Entrevista a Peter Thul: “O WRC tem de acompanhar o mercado no caminho da sustentabilidade”

Por a 22 Outubro 2021 14:29

Definir o rumo que assegurará o futuro do WRC. É este o desafio que Peter Thul tem pela frente numa era em que o desporto automóvel e a sustentabilidade estreitam laços

Por Nuno Branco

Fotos: WRC, M-Sport, Hyundai, Skoda

Depois de uma longa carreira como navegador, liderou o departamento de comunicação do grupo Volkswagen durante a bem-sucedida passagem da marca alemã pelo WRC. Fundou depois a sua prória empresa de comunicação colaborando com a Skoda Motorsport. Em Junho do ano passado, Peter Thul assumiu o cargo de diretor desportivo da WRC Promoter, a empresa que, desde 2013, gere os direitos comerciais do campeonato do mundo de ralis passando, também, a partir do próximo ano, a estender a sua gestão ao campeonato europeu. Nas costas do alemão, recai a responsabilidade de conciliar os desejos das equipas, dos pilotos e da FIA na definição dos moldes de um desporto ou, se preferirmos, de um negócio que pretende alargar horizontes, atingir outras geografias e chegar a um número maior de espectadores, assumindo-se como a segunda modalidade mais importante entre as que estão sob a tutela da FIA. Durante o recente Rali de Espanha encontrámo-lo no parque de assistências em Salou e desafiámo-lo a partilhar o que no poderá reservar o futuro do WRC…

É legítimo pensarmos que o WRC, no que aos próximos anos diz respeito, depende da sua visão para este desporto. Quer partilhar essa visão?

A definição desse futuro é uma abordagem conjunta, feita com o envolvimento dos construtores e das equipas. Um aspeto fundamental a assegurar é a sustentabilidade deste desporto. Tudo está a mudar, a eletrificação está a chegar e todos temos de estar conscientes de que os ralis terão de se transformar e de acompanhar essa mudança. Começaremos já no próximo ano com a categoria principal do WRC, a Rally 1, que passará a ter carros híbridos plug-in. Na categoria Rally 2, os carros passarão a usar, a partir do próximo ano, combustível sustentável e isso será extensível ao campeonato europeu. É por isso que eu acredito que o futuro dos ralis será risonho. Alguns construtores como a Porsche, por exemplo, estão a trabalhar no combustível sustentável, a Fórmula 1 também o faz, mas no Rali Monte Carlo de 2022, o WRC será a primeira modalidade a usá-lo em competição.

Em que pressupostos foi baseada a decisão de se avançar para a tecnologia híbrida plug-in na categoria principal do WRC?

A decisão resultou de estudos de mercado que revelam que, em 2030, um terço dos carros comprados no mundo inteiro serão híbridos. Outro terço será totalmente elétrico e os restantes serão modelos a combustão que estarão a circular maioritariamente nos países em desenvolvimento. Com esta decisão, queremos também mostrar os benefícios da tecnologia plug-in nos modelos híbridos. Estudos revelam também que uma parte significativa dos utilizadores destes veículos nunca os carregam, transportando assim uma bateria que não é usada. Se inverterem esse hábito, os utilizadores estarão a conduzir uma parte importante do tempo com zero emissões de CO2. Com a adoção da tecnologia híbrida plug-in, o WRC pretende sensibilizar os utilizadores para uma mudança nesse comportamento. Os carros do WRC irão carregar as baterias durante as provas e mostrarão os seus benefícios através da utilização de motorização exclusivamente elétrica nas ligações entre os troços e no trajeto para o parque de assistências. Além disso, o facto de os carros usarem a potência extra da motorização elétrica no arranque para os troços e de terem à sua disposição alguns momentos de reforço de potência, os chamados “boost”, durante as classificativas, irá contribuir para que a tecnologia híbrida se torne “sexy”. O WRC será um importante laboratório para esta tecnologia uma vez que ela será testada nas condições ímpares de dureza que os ralis oferecem, na neve, no gelo, na terra, no asfalto, em todo o tipo de pisos.Deixe-me no entanto frisar que, mais do que olhar isoladamente para a tecnologia híbrida ou para a adoção de combustível sustentável, a nossa estratégia assenta numa abordagem generalizada à pegada ambiental das emissões de CO2. A FIA tem feito um trabalho conjunto com as equipas e com os organizadores nesse sentido. Os geradores a gasóleo deixarão de ser uma realidade sendo substituídos por outras fontes de energia ou passando a consumir biocombstível que mais não é do que combustível feito de lixo ou de resíduos biológicos. Com tudo isto queremos não só mostrar que os ralis têm todas as condições para sobreviver como poderão também criar tendências ou servir de exemplo no desporto automóvel.

