Paulo Maria – O pintor de emoções
Paulo Maria é um dos fotógrafos mais conceituados do nosso país e falou ao AutoSport sobre a sua carreira e a sua visão da fotografia.
O desporto motorizado, tal como a vida, é feito de momentos. Mas no nosso dia a dia temos tendência a descurar a importância do momento, vivendo sempre a correr, sem querer perder um segundo, para olhar para o que nos rodeia. Nas corridas, o tempo ganha uma escala diferente e o que normalmente são intervalos de tempo insignificantes passam a ser a diferença entre a vitória e a derrota. São estas frações de segundo que fazem notícia, que ficam para a história e que alguns têm a missão de retratar, usando a palavra, dita ou escrita. Outros tentam um truque mais elaborado, que é congelar o tempo numa imagem.
Pode parecer fácil apontar uma máquina fotográfica e carregar num botão, na esperança de ter conseguido captar o momento certo, mas não é. Porque contar uma história com uma imagem é difícil. Mostrar um movimento numa imagem estática é difícil, tal como é transmitir sensações, emoções… contar ao mundo a vida e a competição através de um pequeno clique exige mestria, profissionalismo, sensibilidade e respeito. São poucos os que realmente fazem da fotografia arte, mas Paulo Maria é sem dúvida um dos melhores. Fotógrafo desde 1993, já retratou grandes momentos do desporto motorizado, trabalhando para o ACP – Automóvel Club de Portugal, para marcas como Citroen Racing, Peugeot Sport, Red Bull, Jaguar, Nissan, Audi, Volkswagen e personalidades como Luís Figo, Sebastien Loeb, Yvan muller, Pedro Lamy, Luís Represas, Rui Veloso, entre outros. É também colaborador permanente da agência fotográfica francesa DPPI e de várias revistas nacionais e internacionais e em 2003, foi distinguido com o título de Honored Member da International Who’Who Historical Society of Professional Management.
Colaborou nos anuários de desporto automóvel (entre 1995 e 1999); no livro “A História do Karting em Portugal 2006 – FPAK”; nos livros editados na sequência do Estoril Open 2006 e 2007; no livro “Volta a Portugal 2007 e 2008”; na obra Cem Anos de Futebol em Portugal 2010; no projeto “José Megre – Como eu vi todos os países do mundo”; RALLY DE PORTUGAL – 50 anos editado pelo ACP em 2017 e em vários outros projetos editoriais como editor e mentor.
Como tudo começou
Um percurso recheado de sucessos e que começou muito cedo, com um interesse muito grande pela fotografia e com uma paixão que cresceu no Rali de Portugal:
“Tudo começa muito novo quando, ainda criança, comecei a interessar-me pela fotografia. Mais do que desporto motorizado, gostava da fotografia, de fotografar tudo o que via, enquadrar a realidade de uma forma especial e os meus pais deram-me uma pequena câmara com a qual comecei. A ligação ao desporto automóvel é muito interessante mas ao mesmo tempo natural. Os meus pais são da região de Arganil, onde ia passar férias e onde a tradição do Rali de Portugal estava muito enraizada. A casa dos meus pais fica integrada na Serra do Açor e mesmo em frente à descida do troço de Arganil e portanto desde muito cedo que fazíamos a romaria para assistir à passagem do Rali de Portugal. Em 1991 foi a minha primeira vez ao vivo, debaixo de chuva muito intensa, ano em que Carlos Sainz ganhou, com o Toyota Celica, com uma meteorologia deplorável. Mas foi aí que lhe ganhei o gosto. Depois, há um passo muito importante que faz a ponte. O senhor da loja onde eu ia revelar as minhas fotos na altura, é sogro de uma pessoa ligada ao desporto motorizado, o Joaquim Capelo, que por sua vez tinha sido copiloto do Jorge Cunha, quando corria no Troféu 5, com o Renault 5 Turbo. Conheci o Joaquim Capelo, que me apresentou ao Jorge Cunha e foi com ele que fiz a minha estreia profissional, digamos assim. O Jorge confiou em mim e em 1993, ainda com 17 anos, estava a fotografar a Baja de Portalegre de uma forma mais profissional. Daí para a frente foi um percurso mais profissional e mais dedicado.”
