Do outro lado da muralha

Por a 24 Junho 2020 19:39

Nas últimas duas décadas, o mundo ocidental olhou para a China, como antes o tinha feito para o Japão. Foi com entusiasmo que esperámos a chegada em força dos construtores chineses aos grandes palcos do automobilismo mundial. Esta ainda é uma promessa por cumprir, mas a presença chinesa no desporto motorizado tem crescido nos últimos anos.

Para contextualizar a tímida presença da maior potência asiática no automobilismo, é preciso perceber que o primeiro evento de automobilismo na República Popular da China foi apenas realizado em 1985, pois Macau e Hong Kong foram territórios administrados pelas potências coloniais até ao final da década de 1990. Por outro lado, a indústria automóvel chinesa é constituída por “quatro grandes”- SAIC, Dongfeng, FAW e Changan – sendo que todas estes são empresas estatais, assim como os outros dois grandes “players” locais: a Beijing Automotive Industry Holding Corp (BAIC) e a Guangzhou Automotive.

Actualmente, a China é o maior fabricante de automóveis do mundo, tendo fabricado no ano transacto 28% de todos os veículos produzidos no planeta. Contudo, uma enorme fatia desta produção fica em casa, sendo que apenas uma curta margem de 3% dos veículos produzidos no país da Grande Muralha são exportados. Sendo assim, é fácil compreender que a dimensão dos construtores chineses fora de portas é bastante reduzida.

O subitâneo sucesso da Lynk & Co, que conquistou o título de equipas e lutou pelo ceptro da competição de pilotos da Taça do Mundo FIA de Carros de Turismo (WTCR) no seu ano de estreia na competição automóvel, pode encorajar outros construtores automóveis do Império do Meio. Contudo, em casa, o sucesso da marca fundada em 2016 e que pertence ao Zhejiang Geely Holding Group, que detém a Volvo, é atribuído ao esforço europeu e não apela ao orgulho nacional. O triunfo de Thed Björk numa das corridas da WTCR em Marraquexe, que correspondeu ao primeiro triunfo de um carro chinês numa competição mundial da FIA, deu mais azo a polémicas que a festejos na terra Natal. É que os internautas chineses menorizaram o feito, cujo mérito foi atribuído à Polestar, e aproveitaram o que seria um momento de celebração para depreciar a Lynk & Co, críticas essas que tiveram voz até na imprensa escrita, por não apostar na “prata da casa”, como não ter um único piloto chinês.

Talvez devido à influência europeia e no seguimento do lançamento do programa desportivo da Lynk & Co, nasceu em Março de 2018 a Geely Group Motorsport, com bases em Hangzhou, na China, e Estolcolmo, na Suécia, apesar do Lynk & Co 03 TCR ter sido construído no Reino Unido. Esta foi a primeira iniciativa do género de um construtor chinês e deverá passar por ali o desflorar do novo Lotus Evora GT4 e de todas as outras iniciativas desportivas da marca. Mas a Zhejiang Geely, que é o maior construtor automóvel chinês privado, tem uma tradição maior nas corridas que as suas conterrâneas.

Foi a primeira a ter os seus fins-de-semana de corridas, com fórmulas e carros de turismo, foi a primeira a organizar provas num país estrangeiro, tem tido uma presença internacional constante no todo-o-terreno com os buggies de Wei Han que venceram o Taklimakan Rally (2016) e segundo no Rali Rota da Seda (2019), construiu o circuito de Ningbo e chegou mesmo a ter negociações para estar presente na Fórmula 1 em 2014 com a defunta Marussia.

Todo-o-terreno e pistas

Como os portugueses ainda se lembrarão, um dos pioneiros no automobilismo chinês na internacionalização, a par com a Chery, foi a Great Wall Motors, com quem em 2014 o “nosso” Carlos Sousa venceu a primeira etapa do rali Dakar. A marca que é a maior construtora de SUVs e pick ups no país abandonou os palcos internacionais ao fim de três anos, mas ainda mantém uma equipa semi-oficial no Campeonato de Todo-o-Terreno da China, competição essa que é disputada num formato semelhante ao rallycross.

