Será o Covid-19 o melhor amigo da Fórmula 1?
Pode parecer que bati com a cabeça em algum lado ou que emborquei umas litradas de vinho, mas, sigam o meu raciocínio: a competição vai estar condensada em menos tempo, vai visitar locais novos e a competitividade está em alta. Claro, Lewis Hamilton é um aborrecimento para os menos dados a apreciar ídolos, mas a pandemia de Covid-19 pode, mesmo, ser o melhor amigo da Fórmula 1!
As crises são sempre momentos de tensão e preocupação, mas ao mesmo tempo de oportunidade, dependendo, sempre, da forma como olhamos para o copo, meio cheio ou meio vazio. E, claramente, o copo deve estar meio cheio nesta atípica temporada de 2020 da Fórmula 1 e de muitos outros desportos motorizados.
Lembro que no pico da pandemia e na época em que todos parecíamos galinhas sem cabeça, correndo sem norte entre a depressão e a euforia, entre a tristeza e a luz ao fundo do túnel. Os tais que olham o copo meio cheio, diziam que o campeonato iria regressar, os que rasgavam as vestes clamando miséria pela chegada da pandemia, choravam por não acreditarem no regresso da competição.
O AUTOSPORT foi palco dessa mesma luta entre os otimistas e os pessimistas ao longo dos meses de confinamento até que, finalmente, saiu fumo branco e a Liberty lançou para cima da mesa um calendário semi desenrolado que teve como inspiração aquilo que outras competições, como a Nascar, fizeram: condensar provas e escolher localizações mais próximas das bases das equipas e onde a pandemia não fosse tão intensa.
A impossibilidade de viajar para certos locais, ofereceu duas corridas ao Red Bull Ring e ao passo que o calendário foi sendo desenrolado, surgiram pistas míticas que há muito tempo deixaram de fazer parte do circo, como Imola, Mugello, o Nurburgring. Portugal também vai cumprir o seu regresso à Fórmula 1, não com o velhinho Autódromo Fernanda Pires da Silva ou do Estoril, mas com o moderno e intenso Autódromo Internacional do Algarve.
Ou seja, algo que há um ano seria impensável, a pandemia de Covid-19 estendeu a passadeira a novidades e a um calendário interessante e que, ao contrário do que os Velhos do Restelo anunciaram, será relevante e escolherá um campeão perfeitamente justo!
Aliás, entendo que o campeão de 2020 estará em destaque no “Hall of Fame”, virtual que nestas coisas, só os americanos pensam nisso, porque será uma temporada atípica, um ano que, podemos dizer, será extraordinário se todos mantiverem uma atitude responsável e o mundo conseguir aprender a viver com o SARS Cov-2 e afastar uma segunda vaga de contágio da Covid-19.
Não me esqueci do aziago começo da competição na Austrália – tremendo tiro nos pés da Liberty – com a anulação do arranque da competição em cima da hora e no limite para evitar ficar tudo preso no outro lado do mundo. Mas tenho de reconhecer que Chase Carey e a sua equipa deram a volta ao texto, com o precioso contributo de equipas e pilotos. Os segundos por se manterem seguros e resguardados, as primeiras porque experimentaram algo nunca visto na Fórmula 1: confinamento, fábricas fechadas, colaboradores em “lay off”, congelamento do desenvolvimento dos carros, adiamento da nova regulamentação, testagem regular a todos os membros do “circo”, tentativa de manter o distanciamento social, eventos sucessivos, enfim, tudo aquilo que nunca aconteceu na Fórmula 1 está a desenrolar-se neste momento.
Todos nós que somos amantes do desporto automóvel temos de nos vergar ao esforço que mecânicos, técnicos de logística, engenheiros e até pilotos, têm feito para manter esta temporada num nível superior. A exigência é máxima e os pilotos começam a mostrar brechas como sucedeu com Lando Norris na Áustria, Sérgio Perez na Hungria, a face de cansaço de Lewis Hamilton após ganhar em Silvertstone com um pneu furado e a infeção de Sergio Perez com Covid-19.
Habitualmente zurzida com a vara da crítica, a Liberty Media merece o meu elogio, desta feita, pois a pressão sobre os americanos foi absurda e conseguiram tirar da manga um calendário sensato e significativo, foram firmes na tomada de decisões, como o adiamento dos novos regulamentos, e impuseram as regras necessárias para manter o circo isolado do Covid-19. Uma tarefa ciclópica que a Liberty encarou de peito aberto… e venceu!
Claro que há muitos adamastores e Velhos do Restelo que vão continuar a bater na estafada tecla do domínio da Mercedes e de Lewis Hamilton.
Que a Fórmula 1 não deveria ter DRS, enfim, nada está bem. Recordo sempre os domínios de Ayrton Senna, Alain Prost e Michael Schumacher, forjando ídolos que arrastam multidões. Lewis Hamilton é outro ídolo, mas moderno, que interage com os adeptos, apoia causas fraturantes, atira para cima da mesa assuntos de discussão, faz o seu papel e está a esculpir uma carreira que ficará para sempre nos livros da Fórmula 1. Isso é mau? Claro que não!
Concentremo-nos naquilo que está para vir: a condução da velha guarda no traçado de Imola, o desafio da velocidade no Mugello, a absoluta novidade da verdadeira montanha russa de Portimão ou o desconhecido que será a super veloz “tri-oval” do Bahrein.
É por tudo aquilo que disse acima e por isto que entendo ser a temporada de 2020 uma das melhores de sempre, porque são deixados de lado muitos dos circuitos “Tilke” que são todos parecidos e aborrecidos em favor de monumentos como Imola. Porque o calendário de 2020 é mais interessante que os anteriores. Porque a competição vai acontecer onde pode e deve e não onde o dinheiro fala mais alto.
A pandemia de Covid-19 forçou o regresso a uma competição onde o dinheiro dos países asiáticos e do médio Oriente vale o menos que o medo do coronavírus. Porque ao não autorizar espetadores, a Fórmula 1 eliminou algumas pistas cuja organização sobrevivia com a receita da bancada e do “Paddock Vip” dando uma oportunidade dourada, felizmente agarrada com as duas mãos, para escolher as melhores pistas apenas pela sua qualidade e não pelos dólares oferecidos.
Enfim, quando chegarmos ao final do longo ano de 2020 – que tem doze meses como os outros, mas parece que já passaram mais do dobro – a Liberty Media terá nas mãos dados valiosos sobre o que fazer no futuro e, particularmente, se a Covid-19 se mantiver a viver connosco. O calendário de 2020 é uma brilhante mistura de passado com o presente e o desconhecido, o que o torna brilhante, entusiasmante e, acredito, um marco na história da Fórmula 1. E que se dane o domínio do Lewis Hamilton e da Mercedes! Daqui a 20 anos, serão uma nota de rodapé daquilo que será o relato da mais atípica temporada da Fórmula 1 em 70 anos de competição!