A fotografia tornou-se, além de uma paixão, no veículo que permitiu a Paulo Maria concretizar alguns sonhos e, apesar de estar sempre ligar ao desporto motorizado, o gosto pela fotografia e pela aventura sobrepõe-se ao gosto pela competição:
“Sempre tive um espírito aventureiro e sempre devorei revistas, não só de automóveis, mas de aventuras, de viagens de expedições… Recordo-me das revistas ligadas ao TT que relatavam as expedições do José Megre e do Clube Aventura e interiormente havia o desejo de participar em algo do género, talvez não de forma tão intrincada, como fotógrafo, mas sim participar numa dessas aventuras. A Fotografia ajudou bastante a ir atrás desse sonho e tornou tudo mais fácil. Fui desenvolvendo o gosto pela fotografia de uma forma geral, pela sua história, pelas técnicas fotográficas e isso depois foi aplicado ao desporto motorizado. Claro que olho para trás e vejo o que já foi feito, mas ainda há tanto a explorar e aprender que a minha vontade de continuar a carimbar o passaporte é muito grande. “
Trabalho minucioso em busca do momento perfeito
Os grandes profissionais fazem-nos acreditar que o seu trabalho é feito com uma simplicidade tremenda, mas essa simplicidade acontece graças a uma preparação pormenorizada:
“Cada fim de semana passado numa prova é uma fonte de descoberta, de exploração. Sinto-me um bocadinho como um garimpeiro à procura do ouro, que neste caso é a imagem ideal. É um percurso desafiante, que exige muita dedicação, muito empenho e muita concentração, além de muita técnica para podermos estar completamente à vontade no meio. A preparação é exigente, minuciosa e cada vez mais feita atempadamente. Nunca parto para uma prova ou outro tipo de evento, sem conhecimento dos detalhes. Trata-se de conhecer tudo o que é possível antes do evento para que nada falhe, para que haja sempre escapatórias e os imponderáveis sejam reduzidos ao mínimo. Tudo começa com o plano logístico que envolve viagem, alojamento, a forma de chegar e depois o plano no terreno, onde entendo como me poderei movimentar, não só jogando com os horários, mas também com os acessos para chegar aos sítios onde quero estar a determinada hora. Tudo isso é feito de forma prévia e mentalmente. Confesso que metade das minhas fotos já vão pensadas e já vou com o ensejo de fazer determinada imagem, portanto é uma questão de chegar e fazer da melhor forma possível ou adaptar em função das circunstâncias. Mas cada vez mais minucioso, cada vez mais atempado.”
Pode pensar-se que as melhores imagens são fruto do inesperado, mas o momento certo é estudado e procurado:
“O plano vai acabar por fazer o momento. Tudo o que surge inesperadamente e que as pessoas têm vontade de ver, que são os momentos de maior adrenalina, ou os acidentes são, feliz ou infelizmente, os chamados bónus. Mas não estou à espera desses bónus, ainda que saiba que podem acontecer. Mas cada vez mais me convenço que, apesar da nossa missão ser congelar um instante, se não estivermos preparados, se não planearmos, se não tivermos a técnica, o instante passa-nos à frente dos olhos e se estivermos a ver o instante é porque não o estamos a fotografar. A preparação que temos e o prever que algo pode acontecer ali é fundamental. O instante tem de ser planeado e esse planeamento ocorre da experiência profissional, mas não só. Se for ver uma prova onde nunca estive antes eu quero ver tudo o que já foi feito anteriormente nessa prova em termos de imagem, vídeo, para perceber onde as coisas podem ser mais interessantes em termos de enquadramento, da dinâmica da ação e por aí fora.”
“Fazemos parte do momento e que a nossa missão é preservá-lo no tempo”
A responsabilidade de um fotógrafo de topo é grande pois a eles é dada a missão de retratar os melhores momentos que serão montras dessas provas, usadas para os mais variados fins. Mas Paulo Maria não sente pressão extra com essa responsabilidade:
“A pressão, para mim, só existe dentro dos pneus. Não tem que existir pressão, mas sim uma adrenalina controlada, o sentido da responsabilidade e o profissionalismo. Infelizmente continuo a ver muitos pseudo-fotógrafos, que vão a uma prova e não tem qualquer sentido de responsabilidade. São os famosos bate-chapas e são porque não fazem pintura, só fazem mesmo o bate-chapa. Temos de ter a responsabilidade e entender que fazemos parte do momento e que a nossa missão é preservá-lo no tempo. É essa missão que me faz continuar a fotografar, abraçar novos desafios e novos projetos.”
