» Textos: Martin Holmes, In Memoriam, com João Costa e Nuno Branco

» Fotos: Martin Holmes Rallying e Arquivo Autosport

 

Memórias de Arganil: Dar à luz ao ver o Rali de Portugal


A pequena vila de Arganil (população a rondar as 12.000 pessoas), situada no centro-este de Portugal, tornou-se mundialmente conhecida nos anos 80 por causa dos ralis, com o Mundial da especialidade a deslocar-se anualmente à serras circundantes à vila, mas a verdade é que há muito é um local com grande importância história. Diz-se que ‘Argos’ foi fundada pelos romanos, outros referem que foram os lusitanos da antiga ‘Aussasia’.

História à parte, a verdade é que as colinas por trás da vila há muito são um fabuloso parque de diversões para pilotos de ralis, já que as estradas são enormemente excitantes, tanto para os pilotos, como para os espectadores.

Em 2019, 18 anos depois da última vez que os escapes dos carros se fizeram ouvir naquelas serras, Arganil voltou novamente à vida. Poucas das lendas do Rali de Portugal não têm alguma ligação às colinas de Arganil.

Alguns dos maiores engarrafamentos de trânsito de espectadores na história do Mundial de Ralis foram gravados em Arganil, e também alguns dos maiores mistérios do desporto.

Há muito tempo, as circunstâncias por trás do aparente ‘jogo de mãos’ atrás de portas fechadas na cidade, que levaram à exclusão de Tony Fall do Rally TAP 1969, nunca foram conhecidas. A velocidade incrível de Walter Rohrl em 1980, quando não só ganhou o longo troço de Arganil com quase quatro minutos de vantagem para o segundo classificado, tornando-se Campeão do Mundo.

Durante muitos anos, o mistério das colinas foi agravado pelos organizadores, que se recusavam resolutamente a fazer mapas das estradas. Isto fez de Arganil um mistério irresistível para os estrangeiros. Antes que o Instituto Geográfico nacional fizesse mapas a mostrar as estradas em detalhe, havia apenas uma coisa a fazer, fazer os nossos próprios mapas. Trabalhando a partir de roadbooks, era surpreendentemente fácil fazer planos diagramáticos das estradas, mas os detalhes das estradas de acesso aos troços, nunca eram revelados. Nenhum estrangeiro sabia nada sobre essas estradas.

Um dia, eu pude descobrir através do Engenheiro Luis Salles Grade, que também foi Diretor de Prova do Rali de Portugal, num lounge de aeroporto do outro lado do mundo. Depois de uma longa espera pelo nosso vôo atrasado, ele finalmente disse-me onde essa informação estava armazenada. Era o Corpo de Bombeiros que tinha os mapas. Os bombeiros em Portugal servem também como serviços de emergência em geral, e são pessoas que sabem mais sobre o país do que ninguém. Mais tarde, Sales Grade percebeu com horror que tinha contado a um estrangeiro o segredo da vida portuguesa.

Fez-me prometer uma coisa. Nunca, mas nunca, me aproximaria dos bombeiros de Arganil para me ajudar no meu trabalho. Nunca me poderei aproximar deles…

A primeira vez que conheci José Carlos Macedo, foi numa manhã, nas colinas por trás de Arganil, quando o seu Renault Clio Williams fez uma curva, no sentido oposto ao do traçado do rali, vindo do lado errado da estrada, e bateu no meu Daihatsu com a tração às quatro rodas, de frente, quando estávamos a fazer fotos de reconhecimentos do rali. Ele estava com pressa para rever as suas notas no tempo limitado que tinha disponível nos dias anteriores ao rali, e eu estava impaciente porque precisava terminar de rever os meus mapas da região. A minha primeira reação foi querer deixá-lo, e ao seu co-piloto, Miguel Borges ali mesmo, no meio da serra, com o seu carro de treinos batido, mas acabámos por levá-los até Arganil, para junto da sua equipa de assistência. Conduzi pela estrada mais rápida através do labirinto de estradas de montanha de volta para a vila e Macedo direcionou-me para o lugar onde sua equipa estava à espera. Entrámos num pátio imponente: “É o quartel dos bombeiros, pensei que até tu soubesses disso”, foi tudo o que ele me disse. Ele não só me custou muito tempo naquela manhã, como também me convenceu a quebrar minha promessa solene para o Luis Salles Grade.

O quartel de bombeiros sempre foi o centro do mistério. As coisas pareciam acontecer ali o tempo todo. François Delecour forçou os mecânicos da Ford a trabalhar até muito tarde, numa noite, após um acidente em testes pré-rali. Às 11 horas da noite, os mecânicos começaram a ficar cansados e a pedir comida. Mas em Arganil tudo fechava às nove. Eventualmente, uma velha viúva, cujo grande prazer na vida era fazer rissóis, concordou em ajudar. Ela prontamente trouxe uma enormidade de rissóis para o quartel dos bombeiros, em intervalos regulares, onde os desesperados ingleses tentavam reparar os destroços que o piloto francês tinha causado!

