Há vida para os motores a combustão no desporto motorizado
Pela retórica que temos assistido nos últimos anos, os motores a combustão têm os dias contados nas estradas e nas pistas, para dar lugar às unidades híbridas, elétricas ou a hidrogénio. Contudo, o destino dos motores que nos habituamos a deliciar poderá ainda não ser o museu.
A Fórmula 1, que procura atingir a neutralidade carbónica em 2030, lidera este caminho, defendendo o uso de sistemas de recuperação de energia e combustíveis sustentáveis avançados. É no sucesso da Fórmula 1 em atingir esta meta que depende grande parte do automobilismo mundial para não ser forçosamente colocado à margem de uma sociedade cada vez mais intolerante e sensível às questões ambientais, e que provavelmente não sabe que a pegada carbónica de um automóvel elétrico é semelhante, ou até maior, à de um movido a combustíveis renováveis.
Os sistemas híbridos ou célula de combustível (hidrogénio) são a curto prazo inacessíveis ao desporto de massas, enquanto os carros elétricos, além de complexos, pecam ainda pela autonomia, apesar deste ser um obstáculo que deverá ser rapidamente ultrapassado. Já os biocombustíveis têm no seu custo atual o maior entrave, mas permitem manter a base dos sistemas de combustão atual e até o som do roncar dos motores, uma das críticas principais dirigidas às corridas com carros elétricos pelos adeptos mais conservadores.
Paddy Lowe, o antigo Diretor Técnico da McLaren, Mercedes e Williams, que recentemente fundou a empresa Zero Petroleum, que procura introduzir métodos sustentáveis na produção de combustíveis sintéticos, afirmou no fórum das futuras energias do Autosport International que os “e-fuels não pretendem tirar o lugar à eletrificação. precisamos de todas as soluções. Há lugares onde a eletrificação é simples e a forma mais eficiente de energia. Mas há soluções onde simplesmente não podes usar a electrificação”.
Existem três gerações de biocombustíveis, sendo que a primeira, amplamente desenvolvida a partir de culturas especificamente para criar combustível, não é sustentável e levanta sérias questões éticas, tornando a segunda e a terceira gerações as prediletas. A segunda passa pela extração de etanol de resíduos e biomassa para produzir hidrocarbonetos renováveis, enquanto a terceira geração – conhecida como “e-fuels” – recorre ao carbono presente na atmosfera para sintetizar petróleo e permitem um circuito fechado que não acarreta um aumento de dióxido de carbono para a atmosfera.
Os biocombustíveis estão já presentes na Fórmula 1, pois a regulamentação de 2020 e 2021 obriga ao uso de “um mínimo de 5,75% de combustíveis deve ser composto por bio-componentes”, com este valor a aumentar em 10% quando a próxima regulamentação entrar em vigor em 2022. “O objetivo é que este número chegue aos 100%, provisoriamente antes de 2023. “Claro que este é um grande desenvolvimento e antes das capacidades de produção, portanto acreditámos que será implementada na Fórmula 1 primeiro e depois noutros campeonatos”, explica Gilles Simon, o Delegado Técnico da FIA.
A organização da WTCR anunciou que os carros da WTCR serão alimentados pela primeira vez esta temporada por uma gasolina especial com 15% de componentes renováveis. Estes componentes não-fósseis são derivados do bioetanol produzido através da celulose e biomassa lenhosa, assim como de combustível bio-sintético (totalmente renovável). “A nomeação da P1 Racing Fuels como fornecedor oficial de combustíveis da WTCR é um importante primeiro passo em direção ao uso de um combustível 100% sustentável no campeonato, como delineado no roteiro de implementação que temos definido para a introdução dos biocombustíveis na WTCR”, disse na altura Alan Gow, o presidente da Comissão de Carros de Turismo da FIA.
A presença de biocombustíveis no desporto não é novidade, como relembra o engenheiro Duarte Alves (ex-Barwell Motorsport): “já em 2006, em Inglaterra, corríamos com um Aston Martin DBRS9 que usava E85 (85% de etanol). E em 2007, quando estive nos EUA, com um Aston Martin Vantage GT2, este também usava E85. No entanto, obrigava-nos a ter um depósito de combustível muito maior e a utilizar pressões mais altas no sistema de injeção. Julgo que, em termos de balanço ‘ecológico’, era complicado, pois utilizava 30% mais de combustível em termos de volume. Na altura, não pegou porque a tecnologia ainda estava nos seus primórdios e os custos que implicava não a justificavam”.
Tecnicamente não é assim tão linear a substituição dos componentes dos combustíveis fósseis por equivalentes sintéticos, mas as empresas do ramo têm trabalhado em projetos para serem implementados nos atuais motores de ignição comandada sem que sejam necessárias alterações de hardware ou da calibração. Esta é uma evolução, pois as primeiras gerações de biocombustíveis requeriam muitas vezes significantes modificações nos motores. Todavia, é necessária uma quantidade significativa de energia para processar os combustíveis sintéticos e atualmente não há muitas unidades preparadas para o fazer, pois requer localizações onde existam energias renováveis em abundância, o que os torna mais caros do que os combustíveis fósseis.
Alessandro Ferrari, diretor técnico da P1 Racing Fuels, esclarece que “ao contrário da Fórmula 1, os requisitos dos combustíveis para a WTCR ou um carro de ralis de toposão muito próximos de um carro de produção moderno. Os combustíveis que concebemos para essas disciplinas podem ser usados num normal carro de estrada. Levar os combustíveis renováveis do automobilismo para os milhões de carros de estrada não seria assim tão simples, em termos comerciais, mas a tecnologia já existe. Está aqui hoje, só precisamos de a impulsionar”.
Infelizmente, para as marcas o desporto com motores a gasolina passou a ser prejudicial em termos de imagem, para além de não surfar a onda dos gigantes investimentos realizados na electromobilidade. Contudo, em Dezembro, a Porsche confirmou que vai investir 24 milhões de euros na produção de “e-fuels”, esperando que o primeiro combustível a sair da unidade fabril construída no Chile, com a ajuda da Siemens, esteja pronto a usar já em 2022. Se totalmente implementada, a gasolina sintética poderá ajudar a Porsche a economizar milhões de euros em multas da União Europeia relacionadas com as metas das alterações climáticas.
A Porsche não é a primeira marca a comprometer-se com os “e-fuels”. Em 2015, a Audi disse que iria expandir a produção de um combustível diesel sintético sustentável após a produção do seu primeiro lote. Já este ano, no coração do maior mercado automóvel do mundo, cientistas chineses disseram que criaram combustível sintético literalmente do nada, usando a mudança de temperatura ambiente ao longo de um dia para gerar eletricidade sustentável, que pode então ser usada para produzir metanol, o que poderá ser muito interessante para a vibrante indústria automóvel local.
“Temos que ser realistas, porque temos que ser progressivos, pois a indústria também está a evoluir. Haverá mais e mais destes combustíveis disponíveis, até para as corridas da base, que é o caminho que temos que seguir se quisermos manter a sustentabilidade do nosso desporto”, afirma Gilles Simon. “É um parâmetro muito importante para ser aceite como parte da sociedade”.
Com a grande parte dos adeptos do seu lado e fortes argumentos para utilizar, as entidades que dirigem o desporto e os próprios construtores têm que perder o medo de comunicar que há vida para além da electromobilidade…