A história do Circuito de Vila do Conde: Pela vontade dos adeptos
Apesar de terem passado mais de duas décadas desde as últimas provas, o legado de Vila do Conde só pode ser comparado a Vila Real e à Boavista, pelo entusiasmo que gerava junto do público e dos pilotos, e nem o facto de nunca ter assumido um cariz internacional lhe retirava popularidade. As corridas acabaram, e será quase impossível regressarem, mas as histórias ficarão para sempre guardadas
Vila do Conde nasceu em 1931, o mesmo ano que Vila Real e a primeira versão da Boavista, inserido na explosão da realização de provas em circuito fechado verificado nesse mesmo ano – só nesse ano fizeram-se oito provas – fruto do grande entusiasmo de indivíduos ligados à indústria e aos poderes civis locais, nomeadamente o então presidente da Câmara, Bento de Jesus Amorim, José Teixeira da Silva e Eduardo Pinto. Formalmente denominado de I Circuito do Ave, a edição de 1931 foi organizada pela Comissão de Iniciativa e Turismo de Vila do Conde, com o apoio logístico da Comissão Desportiva da Secção Regional Norte do ACP.
O traçado era ligeiramente diferente do que o que nos habituamos a conhecer, e media 1876 metros, com a meta junto ao atual Restaurante S. João, na Avenida do Brasil. Apesar das reservas que a imprensa colocava perante este tipo de provas, sempre temendo pela segurança e considerando que o piso poderia ser inadequado – de facto, em Vila Real ainda havia muita terra batida – a primeira edição foi um sucesso desportivo, terminando numa dobradinha dos irmãos Sameiro, com vitória de Roberto em Alfa Romeo 6C 1750, seguido de Gaspar. No entanto, tal como muitos destes circuitos, Vila do Conde foi uma aparição fugaz no meio automobilístico português, fruto das periclitantes condições económicas da época, que impediram que esta empresa tivesse viabilidade financeira para continuar. As restrições na organização de circuitos urbanos por parte do ACP, depois da tragédia de Espinho de 1934, e o dealbar da II Guerra Mundial deixaram Vila do Conde em banho-maria até ao pós-guerra.
Importância numa nova era
A viragem para a década de 50 coincidiu com o arranque de um dos períodos áureos do automobilismo português. O parque automóvel enriquecia-se rapidamente, e o entusiasmo de algumas pessoas com ligação ao ramo automóvel levou à criação de inúmeras marcas artesanais, que utilizavam construíam chassis em torno de motores de diversas marcas, criando assim um dinamismo único no ramo das pequenas cilindradas, em pequena escala à semelhança dos garagistas ingleses – seria precisamente o reputado correspondente da MotorSport, Denis Jenkinson, que estabeleceu essa comparação e elogiou a qualidade da preparação de algumas dessas viaturas.
Com o regresso de Vila Real em 1949 e da Boavista em 1950, não tardou a que os entusiastas da ‘Princesa do Ave’ juntassem forças para organizar de novo uma prova automobilística. Muitos destes homens eram os mesmos dos anos 30, ou tinham ligações a estes, destacando-se novamente a figura do edil local, Bento de Jesus Amorim, e dos empresários Miguel Ferreira, Zacarias Peixoto, Joaquim Ferreira e Eduardo Pinto. Os automóveis regressaram assim em 1951, vinte anos depois da primeira edição, num traçado que ficaria praticamente inalterado até 2003: partida junto ao mar na Avenida do Brasil, virando à direita junto ao Restaurante Mar-à-Vista para a Avenida Sacadura Cabral, seguindo-se nova viragem à direita junto ao jardim para a Avenida Júlio Graça, que levava os pilotos até à marginal numa direita rápida, até à extremamente técnica curva da Seca – defronte da pista, numa pequena extensão de areal, estavam dispostos várias estruturas de madeira/metal e arames para a seca do bacalhau, em pleno apogeu da atividade piscatória desta espécie, também tendo em conta que Vila do Conde sempre teve uma enorme vocação para o mar que remonta a tempos anteriores ao dos próprios Descobrimentos – seguindo-se uma curta reta e nova direita junto ao Castelo, que desembocava na longa reta da meta.
Claro está que Vila do Conde não tinha as especificidades técnicas de Vila Real ou da própria Boavista, mas em contrapartida era um traçado de velocidade pura e bastante curto (2905 metros), tornando-se muito fácil e menos oneroso delimitar a pista e assegurar as devidas condições de segurança. Outra das vantagens era a reduzida urbanização em redor do traçado, não levantando assim problemas sérios com os acessos, como no caso do circuito portuense.