Apesar do curto périplo pelo Dakar, uma prova que goza de boa reputação no Zhōngguó (“país do meio”), esta aventura deixou descendência.

Para além do buggy SMG motorizado pela Geely de Wei Han, na edição deste ano do Dakar, estiveram presentes mais duas marcas chinesas: a Hongqi, a marca que faz as limusinas oficiais da presidência da república, e a Borgward, por quem conduziu Luís Porém, e que apesar do “sangue alemão” é parcialmente possuída pelo construtor de camiões Foton. Poderíamos ter um terceiro construtor, mas a BAIC preferiu novamente focar-se esta temporada no Taklimakan Rally e no Rali Rota da Seda, entretanto cancelado. A BAIC voltou a comissionar o desenvolvimento e a construção de três novos BJ40L – uma viatura 4×4 e de motor V8 – à experiente estrutura belga Overdrive Racing.

Se nos ralis, as marcas chinesas estão relativamente bem representadas no campeonato nacional, mas não se aventuram além-fronteiras, na velocidade, à parte do sucesso da Link & Co, assistimos a passos importantes rumo a uma maior internacionalização.

Esquecida que está a tentativa falhada de convencer a Brilliance a investir no WTCC em 2006, a MG, que faz parte da família da SAIC, renasceu das cinzas, com o lançamento do MG 6 X-Power TCR. Construído pela influente Lisheng Shanghai Racing, em Xangai, o carro estreou-se na segunda metade de 2019 no TCR China, com o português Rodolfo Ávila ao volante.

Após vários problemas de fiabilidade nas provas chinesas, onde ainda assim alcançou um pódio, o carro foi enviado para Inglaterra para uma cura de emagrecimento e uma série de correcções, tendo conseguido um pódio nos FIA Motorsport Games com o britânico Rory Butcher.

Infelizmente, a MG terá vetado um programa internacional mais extenso, aguardando a Lisheng o sinal verde para inscrever novamente os carros de sotaque inglês no TCR China este ano.

Dada aposta de Pequim nos veículos eléctricos – em 2018 existiam 487 marcas registadas com autorização para a construção de veículos eléctricos no país – não é de estranhar que esta possa ser uma cativante porta de entrada.

Apesar das dificuldades económicas da startup NIO, cujas vendas dos seus carros eléctricos ficaram muito aquém do esperado, esta continua a competir no Campeonato FIA de Fórmula E a reboque o investimento realizado o ano transacto pela Lisheng. Ao contrário da Link & Co, a NIO 333 FE Team foi buscar um piloto chinês, Ma Qinghua, e tem um chefe de equipa chinês, William Li.

Entretanto, funcionando como um segundo motor da indústria local, a Lisheng foi a quarta marca a apostar no conceito de carros de turismo eléctricos de Marcello Lotti, o ETCR, mesmo não tendo o aglomerado fundado por Xia Qing divulgado que marca irá arrastar para esta arena.

Visto do outro lado

A diferença cultural entre o ocidente e o oriente é enorme e nada melhor que um nativo para nos dar a entender o ponto de vista do outro lado da muralha. “No nosso país não temos um número suficiente de pessoal tecnicamente qualificado. Por outro lado, os nossos construtores não compreendem o valor de competir no automobilismo”, explica Qian Jun, jornalista chinês credenciado pela FIA e que acompanha as provas do mundial de ralis, Fórmula 1 e Fórmula E. Mas há outros factores culturais que pesam, como o facto de “os chineses não gostarem de ter um estrangeiro a tomar decisões importantes nas equipas”.

Esta fraca expansão deve-se também à qualidade inferior dos carros chineses em comparação com os homólogos estrangeiros. Apesar deste fosso ter diminuído nos últimos anos, principalmente graças às inúmeras parcerias com construtores ocidentais, “os carros originais são fracos, não são uma boa base para carros de corrida”, afirma Qian Jun. A questão que se coloca é como será “status quo” daqui em diante. “Será difícil mudar. No entanto, se a NIO 333 FE Team conseguir alguns resultados de vulto na Fórmula E, talvez mude”, conclui o nosso interlocutor.

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