Ciente da importância do seu trabalho, vê com alguma tristeza a maior abertura das provas para receber profissionais menos zelosos:
“Desde que a fotografia passou para o digital, tudo se tornou mais fácil e acessível e desde que o desporto motorizado em Portugal se tornou menos profissional em determinadas áreas, ou mais banal digamos assim, tornando-se fonte de diversão para quem quer ser piloto ou fotógrafo e quer estar envolvido neste meio que devia ser mais restrito, que a qualidade se perdeu. Como em tudo, há honrosas exceções, que eu conheço e com quem tenho o privilégio de trabalhar. Vejo que ainda há pessoas que têm essa sensibilidade que me move todos os dias e que me moveu no início. Mas vejo também muito outros que tratam o desporto automóvel de forma deplorável, que não o respeitam e que apenas querem fazer parte deste universo. Fotógrafos e fotojornalistas que não merecem esse título e contaminam este meio, colocando a imagem e as condições de seguranças em causa. Deveria haver um controlo enorme por parte dos Press Officers e dos responsáveis pela acreditação, uma filtragem maior, quando sabemos perfeitamente que a única coisa que alguns fazem é um álbum ranhoso nas redes sociais com meia dúzia de fotografias que não transmitem rigorosamente nada e que não trazem nenhuma mais valia.
Momentos felizes e de tensão que ficam para sempre
Com uma carreira já longa, escolher o momento mais feliz não é tarefa fácil, mas há alguns que se destacam:
“É muito difícil escolher o momento mais feliz, mas posso generalizar um pouco e dizer que há uma experiência em termos de reportagem que me marcou profundamente, que foi ter sido o fotógrafo do Camel Trophy, em que fiz o Tierra del Fuego, acompanhando a equipa portuguesa, espanhola e a das Canárias. Isso permitiu-me não só conhecer aquela região mas ter uma experiência única e essa vou guardá-la para sempre.
Eu gosto muito dos momentos de celebração, dos verdadeiros momentos de apoteose, assim como gosto muito dos momentos do sentimento, em que as emoções que estão à flor da pele. Por isso, mais do que carros em pista, gosto mais do fator humano quando se envolve com o desporto motorizado. Está sempre implícito, mas muitas vezes não está visível porque vai dentro da viatura e só conseguimos fazer o paralelo da emoção pela prestação desportiva do piloto, no entanto, quando ele termina a prova e celebra a vitória ou fica a lamentar a derrota, esses sim são os momento que tento retratar de uma forma nobre e digna, seja a vitória ou a derrota porque fazem parte do jogo.”
Paulo Maria também teve de fotografar momentos mais difíceis, com carga emocional mais pesada, mas tentou sempre manter o respeito pelo momento e pelos envolvidos:
“Os momentos difíceis são todos aqueles que envolvem o drama, o acidente, a incerteza. Nós sabemos que isto é arriscado, que o desporto automóvel é perigoso e que a vida é exatamente isso, um limiar muitas vezes no fio da navalha. Não queremos que isso aconteça nunca e esses são verdadeiramente os momentos mais difíceis, quando temos de ter a consciência, o respeito e a abordagem correta ao drama para que não se vulgarize ou ponha em causa a imagem da pessoa. É difícil fazer isso e o primeiro instinto é retratar tudo, mas depois há que filtrar e não deixar sair as imagens todas quando sentimos que não fazem parte da boa imagem que queremos transmitir, do nosso próprio percurso, da nossa própria essência e razão pela qual estamos ali. Lembro um momento em Abu Dhabi num incidente entre o Andreas Bakkerud e o Timmy Hansen. A minha ligação com a família Hansen é grande, portanto houve um momento muito intenso pois a pancada foi muito forte, o Timmy sofreu imenso com isso. Essa foi a imagem que eu tive de retratar e ao mesmo tempo por ser amigo pessoal prestar algum apoio, o que tudo junto não foi fácil, mas conseguimos retratar o momento, honrando o sofrimento dos pilotos.”
Uma carreira longa e com momentos intensos permitem sempre ligações fortes com os intervenientes. Quando Paulo Maria vai para uma prova, deixa a sua família para ir ter com a sua segunda família, pessoas que passam a fazer parte integrante da sua vida e que admira:
“Há vários pilotos com quem privei que admiro e que têm um valor enorme em tudo o que fazem. Entre os nacionais, diria Pedro Couceiro, com quem fiz a minha primeira deslocação ao estrangeiro, para fotografar os testes de inverno em Nurburgring do Pedro, que corria nesse tempo na equipa do Dr. Helmut Marko, na Fórmula 3 alemã. São essas ligações que acabam por se criar ao longo do tempo. Lembro-me também da primeira vez que estive em Le Mans e a forma como a família Breyner confiou no meu trabalho e como os três irmãos, Pedro, Manuel e Tomás, me acolheram, assim como os restantes elementos. Lembro-me de alguns momentos que passei com o Pedro Lamy em algumas provas de resistência, em que o Pai Álvaro vinha comigo à pista porque era a única forma de ver a pista. Da forma como acompanhei o Ni Amorim quando corria nos GT. A nível internacional, atualmente, posso dizer que a família Hansen são amigos do coração e temos muitos gostos em comum além das corridas e tenho uma adoração por aquela família, pela paixão com que vivem as corridas e não só. Há também o Yvan Muller e a família, tal como o Yann Ehrlacher.”