O sucesso da edição de 1951, que teve como vencedor Casimiro de Oliveira (Ferrari 166 MM) levou a que, para o ano seguinte, a comissão organizadora e a Câmara optassem por realizar não um mas três eventos no traçado: o Circuito da Primavera em Abril, o III Circuito de Vila do Conde em Agosto, e o IV Circuito de Vila do Conde em Setembro. Claro está que, por muito que as provas fossem bastante disputadas, tanto entre os carros de Sport com os numerosos Ferrari existente em Portugal e pilotos de enorme gabarito, como entre as populares pequenas cilindradas, o retorno financeiro não justificou tal expansão e as corridas só regressariam em 1955, desta vez com quatro provas condensadas num único fim de semana, com mais uma excelente moldura humana em redor do traçado. A título de curiosidade, a prova de Setembro de 1952 utilizou uma versão mais longa da pista, com um total de 4557 metros, que seguia bordejava a praia até às Caxinas, virando em seguida para o interior da cidade. No entanto, esta versão foi considerada demasiado longa e também mais perigosas devido às curvas naquele bairro piscatório, por isso a ideia não teve seguimento.
Outra ideia que não passou do papel foi a da realização de um evento internacional de longa distância, as Seis Horas de Vila do Conde, que teriam um regulamento inspirado nas 24 Horas de Le Mans. A internacionalização foi desde sempre um sonho dos entusiastas vilacondenses, mas as condições económicas nunca permitiram tais veleidades. Aliás, a este regresso em grande seguiu-se novo interregno até 1959.
Convém mencionar, no entanto, que este interregno não significou o abandono puro e simples do traçado. Na prática, o Estrela e Vigorosa Sport era já um clube extremamente dinâmico na área do desporto automóvel e foi um dos pioneiros na organização e modernização dos ralis, com a criação do Rali da Montanha, e utilizava habitualmente, ao longo das décadas de 50 e 60, o traçado do circuito para a disputa de provas complementares. Também habitual nestas décadas era a utilização do dito percurso para etapas em circuito da Volta a Portugal em Bicicleta, que atraía ainda mais público, dado aquela modalidade ser a única capaz de rivalizar à época com o futebol.
A grande inovação de 1959 foi a constituição de uma estrutura associativa que agregava vários clubes com tradição automobilística na região do Grande Porto, beneficiando do sucesso considerável da Boavista que, recorde-se, tinha recebido pela primeira vez a F1 no ano anterior. Esta coligação de clubes tornou-se conhecida como Secção Automóvel dos Clubes do Norte, e nela teve grande importância o Estrela e Vigorosa Sport. Foi este grupo que, juntamente com o novo presidente da Câmara, Carlos Pinto Ferreira, e o secretário do ACP-Norte, José Guilherme Pacheco, se dedicou à organização do evento em 1959, investindo claramente no melhoramento logístico e da segurança da pista, construindo novas bancadas, vedações, pontes pedonais, etc.
Mais uma vez, o regresso traduziu-se numa enorme adesão de pilotos e público, mas a associação organizadora cometeu um erro crasso no ano seguinte – além do troféu atribuído a cada uma das três provas realizadas (turismo até 1150 cm3, turismo acima de 1150 cm3 e GT/Sport), decidiu atribuir um troféu final de vencedor ao conjunto dos concorrentes mediante um índice de rendimento. O recurso a este tipo de classificação por handicap estava já muito ultrapassado nas provas de pista – sobrevivendo nos ralis até ao final da década – e a sua manutenção para 1961 motivou a ausência de alguns pilotos, apesar de o Campeonato Nacional só incluir mais um circuito, devido aos abandonos definitivos da Boavista e Monsanto, traçado na base aérea de Alverca. A edição de 1961 também coincidiu com a passagem da Volta a Portugal pela cidade, o que desviou em muito as atenções do público e da imprensa. A juntar a esta conjuntura, deu-se a ruptura da associação de clubes, pelo que em 1962 Vila do Conde teve mais um ano em branco. No entanto, esta paragem permitiu o arranque definitivo de Vila do Conde para os níveis de popularidade que manteve até ao seu fim forçado.