Em 1999 tive a oportunidade de conhecer o homem que ‘dominava’ Arganil. Eduardo Ventura era o ‘Mr. Fix-It’ da cidade, dono dos hotéis e lojas, e mais importante, chefe das instalações locais do Corpo de Bombeiros. Ele era conhecido como o ‘Comandante’. “Na verdade, acho que controlo a maior parte das coisas na região, não apenas Arganil em si!” Nunca, no entanto, controlava o convento, mas sabia muito sobre o que se passava lá. Uma noite, Michele Mouton estava na cidade, e acho que bebeu demais. Ela achou que seria bom rezar ao padroeiro da cidade, São Goldrofe, para que tivesse sorte no rali.

E ela continuou a ganhar…” O convento serve agora de anexo a um hotel. Uma noite, liguei para o Didier Auriol, e ele não hesitou em me dizer que estava a dormir num convento…

Conhecemos Ventura num momento de crise. Um helicóptero ‘Écureuil’ (Esquilo) tinha acabado de cair nas colinas, mas depressa se soube que não havia feridos. Perguntámos-lhe se era verdade que a Lancia já tinha trocado carros no pátio do seu quartel dos bombeiros: “Honestamente, não posso dizer, mas é possível”.

Será que não era assustador para os serviços de segurança ter carros a correr nos montes, especialmente à noite? “Um dia encontrámos um carro de rali literalmente empalado, felizmente no sítio certo, com rochas afiadas que perfuraram o chão do carro e penetraram entre a tripulação. Mas o carro estava descansando com todas as quatro rodas do chão. Os espectadores, no entanto, eram a maior preocupação. Uma vez encontrámos uma criança que tinha sido deixada no carro de um espectador durante a noite, porque os pais desesperados tinham esquecido onde tinham deixado o carro estacionado.

Outra senhora deu à luz ao ver o rali. Um espectador caiu de um barranco de dez metros, e não pudemos carregar as cordas e escadas de resgate até de manhã”. E as lembranças felizes? “Gostava sempre de organizar um jogo de futebol com os pilotos, e o Carlos Sainz era sempre o primeiro voluntário. Felizmente, Arganil vai agora ser corrido à luz do dia.

Mas Eduardo Ventura não é a única celebridade de Arganil. Muito mais conhecido do que Eduardo Ventura é o ‘gerente local das estradas’, António Pinto dos Santos, que coordenou os planos de testes para todas as equipas do WRC nessa área. Nos seus tempos livres foi piloto de ralis, competindo em algumas provas do WRC até 2000 ao volante de um Renault 4L, e levou a fabulosa decoração das Aldeias do Xisto aos fãs de ralis de todo o mundo, partilhando com eles o espírito aventureiro de Arganil.

Não foi a mesma coisa quando o WRC regressou a Arganil este ano, pois boa parte das antigas estradas que ajudaram a tornar possíveis estes importantes troços na Serra do Açor, já foram asfaltadas, mas os adeptos há muito que ‘rezavam’ pela oportunidade de regressar. Para eles Arganil foi sempre uma autêntica peregrinação e este ano não foi exceção.

Como tudo começou

Não foi de um dia para o outro que Arganil ganhou a sua mística. Provavelmente, muitos dos adeptos já esqueceram nomes como o Mosteiro de Folques, a Casa do PPD, o Voo Livre, mas a verdade é que a atual caravana do WRC revisitou estes locais, o primeiro em ligação, os restantes, em prova especial de classificação. Portanto, de novo Arganil voltou a contribuir para a história do Rali de Portugal.

No início desta história, das serras da Lousã e do Açor, em 1967, Arganil ajudou o jovem Jean Pierre Nicolas (Renault 8 Gordini) a colocar-se na frente da prova, lugar que perdeu já perto do final da prova, em Sintra. No ano seguinte, 1968, nada menos que 44 equipas desistiram na ligação Góis-Arganil.

Em 1969, muita chuva e lama marcaram a prova e Arganil não foi exceção. Tony Fall e Francisco Romãozinho destacaram-se aqui, mas o inglês usou uns pozinhos mágicos proibidos. Chegou ao Estoril com vários minutos de avanço sobre Romãozinho, mas acabou desclassificado por ter chegado ao controlo final com a namorada dentro do Lancia Fulvia HF 1600. reza a história… que a história era, na verdade, diferente. E passou-se para os lados de Arganil…

Em 1970, o troço Pampilhosa-Arganil, com 42 Km de extensão, foi cancelado devido a um incêndio, mas no ano seguinte, finalmente realizou-se uma Prova de Classificação. Chamava-se Arganil-Pampilhosa e tinha 44Km.