Media Safety Book – Uma referência mundial
A segurança é um fator primordial no desporto motorizado, um trabalho complexo que exige minúcia. Paulo Maria desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do Media Safety Book, com o ACP, que se tornou referência mundial:
“Em 2013 eu já estava ligado ao ACP e me foi confiada a missão de continuar o trabalho desenvolvido de criar um Media Safety Book, uma área que a FIA estava a desenvolver e que queria que se padronizasse. Para mim foi relativamente fácil e simples de abraçar este projeto porque este é o meu meio e eu sabia exatamente as suas lacunas e vicissitudes.A partir de 2013 comecei a desenvolver o Media Safety Book que trouxe para o Rali de Portugal mais valias e inovações técnicas e tecnológicas, seja pela introdução dos QR Codes, dos vídeos de apoio, da orientação solar… cada zona selecionada para captura de imagens tem cerca de 26 informações associadas, pontos úteis desde o como chegar, aos próprios horários e onde podemos estar e não estar, entre muitos outros. É um trabalho técnico, algo complexo, mas que é no fundo aquilo que eu já faço normalmente na minha planificação. Em 2015 este documento foi considerado modelo a seguir pela FIA que o partilhou com os Press Officers de todas as organizações para que se padronizasse um pouco. Muitos deles evoluíram os seus próprios documentos e depois ao longo do tempo fui merecendo a confiança do promotor do WRC, que me convidou para integrar e formar as equipas dos novos ralis que passaram a integrar o calendário, como o caso da Turquia e do Chile, onde fui desenvolver documento assim como outros, como os vídeos onboard para os pilotos pudessem fazer a ambientação aos troços antes da prova, algo que também faço para o ACP e atualmente procuramos tentar evoluir e se mantenha nos mais altos padrões da FIA.”
A ligação ao AutoSport
Paulo Maria é também um grande amigo do AutoSport, com quem já colabora há muito tempo, numa ligação profissional e afetiva também que já tem muitos anos:
“A ligação com o AutoSport é uma ligação de coração, de paixão e acima de tudo profissional ao mais alto nível. O AutoSport permitiu-me sempre ser a montra daquilo que fui fazendo, em conjunto realizamos trabalhos muito giros e espero que alguns possam ser reeditados no futuro. Começou com colaborações pontuais de reportagens. Depois, quando dei o salto e criei a Interslide havia franjas de mercado que não estavam preenchidas e então a minha ligação começou com o Karting e foi por aí que tudo começou e foi se consolidando. Há projetos muito engraçados que me lembro que mereceram a confiança do eterno diretor Rui Freire, do nosso chefe de redação José Ribeiro e depois Rui Pelejão, o José Luís Abreu que acompanhou sempre tudo isto e que no início ia buscar os rolos para revelar ao aeroporto ou a estação de camionagem. O José Luís tem um valor enorme aí dentro e toda essa equipa que ainda hoje resiste e subsiste num meio por vezes tão hostil e ingrato como é o do motorsport.”
Quanto à foto que Paulo Maria ainda quer tirar… há algumas pensadas, mas mais do que a foto ideal, é a busca incessante e o desafio que motivam:
“Mais do que pensar na foto ideal, vou pensando, passo a passo, sempre olhando para a próxima, como a imagem ou uma das imagens que possam ficar para a história visual daquela competição. Não há apenas uma que eu queira tirar, há sim a vontade de continuar a retratar, fotografar todas as emoções e poder fazer com que cada uma das minhas imagens transmita algo, quer seja o som, ou o calor, ou a adrenalina e transportar quem a vê para o local onde ela aconteceu. “
Paulo Maria não é apenas um fotógrafo de renome internacional. É um pintor de emoções, um mágico que a cada clique faz um truque ao alcance de poucos… congelar o momento, ao mesmo tempo que lhe dá vida. É graças ao seu trabalho e de outros fotógrafos de qualidade que o nosso desporto ganha cor e sentido. Num mundo onde a velocidade é palavra de ordem, parar o tempo para mostrar uma beleza tantas vezes incompreendida merecerá sempre o nosso respeito. Um dos melhores na sua arte.