Autoridade central
A partir de 1963, era o Estrela e Vigorosa Sport que, com algum apoio logístico do ACP, assumia as rédeas da organização do circuito, em estreita colaboração com a Câmara Municipal e a Comissão Municipal de Turismo. Desde cedo que a aliança entre o turismo e o circuito se manifestou, e com a massificação da mobilidade turística nacional e internacional e o aumento da popularidade das estâncias balneares tornava o Circuito de Vila do Conde (geralmente organizado no pico do Verão) num excelente aliado para a projeção da cidade como destino. A direção de prova passou para as mãos de Carlos Fonseca, que já havia estado fortemente envolvido entre 1959 e 1961, e que foi talvez o nome mais marcante na história desta pista. A edição de 1963 também inaugurou a presença das motos no traçado, contribuindo ainda mais para a diversidade de máquinas capazes de encantar o público, iniciando-se um ciclo crescente de popularidade que teve o seu auge nas décadas de 70 e 80. Se 1964 ficou célebre por uma das melhores provas de motos até então vistas em solo nacional, em 1965 foi a vez dos carros adquirirem destaque, com um dos melhores parques automóveis já vistos e um duelo fantástico entre Achilles de Brito e o promissor Carlos Gaspar.
O parque automóvel nacional estava em clara renovação, e em 1966 criou-se finalmente um Campeonato Nacional de Velocidade, compreendendo os circuitos e as rampas, tornando os ralis em definitivo numa modalidade autónoma (até então, disputava-se apenas um Campeonato Nacional de Condutores). Apesar de se disputar no final de agosto, a edição de 1966 foi marcada por fortes aguaceiros e um nevoeiro denso – a ‘malta’ que faz praia no norte do país está familiarizada com estes contratempos ocasionais, assim como a boa e velha Nortada, ventania essa que tinha a sua quota-parte de impacto nas provas, principalmente de motociclismo, já que a orla marítima estava totalmente desprotegida – causando muitos acidentes e um avultado prejuízo para a organização, mas não foi por isso que a prova foi menos disputada, assistindo-se a duas brilhantes vitórias de António Peixinho, e também à estreia dos monolugares (Fórmula V) no traçado.
No meio de todo este sucesso, começavam a ouvir-se algumas queixas dos pilotos relativamente ao piso empedrado da Avenida Sacadura Cabral, já que a mudança de condições de aderência costumava fazer estragos. Além disso, os pilotos chegavam a alta velocidade à Curva do Mar-à-Vista (ou Curva do Judeu), e não raras vezes demoliam parcialmente o muro da casa da família Clavel, situada no exterior da curva… Com certeza que só o grande entusiasmo desta família pelo desporto motorizado suportava as reconstruções anuais do muro. Outro fator que levantava contestação era a crescente degradação do piso na zona do rio, nomeadamente na Curva da Seca, e a ausência de proteções na Avenida Júlio Graça, já que as consequências eram uma queda no rio ou então um forte impacto nas estruturas da seca do bacalhau, como aconteceria a Rui Cavagnac, em 1968, que terminou enfiado nos arames. Além disso, com o aumento da potência dos carros, nomeadamente nos Sport, o público estava demasiado próximo da pista e temia-se um acidente grave a qualquer momento. Felizmente tal não sucedeu e os sucessos continuaram, com a espetacular luta nos Turismos em 1967 entre Carlos Gaspar, António Peixinho e Ernesto Neves, e a Carlos Gaspar em Ford GT40 na prova de Sport/Protótipos de 1968, que encerrou o CNV.
No entanto, o Estrela e Vigorosa Sport estava bem ciente que só melhorando as condições de segurança o circuito poderia prevalecer a longo prazo, e procedeu a mudanças significativas para 1970. Em primeiro lugar, renovou-se o tapete de asfalto na maioria da pista, nomeadamente nas zonas mais críticas; em segundo, encurtou-se ligeiramente o traçado, já que a primeira curva era antecipada em alguns metros, localizando-se agora junto ao restaurante Praia Azul, evitando deste modo o piso empedrado (e os danos no muro circundante). A viragem à direita dava para a Avenida do Ferrol, que levava os pilotos até ao jardim, aonde descreviam um S, incluindo assim pela primeira vez uma viragem à esquerda no circuito, que os levava de novo à Avenida Júlio Graça. As alterações foram muito bem recebidas, e os Esses do Jardim tornaram-se num dos pontos preferenciais para os espectadores, e em 1971 as motos regressaram, para se impor em definitivo como uma das imagens de marca do circuito, enquanto nos automóveis a prova de GT/Sport assistia a mais uma luta épica, entre Carlos Santos e Ernesto Neves, vencida pelo primeiro.