Os momentos de “boost” que refere, durante as classificativas, poderão beneficiar o espetáculo?

Penso que tudo o que os novos regulamentos irão trazer no próximo ano poderá adicionar ingredientes ao espetáculo: reduziremos a aerodinâmica, teremos mais componentes mecânicas de forma a reduzir os custos e, assim, a FIA cumprirá o objetivo que assumiu no início deste projeto: os novos carros não serão mais caros do que os atuais. Por outro lado, o espetáculo sairá a ganhar porque, com estas mudanças na aerodinâmica e na mecânica, os pilotos terão de lutar um pouco mais com o carro para o dominar e, além de tudo isto, quem usar de forma mais inteligente a potência extra ao longo dos troços será o piloto mais rápido. Resumindo, os ralis serão mais desafiantes do que até aqui.

Num horizonte de tempo mais alargado, a tecnologia híbrida poderá chegar também aos carros de Rally 2?

É uma questão de custos. A categoria Rally 2 foi feita para as equipas privadas ou para equipas que suportem os importadores locais das marcas e ela deverá continuar a ser de acesso facilitado aos privados. Penso que, a médio prazo, a abordagem baseada na utilização de combustível sustentável é a melhor para esta categoria. Não nos esqueçamos de que o combustível sustentável será uma realidade em alguns mercados e fará parte da estratégia de algumas marcas pelo que, uma eventual transição para a tecnologia plug-in dependerá da forma como evoluir a implantação desta tecnologia no mercado automóvel, assim como a autonomia dos carros. Penso que a discussão não terá um início e um fim, ou seja, serão continuamente avaliadas as alternativas e a forma como o mercado evolui. Lembro, por exemplo, que há ainda outras possíveis soluções a ter em conta como é o caso do hidrogénio, que vem sendo discutido há anos e, portanto, a avaliação das várias opções continuará certamente nos próximos anos.

Um dos objetivos do promotor passará certamente por atrair mais construtores. Como estão a correr as negociações neste capítulo?

Seguramente, esse é um dos nossos objetivos mas, por outro lado, estamos bastante satisfeitos por ter três equipas realmente empenhadas que, mesmo durante o período de pandemia, continuaram a manifestar o seu interesse em continuar neste desporto, ou seja, oferecem estabilidade. Acreditamos que a competitividade da tecnologia híbrida plug-in possa despertar o interesse de outros construtores e, neste momento, concentramos as atenções na Ásia porque há interesse de alguns construtores sobretudo da China mas também do Japão em marcar presença no WRC. Para termos sucesso, temos de provar que a abordagem tecnológica que adotámos é a correta e que, com ela, consolidaremos a posição do WRC como o segundo campeonato mais importante da FIA, no que diz respeito ao valor do mercado, a seguir à indiscutível Fórmula 1. Queria no entanto deixar claro que as negociações com possíveis construtores estão sempre a decorrer. Sofreram algum atraso devido à pandemia pois não tem sido possível viajar para reunir presencialmente com eles e queria também realçar a importância das marcas europeias como é caso da Skoda ou do grupo PSA nas restantes categorias do WRC. A Hyundai também tem feito um trabalho interessante nas versões cliente e,em breve, iremos ter neste capítulo um outro construtor mas ainda não o podemos anunciar.

O que será, na sua opinião, um calendário perfeito para o WRC?

Posso afirmar que iremos ter muito brevemente um rali nos EUA, já em 2023. Estamos muito focados no mercado russo porque é muito importante para os nossos construtores e depois, obviamente, na China, porque é o maior mercado atualmente e com quem temos vindo a conversar durante os últimos anos. Infelizmente, a COVID-19 impediu muitas destas negociações de avançarem mas continuamos focados nesses objetivos estratégicos, não deixando de fora a América do Sul que é também uma região estratégica e um regresso à Austrália. Recordo também que regressámos a África, nomeadamente ao Quénia com o rali Safari que foi um sucesso e, após o cancelamento deste ano, o Japão estará de volta ao calendário no próximo ano. Estamos também a desenvolver um trabalho conjunto com o campeonato europeu de modo a que, se um rali europeu sair do WRC, possa ser integrado no campeonato da europa e também para que alguns ralis daquele campeonato possam evoluir para poderem vir a integrar o WRC.

