não se ficou pelas medidas cosméticas e, desde a sua chegada ao leme da F1, começou um trabalho exaustivo para entender porque as corridas não eram tão entusiasmantes quanto os fãs queriam. Numa das primeiras sondagens que a Liberty Media (dona da F1) fez, ficou claro que os fãs queriam mais lutas em pista. Brawn pegou nessa premissa e estudou a fundo como se poderia melhorar este aspeto. E quando dizemos, que estudou a fundo, significa que criou de raiz uma equipa de engenheiros com a missão de encontrar soluções, para que pudessem ser implementadas em 2021, ano em que estava inicialmente planeada a mudança de regulamentos. Falamos de uma estrutura semelhante à que as equipas de F1 usam, com métodos de trabalho semelhantes e com meios para uma investigação exaustiva, além de um diálogo muito próximo com as equipas e com os responsáveis da F1.
Novos regulamentos financeiros antes das mudanças técnicas
O resultado foi um conjunto de novos regulamentos que visam melhorar a F1, torná-la mais justa, mais competitiva e mais interessante. As mudanças podem ser divididas em duas partes: A primeira está ligada à forma como as equipas recebem e gastam dinheiro na F1. As equipas grandes sempre receberam mais que as equipas pequenas, aumentando ainda mais o fosso entre ricos e pobres. Depois de muita negociação, nem sempre fácil, os responsáveis da F1 conseguiram convencer as equipas que era do interesse de todos dividir o dinheiro mais equitativamente e gastar menos. Assim, a primeira parte do problema foi “resolvida” e as equipas assinaram um novo Pacto de Concórdia, onde aceitaram as novas regras, com uma distribuição de dinheiro mais justa e a implementação de um limite orçamental, evitando orçamentos faraónicos que sempre assustaram possíveis interessados na competição. O limite orçamental já está implementado (145 milhões de dólares em 2021, 140 milhões este ano e 135 milhões a partir de 2023), o novo acordo comercial assinado (distribuição mais equitativa das receitas da F1 pelas equipas) e desde então a F1 tem atraído interesse de novos investidores e de novas marcas, que olham para o Grande Circo como uma potencial fonte de receita, além de ser uma plataforma de marketing única no mundo. Pela primeira vez, o modelo de negócio das equipas poderá permitir lucro ao fim do ano, algo impensável há pouco tempo. O valor das equipas vai subir em flecha, pois para entrar na F1, será preciso desembolsar 200 milhões só para pertencer ao restrito clube de dez equipas que compõem a grelha atual. Resumindo, as equipas vão gastar menos, ganhar mais e a sua valorização está praticamente garantida. Tudo isto deverá permitir uma F1 mais apetecível, mais competitiva e proporcionar um espetáculo ainda melhor. A segunda parte das mudanças são os novos regulamentos técnicos que estão a chegar.
Porquê mudar?
O grande “problema” da F1 é que os engenheiros das equipas fazem um trabalho tremendo a encontrar soluções que permitam extrair mais performance dos carros. Uma das formas mais “simples” de o fazer é graças à aerodinâmica. O mundo dos fluxos laminares, dos vórtices e das pressões negativas evolui a um ritmo tremendo e as equipas encontram sempre forma de otimizar o apoio aerodinâmico que os carros produzem. Mas isso cria ar sujo que prejudica as corridas. Os carros são pensados para “cortar” o ar de certa forma e direcionar o ar para certas zonas do carro. Mas quando se persegue um adversário, o ar que se encontra pela frente está “desorganizado” e com isso as asas e derivas não conseguem ser tão eficazes. O resultado é uma inevitável perda de performance (os carros deslizam mais, ficam mais difíceis de controlar, essa instabilidade faz os pneus deslizarem no asfalto, provocando um sobreaquecimento que diminui a longevidade e aderência das borrachas). Brawn e a sua equipa, liderada por Pat Symonds tiveram de encontrar um compromisso que permitisse diminuir o ar sujo provocado pelos carros, num conceito novo, mas que se adequasse à nova realidade de gastos controlados. E assim surgiram os novos regulamentos, primeiramente pensados para 2021, mas por força da pandemia, adiados para 2022.
O que nos trazem esses novos regulamentos?
Se tivermos de resumir os novos regulamentos, podemos dizer que se trata de uma F1 simplificada. A nova aerodinâmica foi pensada para promover corridas melhores e mais lutas em pista. Isso implicou uma simplificação da aerodinâmica dos carros e daí o aspeto mais “limpo” do protótipo apresentado, com muito menos asas e derivas. A asa dianteira, peça fundamental na aerodinâmica (direciona o ar para as zonas pretendidas, além de criar apoio aerodinâmico) foi simplificada, as superfícies do carro são agora desprovidas de pequenas asas de controlo de fluxo de ar. Para compensar, os carros terão fundos planos mais trabalhados e complexos, pensados para aproveitar o “efeito solo” que foi introduzido nos anos 70 por Colin Chapman (acelerar o ar por baixo do carro graças ao efeito Venturi, criando uma pressão negativa e com isso colar o carro ao chão) e que produz muito menos ar sujo.
Segundo as simulações feitas, os carros atuais perdem entre 35% a 47% de apoio aerodinâmico, dependendo da distância a que estão do carro da frente. Com os novos carros, as perdas passaram de 4% a 18%. Era esperada alguma perda de performance nos novos carros, mas os últimos dados das equipas revelaram que as diferenças não serão assim tão vincadas e algumas simulações até mostram que os carros deste ano podem ser tão rápidos quanto os carros do ano passado. Pelo que, ao nível dos tempos por volta, não deveremos diferenças significativas… teoricamente.