Ironicamente, a prova de 1972 ficaria marcada pela tragédia, muito à custa de uma das falhas de segurança que havia ficado por resolver – as proteções na zona do Rio e da Seca – custando a vida ao popular piloto Luís Fernandes [ver caixa]. Foi também um ano marcante, com a inclusão de duas corridas de motos, evidenciando a crescente diversidade entre o equipamento dos pilotos, e o último ano em que os monolugares (prova conjunta de F.Ford e F.Vee) correram em Vila do Conde até 1999, quando se realizou uma ronda do Campeonato Nacional de Fórmula BMW. A organização reagiu prontamente ao acidente e, em 1973, as medidas de segurança foram revistas, desde a colocação de ‘rails’ na Curva do Rio até ao apurado treino das unidades de socorro, e essa edição ficaria gravada no livro de recordes, já que Carlos Gaspar dominou por completo a prova ao volante do Lola T292 do Team BIP, estabelecendo um recorde de volta que nunca mais seria batido: 1:00.82. Avizinhavam-se tempos interessantes no automobilismo português com a chegada dos protótipos de 2 litros, mas subitamente tudo desabou, primeiro devido à Crise Petrolífera de 1973/1974, e depois com a Revolução do 25 de Abril de 1974, que deixou tudo e todos com preocupações bem maiores do que o desporto motorizado – aliás, depois da Revolução praticamente não se disputaram provas, e os dois anos seguintes seriam marcados pela instabilidade do PREC.
Revolução por necessidade
Neste contexto socioeconómico, não é de estranhar que o regresso das corridas a Vila do Conde, em pleno ‘Verão Quente’, tenha marcado um profundo contraste com as edições anteriores. Se a popularidade se manteve, com um recorde de inscritos e também de público, o mau comportamento deste e a perda de autoridade policial, fruto da situação política, por pouco não levavam ao cancelamento de algumas provas, ou até a um acidente sério. Só o tato de Carlos Fonseca permitiu estabilizar a situação, apesar de a segurança se manter precária, assistindo-se no entanto a uma edição extremamente disputada a quase todos os níveis.
No entanto, este foi o último ano em que o mítico diretor coordenou as operações, passando a pasta no ano seguinte a Fernando Ferreira Alves (que se manteve no lugar até 1993, quando foi substituído por sua vez por José Falcão, que organizou as últimas dez edições do circuito), e em 1976 a indisciplina dos espectadores voltou a ser uma dificuldade acrescida. Foram também os anos em que floresceram as provas de ‘aceleras’, entusiastas que, durante a noite, partiam para a zona da Praia Azul para exibir os seus dotes ao volante, com piões e provas de aceleração de travagem, assim como constantes fugas à polícia… Por muito que não fosse o mais politicamente correto, estas brincadeiras ao volante fizeram parte do muito folclore em torno da pista do Ave, e o cheiro a borracha queimada vai ficar na memória de todos os que viveram esses anos.
Outra realidade do pós-25 de Abril, que ficava bem patente em Vila do Conde, era a enorme quantidade de motos de marcas portuguesas de baixa cilindrada, de produção limitada ou artesanal, mas que muito fizeram pela promoção das duas rodas no cenário nacional, dando asas a nomes como Jaime Azarujinha, Contente Fernandes, Henrique Sande e Silva, Costa Paulo (pai e filho), Hermano Sobral e Nuno André, entre muitos outros. Pena que a voragem do progresso tenha feito desaparecer estas marcas, como já antes tinha ocorrido com os construtores artesanais de pequenos automóveis. No entanto, a nível de parque automóvel, as alterações económicas subsequentes à revolução contribuíram para democratizar a modalidade, e se já não se tinham máquinas como Ferrari ou sport-protótipos, mas havia uma base bem mais alargada de viaturas de turismo que proporcionava excelentes provas e contribuía para a formação de uma nova geração, bem mais alargada, de jovens pilotos de talento.
Vila do Conde foi um reflexo deste fator e, em 1977 e 1978, aproveitando-se do facto de o CAVR não ter conseguido colocar de pé as provas em Vila Real, o EVS decidiu preencher os fins de semana destinados a Vila Real com uma segunda ronda em Vila do Conde, os denominados Circuitos da Costa Verde. Foram também os anos da chegada dos impressionantes Porsche Carrera RSR de Grupo 4, entre os quais os preparados em solo nacional na já célebre Garagem Aurora, travando míticos duelos com Robert Giannone e o seu Porsche 911 Alméras.