A aposta em mais ralis fora do continente europeu significa que algumas provas do velho continente serão sacrificadas…

Depois do período conturbado da pandemia, este ano o Mundial já teve 12 provas, no próximo ano terá 13 e no ano seguinte 14. Os ralis da Europa continuarão a ser uma parte importante do campeonato e os novos que se juntarem serão, como referi, maioritariamente de outros continentes.

Qual será o número ideal de provas para o calendário do WRC?

Não existe um número definido como o número ideal. Os construtores têm uma palavra importante nessa definição e o processo de desenhar o calendário é complexo. Se queremos que eles se mantenham no campeonato, temos de lhes perguntar quais são os mercados importantes para si. Depois de ouvidos os construtores, fazemos uma sugestão de calendário e a decisão final cabe à FIA. Estas três partes estão em permanente discussão e sempre que uma delas tem uma ideia, discute-a com as restantes. Para responder à questão, 14 é um bom número e 15 poderá ser, num mundo ideal, um número perfeito.

Podemos voltar a ter um esquema de rotatividade nas provas que compõem o campeonato?

A rotatividade existiu no passado e não foi muito bem sucedida pelo que não sei se será um caminho. O que podemos vir a ter é uma coisa diferente e trata-se de ralis que entram no mundial, como é o caso de Ypres, que entrou este ano com sucesso e que, no ano seguinte, preferem voltar a integrar o europeu, para uma abordagem menos sofisicada, voltando depois, no ano seguinte, ao WRC. No caso da Europa, podemos ter novos ralis que começarão por figurar no Europeu para depois evoluir para o Mundial. O diálogo é permanente e temos de estar constantemente a avaliar, levando em linha de conta os mercados e a conjuntura económica dos países porque não podemos esquecer-nos de que estamos a falar de um negócio.

Tenho de lhe fazer esta pergunta: Quão forte é o Rali de Portugal nesse calendário que está em mutação?

Portugal é um evento tradicional, que tem obviamente de estar em competição com os outros ralis, mas é um rali bem organizado, liderado pelo Carlos Barbosa que tem presença na comissão de ralis e tem uma personalidade muito forte. As pessoas são competentes e o rali é sempre um forte candidato a figurar no calendário, especialmente depois de mudar para o norte, o que lhe deu outro carácter.

No Algarve também era um bom rali mas os troços do norte são mais tradicionais. Fiz o rali três vezes como navegador e nunca o terminei (risos) mas adorava aquela experiência de partir de Lisboa e depois rumar a norte. Foi uma das provas mais bonitas que disputei.

Falemos de visibilidade. Que planos tem o promotor para chegar a mais espectadores e fãs, quer através da TV quer das plataformas digitais?

Temos uma estratégia com um objetivo claro de aumento do número de espectadores. No início do ano, tivemos o Rali do Ártico que teve um share nunca antes visto de 60% na TV. Sei que estamos a falar de um país pequeno mas revela que a TV ainda é uma forma de chegar aos espectadores e, por isso, estamos em contacto com estações de todo o mundo para chegar a mais gente já que isso é muito importante para os construtores justificarem o dinheiro que investem e para as marcas e patrocinadores que apostam no campeonato. Depois, não menos importante, temos o WRC Live que introduziu um conceito verdadeiramente disruptivo com a transmissão em direto de todos os troços de todos os ralis do campeonato e o espectador, através de uma subscrição, pode acompanhar a prova, do primeiro ao último metro, no lugar do navegador. Isto nunca havia sido feito antes. A ‘Power Stage’ de cada rali é transmitida em canal aberto em muitos países. Temos um departamento a negociar direitos televisivos com canais de todo o mundo para que as transmissões sejam uma realidade num número crescente de países. Não paramos e estamos sempre à procura de chegar a mais gente já que é esse o nosso objetivo.

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