Os anos passaram, as histórias continuaram, as versões de Arganil sucederam-se, com vários anos de troços mais curtos, mas em 1975, os concorrentes foram brindados com um troço de 48km, intitulado Arganil-Aldeia das Dez, e que terminava perto da famosa Ponte das Três Entradas, um paraíso para tomar uns banhos no verão.

Em 1977, a Câmara Municipal de Arganil passou a oferecer um prémio monetário ao piloto português que fizesse o melhor tempo no cômputo das duas passagens. Giovanni Salvi, em Ford, foi o piloto contemplado.

Em 1978, HannuMikkola (Ford) venceu Arganil 1 e 2, mas MarkkuAlen (Fiat) levou a luta até Sintra e venceu o rali.

Há 40 anos, em 1979, foi o ano em que mais quilómetros se percorreram nos caminhos pedregosos de Arganil. Duas rondas, percorridas outras tantas vezes e sempre de noite. A juntar à tradicional versão de 43Km, correu-se neste ano uma outra versão, Fajão-Arganil, com 45,5Km, terminando também perto de Folques.

Logicamente, no álbum de memórias da passagem do Rali de Portugal por Arganil, o ano de 1980 tem um capítuclo especial, pois foi neste ano em que no troço de 42 Km, que começava perto de Vale de Maceira e terminava em Folques, na madrugada do dia 7 de Março, um senhor chamado Walter Rohrl completava 33 anos e estava disposto a oferecer uma inesquecível prenda a si próprio. Algumas horas antes, no hotel e antes de adormecer, percorreu mentalmente os 42km de Arganil.

Quando o Fiat 131 se aproximou do início do troço para disputar a primeira passagem, um horrível nevoeiro não permitia ver mais do que 5 metros de distância. Então, o piloto alemão, valendo-se do “reconhecimento virtual” que havia feito no hotel, partiu para o troço disposto a correr todos os riscos para decidir ali o rali a seu favor. Quando o seu navegador Geistdorfer começou a cantar notas, Rohrl apercebeu-se que era impossível seguir qualquer referência visual. Então, decidiu usar um sistema alternativo. Sempre que o seu navegador cantava “curva a 60 metros”, Rohrl contava 1, 2, 3 segundos e virava “às cegas”. Quando ouvia “100 metros”, contava 1,2,3,4,5 segundos e assim sucessivamente. Este método não só lhe permitiu chegar ao final do troço com um tempo de 35m,15s, como ainda ganhou, pasme-se, 3m48s a Waldegaard e 4m40s ao seu companheiro de equipa e principal adversário MarkkuAlen.

Este é um dos capítulos mais famosos da história da passagem do Rali de Portugal por Arganil.

Os anos passavam, as histórias sucediam-se, e em 1983, o ACP quis emprestar ainda mais dificuldade à já temida ronda de Arganil, e aumentou a extensão do troço. No passado, quando as equipas chegavam ao mosteiro de Folques, era sinal de que tinham chegado ao fim do “inferno”, mas desta feita, tinham ainda mais uns bons quilómetros pela frente, em direcção ao Salgueiro, depois subiam os ganchos até ao célebre cruzamento da Selada das Eiras, subiam ao topo da serra e desciam depois os ganchos para o final na Lomba. No total, 56,5Km fizeram desta versão a mais mítica de todas as que ali se disputaram.

Em 2019, os três troços da Lousã, Góis e Arganil, perfizeram juntos 45.57 Km. Em 1983, ainda faltavam mais 11 e uns ‘pozinhos’…

Nos anos seguintes, as fabulosas lutas dos Grupos B, O Audi Quattro em luta com o Lancia 037, os helicópteros a sobrevoar cada km, sem perder de vista os pilotos.

Em 1986, uma desilusão para os milhares de adeptos que preparavam uma deslocação à Serra do Açor, para ver aquela que prometia ser a mais emotiva edição de sempre. O acidente da Lagoa Azul levou a que os pilotos dos Grupos B fossem todos para casa, o que tirou a maior parte da emoção que ali era esperada.

Há muitas mais histórias para contar, todo e qualquer adepto que tenha ido para Arganil em romaria, terá a sua história, até mesmo os que bebiam tanto durante a noite que quando os carros passavam ao raiar do dia, estavam a dormir, perdidos de bêbados…

Há quem lhe chame, “Arganil, a catedral das catedrais…”, e quem por lá passou tantos anos tende a concordar…

Hoje em dia, com as estradas quase todas alcatroadas, é fácil percorrer a maravilhosa Serra do Açor, da Aldeia das Dez ao Fajão, passando pelo inesquecível Piódão. Recomenda-se vivamente!

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