Crescente também era a importância dos troféus monomarca, que tiveram um enorme impacto na velocidade nacional a partir da década de 80 até à crise que abalou os primeiros anos do Século XXI. Tudo começou com o Troféu Datsun em 1971, que teve um contributo único na promoção de novos valores, como Joaquim Moutinho, Santinho Mendes ou Pedro Cortez, entre outros, seguindo-se o Troféu Mini em 1977. Este, além das vagas de protesto constante devido aos alegados motores ‘faralhados’, culminou num episódio muito desagradável em Vila Real, quando a rivalidade intensa entre a Ruão Automóveis e a J.M. Costa, patrocinada por Lopes Correia, passou dos limites e os toques habituais acabaram num acidente muito violento nos Esses do Jardim que acabou com a carreira de António Ruão. Vila do Conde vivia o seu apogeu, e após a memorável prova vencida por António Barros em 1980 (ver caixa), 1981 traduziu-se por novos recordes de público, brindado com nova luta épica, desta vez nas motos, entre Hermano Sobral, Manuel Santos, Contente Fernandes e António Teixeira. A partir de 1980, e até ao seu fim em 2003, Vila do Conde albergou sempre dois fins de semana de corridas, sempre com muitos espectadores.
Curva descendente
No entanto, as nuvens negras da segurança continuavam a pairar sobre Vila do Conde. Considerada uma pista demasiado rápida para as motos, condição agravada pelo vento, o acidente fatal de 1983 afastou em definitivo as duas rodas da pista do Ave, e a competitividade crescente dos troféus monomarca, com muitos carros disputando a pista ao milímetro, não raras vezes acabava em vários toques e algumas carambolas que bloqueavam o circuito, que nunca foi propriamente largo.
Foi um acidente deste tipo que custou a vida a Reis Thomaz em 1987 (ver caixa), e deixou de novo o EVS de frente com a necessidade de fazer melhoramentos substanciais. Além disso, as regras de homologação das pistas por parte da FISA eram cada vez mais rigorosas, o que obrigou, por exemplo, a uma maior distância entre os carros na grelha de partida e, consequentemente, as últimas linhas ficavam já atrás da Curva do Castelo, obrigando à colocação de um segundo semáforo, dado o elevado número de concorrentes presentes. Estes condicionamentos crescentes lançaram novamente a discussão da construção de um possível circuito permanente, procurando-se terrenos baldios adequados nos arredores, mas nunca houve viabilidade financeira para seguir em frente com este plano, e foi-se adaptando o circuito consoante as necessidades.
Depois de mais um acidente sério em 1992, desta vez na ultra-rápida Curva do Rio, a organização decidiu alterar o traçado, com os pilotos a chegarem ao local e a virarem à direita e depois à esquerda para contornar as entretanto construídas Piscinas Municipais de Vila do Conde, desembocando em seguida novamente na Avenida Júlio Graça, a caminho da Curva da Seca. Esta seria a vítima seguinte das preocupações com a segurança, e também da crescente urbanização do local – as estruturas da seca do bacalhau já não existiam.
Havia obras de construção na área e a curva continuava a ser muito técnica e perigosa, exigindo maiores proteções ou a colocação de uma chicane no local, optando-se por esta solução, naturalmente impopular para público e pilotos, que preferiam uma curva feita ‘no braço’ do que um cotovelo em primeira velocidade. Além disso, com a vinda dos GT Espanhóis em 1999 – o único evento internacional organizado em Vila do Conde – e da Fórmula BMW, as velocidades atingidas na Curva da Praia Azul eram demasiado altas e mais uma chicane, no final da reta da meta, teve de ser incluída no traçado. Deste modo, a última encarnação de Vila do Conde, usada entre 1999 e 2003, era já uma versão muito descaracterizada de um circuito que em tempos tinha valorizado a velocidade pura, mas tal não diminuiu o carinho do público pelas corridas, continuando a aderir em massa nos dois fins-de-semana de prova. O EVS ainda fez obras na zona do Castelo e das boxes, mas, com a reabilitação urbana iniciada com o Programa Polis em 2003, as corridas tiveram de ser interrompidas. Infelizmente, para todos os amantes do desporto automóvel, as alterações na frente marítima, da responsabilidade de Siza Vieira, tornaram praticamente impossível um regresso do automobilismo à Princesa do Ave. Apesar de petições e da organização de vários grupos de entusiastas, e até de rumores de um possível interesse da autarquia após os sucessos da revitalização da Boavista e Vila Real, é neste momento um dado mais do que adquirido que os automóveis não voltarão à cidade, pelo menos no circuito que nos habituamos a conhecer. Só a lenda permanecerá…