Túneis de vento com acesso limitado
Outra forma encontrada para equilibrar a competição foi reduzir o tempo no túnel de vento e a quantidade de simulações CFD que cada equipa faz. Quanto melhor o seu resultado final, menor o tempo disponível. O trabalho de simulação foi restringido de modo a que as equipas com maiores recursos não cavem um fosso ainda maior. Por exemplo, a Mercedes (que tem terminado sempre em primeiro lugar) passou a poder utilizar apenas 90% desses recursos, o que equivale dizer que sendo autorizadas pela FIA 400 horas no total, distribuídas em 320 sessões, menos 40 horas de túnel de vento, disponível. Por cada posição mais atrás, a percentagem aumenta 2.5%, o que significa que a Williams, última classificada do Mundial de 2020, pôde utilizar 112.5% do tempo estipulado. Esta escala vai diminuindo para quem está mais acima na tabela e crescendo para a segunda metade, sendo que para lá de 2022, o melhor construtor terá apenas 70% de túnel de vento, com as diferenças a passarem para 5%. Se o trabalho for bem feito por parte das equipas mais pequenas, mais tempo de túnel de vento significará mais ‘fine tuning’ da aerodinâmica dos seus monolugares e isso vai ter que se refletir em pista.
“Sapatos”novos
Outra das grandes mudanças para este ano é o uso de pneus de 18 polegadas. Esta era já uma exigência da Pirelli há muito pois, comercialmente, as rodas de 13 polegadas não são usadas no dia a dia. Assim, com rodas de 18 polegadas, a F1 aproxima-se do que é usado nos carros de estrada. Isso implica mudanças profundas na forma como os sistemas de suspensão funcionam e se antes, muito do amortecimento era feito pelos pneus, agora as suspensões terão mais trabalho. Em teoria, isto resultará em carros com uma direção mais “direta” e a afinação pode até tornar-se menos difícil. No entanto, importa referir que as novas rodas são maiores pelo ainda há “muita borracha” nas paredes laterais dos pneus (mais do que nas habituais rodas de 18 polegadas), o que facilitou um pouco a tarefa aos engenheiros. As “tampas” nas rodas estão de volta (como efeitos aerodinâmicos e poderão ser usados com iluminação específica para dar informações durante a corrida) e teremos uma pequena asa por cima de cada uma das rodas dianteiras para controlo de ar sujo provocado pelos pneus.
Ao nível do tamanho dos carros, não veremos grandes mudanças. Segundo os regulamentos, a distância entre os dois eixos não deve ser superior a 3.600 milímetros. A Mercedes tem fabricado o carro mais longo da grelha e terá de fazer uma redução de “apenas” 120 mm à sua distância entre eixos, enquanto a maioria das equipas terá de fazer uma redução de 100mm ou menos. A largura do veículo, 2.000 milímetros, não se alterou. A altura do veículo aumentou de 950 para 960 milímetros pelo que ao nível do tamanho, à primeira vista, não teremos grandes diferenças. O peso mínimo subiu de 752 para 790 kg, isto para permitir que novos sistemas de segurança fossem implementados. A segurança voltou a ser um aspeto fundamental no desenho dos novos carros e o chassis precisa agora de absorver 48% e 15% mais energia respetivamente nos impactos à frente e atrás, e os testes serão mais rigorosos ainda, para garantir a resistência do chassis.
Unidades motrizes “iguais” até 2025
As Unidades Motrizes não serão alteradas para 2022, mas serão sim congeladas até 2025, altura em que novas unidades (também irão ser simplificadas na próxima regulamentação, mas as negociações ainda decorrem) serão introduzidas. Os V6, turbo-híbridos continuarão a equipar os novos chassis, no entanto, com o congelamento do desenvolvimento dos motores, iremos ver unidades motrizes novas por parte dos quatro construtores (Mercedes, Ferrari, Renault e Honda). A Ferrari já prometeu uma nova unidade motriz revolucionária e já testou no ano passado o novo sistema híbrido, que deu vantagem à Scuderia no último terço da época, face à McLaren. A Renault também apresentará uma nova unidade, com uma arquitetura mais parecida à da unidade Mercedes e a Honda fará o esforço final para dar à Red Bull um motor competitivo, terminando assim a sua participação na F1 (foi recentemente anunciado que a Honda continuará a apoiar a Red Bull até 2025). Há, no entanto, uma novidade transversal a todos os motores. Terão de usar um combustível com 10% de etanol. Os combustíveis atuais têm 5 a 7.5% de biocombustíveis mas a F1 quer aumentar gradualmente essa percentagem até chegar a um combustível 100% sustentável ( até 2030 a F1 quer um combustível 100% sintético e sustentável). Em teoria, o uso deste combustível implica uma redução de 20 CV na potência dos motores, mas os fabricantes já terão soluções para fazer frente a esse decréscimo.
Há ainda muito por descobrir nestes novos regulamentos e só quando os carros forem para a pista, em fevereiro, teremos mais certezas. Este é apenas um resumo do que podemos esperar. A F1 fez 7.500 simulações que levaram 16,5 milhões de “core hours” (horas de processamento informático) a resolver, o que significa que se tivessem sido feitas num portátil Intel i9 quad core de alta gama , seriam necessários 471 anos a partir de agora para obter as soluções. Criaram-se cerca de meio petabyte de dados. Isto é o equivalente a um terço das 10 mil milhões de fotos no Facebook, ou 10 milhões de armários de arquivo de quatro gavetas cheios de documentos. Espera-se que estas mudanças melhorem o espetáculo mas, realisticamente, os primeiros dois anos poderão não ser tão competitivos quanto o esperado e a qualidade das corridas pode até diminuir, face à loucura que vimos em 2021. Mas todos tem muita esperança que dentro de 3 anos tenhamos uma F1 renhida, com várias equipas a lutar por vitórias e títulos.
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