As Fatalidades
Felizmente, o desporto automóvel português nunca sofreu, ao longo da sua história centenária, um grande historial de acidentes fatais. As tragédias mais marcantes foram precisamente a referida logo no início deste texto, no Circuito de Espinho de 1934, e da Lagoa Azul no Rali de Portugal em 1986. Mas Vila do Conde também ficou marcada pela tragédia, sendo importante homenagear neste espaço todos os que nele perderam a vida. Em 1972, nos treinos da prova de monolugares, Luís Fernandes derrapou na Curva do Rio, toucou numa árvore e saiu de traseira em direção ao rio, sendo catapultado por um meco para o Ave, com o carro voltado para baixo. Como já tinha sido mencionado, não existiam ‘rails’ no local, nem equipas de mergulhadores, por isso o socorro imediato foi prestado por alguns populares, que nada conseguiram fazer, por isso, quando o carro foi finalmente retirado do rio, já não havia esperanças de salvar o popular piloto. É de assinalar que Fernandes aparentava estar em má condição física, e foi colocada a hipótese de o despiste ter resultado de um problema cardiovascular. De qualquer modo, a falta de segurança ficou evidente e motivou uma reação pronta do EVS. Cinco anos depois, a morte voltou a ensombrar Vila do Conde, quando o experiente motociclista Francisco Neto se despistou e caiu, falecendo de imediato. As questões relativas à segurança das provas de duas rodas foram novamente levantadas, já que o posicionamento dos ‘rails’ era adequado para os carros mas não tanto para motos, e havia numerosos outros perigos, como os passeios pedonais e afins. Não que Vila Real fosse menos perigoso, recebendo no mesmo período motos de maior cilindrada e não sendo marcada por acidentes sérios, contudo, em Vila do Conde, a morte do jovem João Farinha, em 1983, foi o golpe final na presença das motos neste traçado. Por fim, há que homenagear também o popular piloto José Maria Reis Thomaz, falecido em 1987, na sequência de um despiste na entrada da reta da meta na prova do Troféu Citroën Visa. Infelizmente, depois de bater nos ‘rails’, Reis Thomaz ficou atravessado na pista e foi atingido por outros pilotos, e terão sido esses impactos a causar a sua morte. Reis Thomaz era um piloto muito popular, mas era também um célebre jornalista e tinha sido diretor técnico da revista Turbo, depois dos seus estudos de engenharia mecânica.
A guerra Porsche de 1980
A prova dos Grupo B acima de 1300 cm3 no Circuito da Costa Verde originou um dos maiores espetáculos presenciados em Vila do Conde. António Barros, Robert Giannone e Joaquim Moutinho dispunham de Porsche Carrera, Giannone com preparação dos conceituados irmãos Alméras e Barros e Moutinho da Garagem Aurora. Fora estes, apenas o espetacular De Tomaso Pantera de Celestino Pereira podia almejar imiscuir-se nesta luta. No entanto, o assunto foi integralmente discutido entre os Porsche, principalmente de Moutinho e Barros, dando seguimento ao duelo que já tinham protagonizado semanas antes em Vila Real. Moutinho liderou, mas sempre pressionado pelo veterano Barros, até que o cabo do acelerador quebrou, deixando Barros a liderar confortavelmente sobre Giannone e Tino Pereira, acabando nesta ordem. A desforra ficava marcada para o 24º Circuito de Vila do Conde, um mês depois. Mais uma vez, Barros foi o mais rápido nos treinos, mas o veterano piloto estava sofrer de dores intensas no peito, e viria a correr contra conselho médico, apesar de já ser campeão nacional. No dia da prova, Barros largou bem na frente, enquanto Giannone não tardou a desistir por problemas mecânicos. Desta vez, era Moutinho que tinha de perseguir, mas um toque no De Tomaso de Tino Pereira terminou com a sua prova, deixando Barros isolado no comando. Apesar de levar comprimidos para o coração para aguentar a prova inteira, Barros venceria, consciente que aquela seria provavelmente a última prova da sua vida… De facto, o veterano piloto de 46 anos viria a dar entrada num hospital do Porto devido a um enfarte agudo do miocárdio no final do dia, do qual viria a recuperar bem. Embora não voltando a competir, Barros continuou ligado ao desporto motorizado, juntamente com a sua família, até voltar a ser traído pela saúde e falecer em 2005.
[rl_gallery id=”482605″]