24 horas de Le Mans de 1988: Luta de titãs no duelo Jaguar-Porsche
Fez-se história na 56ª edição das 24 Horas de Le Mans, com a Jaguar a regressar às vitórias 31 anos depois, após uma grande luta entre os Porsche 962 C e os Jaguar XJR 9.
Em 1988, 31 anos depois da sua última (terceira consecutiva) vitória nas 24 Horas de 1957, então com Ron Flockhart/ Ivor Bueb, num D-Type, a Jaguar regressou ao lugar mais alto do pódio Le Mans. Mas, numa época em que a luta era entre os Jaguar e os Sauber-Mercedes, os Porsche 962 C surgiram como inesperados outsiders de luxo, dando uma luta decidida aos carros britânicos.
Na verdade, a 56ª edição das 24 Horas de Le Mans acabou por ser mais que uma mera luta entre os Porsche 962 C e os Jaguar XJR 9: “A luta pela vitória (..) foi apenas grandiosa. Desde o início da prova (…) que o Jaguar da tripla Jan Lammers/ Andy Wallace/Johnny Dumfries e os dois Porsche de fábrica se envolveram numa batalha sem tréguas dando a esta prova um ritmo de Grande Prémio. Seria, finalmente, o Jaguar XJR 9 da equipa TWR a impor-se, voltando assim a mara britânica aos triunfos em Le Mans, após 31 anos de jejum.” Para Tom Walkinshaw, “à terceira foi de vez. Só que não tão facilmente como seria de esperar.” A separar os dois primeiros ficaram curtíssimos 2m36,35s, uma das mais curtas distâncias á chegada das 24 Horas.
Taco a taco De facto antes de se conhecerem as forças em presença e fazendo fé no desenrolar até então, da temporada de Sport-Protótipos tudo indicava que a luta em Le Mans seria entre os Jaguar XJR 9-LM e os Sauber C9-88/Mercedes-Benz. Só que a Porsche também jogou forte: os 962 C podiam considerar-se de segunda geração “renovados aerodinamicamente e com um motor de seis cilindros, finalmente, gerido pelo famoso sistema Bosch Motronic M1.7”. As hostilidades começaram logo nos treinos, com o Porsche 962 C oficial, Hans Stuck a fazer a pole estabelecendo um novo recorde da pista, com o tempo de 3m15,64s, “deixando o segundo carro da equipa tripulado por Bob Wollek, a quase três segundos (3m18,62s), enquanto o mais velho da família Andretti [Mario] era creditado em 3m21,77s.” O melhor “não-Porsche” era o Jaguar XJR 9-LM de Martin Brundle, em quinto com o tempo de 3m21,78 (a um centésimo do Porsche de Andretti): “com a certeza de não podem lutar pela primeira fila”, os cinco Jaguar “limitaram-se a desenvolver trabalho para a corrida.” E em boa hora o fizeram…
Logo no início da prova, os “dois Porsche oficiais de Ludwig/Stuck/ Bell e Wollek/ Van der Merwe/ Schuppan partiram para a frente, tendo como adversários o Jaguar XJR 9 do futuro trio vencedor.” Na verdade, “Tom Walkinshaw e Peter Falk jogavam forte”, apostando “na equipa Dumfries/Wallace/Lammers como ‘lebre’ dos carros da Silk Cut.”
Segundo João Carlos Costa, que fazia a reportagem para o AutoSport, “a corrida poderá ter conhecido durante a terceira hora o momento decisivo, quanto ao vencedor.” Nessa altura, “Ludwig, então ao volante do carro nº 17 [que estava na frente] tenta reabastecer uma volta mais tarde que o previsto e só consegue chegar às boxes quase de empurrão, devido à falta de gasolina.” Perdeu aqui duas voltas – e a liderança da prova, que ficou entregue ao outro Porsche oficial, de Wollek/Van der Merwe/Schuppan, do Jaguar e do Porsche da família Andretti. Só que, pela 13ª hora, o Porsche comandante desistiu com o motor partido, numa altura em que o 962 C de Ludwig tinha regressado à luta pela primeira posição. Então, a partir daqui, o muito público presente em Le Mans assistiu a 12 horas de luxo, com o Porsche e o Jaguar a discutirem taco a taco o triunfo. No final, venceu o Jaguar, uma “vitória por todos esperada” e que quebrava “a hegemonia da Porsche nos últimos [sete] anos.”
Classificação
1º Jan Lammers/Johnny Dumfries/Andy Wallace (Jaguar XJR 9), 394 voltas em 24h03m08,26s (media de 221,665 km/h); 2º Hans-Joachim Stuck/Klaus Ludwig/Derek Bell (Porsche 962 C), a 2m36,35s; 3º “John Winter”/Frank Jelinski/Stanley Dickens (Porsche 962 C-Jöst), a 9 v.; 4º Derek Daly/Kevin Cogan/Larry Perkins (Jaguar XJR 9), a 11 v.; 5º David Hobbs/Didier Theys/Franz Konrad (Porsche 952 C-Jöst), a 14 v.; 6º Mario Andretti/Michael Andretti/John Andretti (Porsche 962 C), a 19 v.; 7º Jesus Pareja/Massimo Sigala/Uwe Schäfer (Porsche 962 C-Brun) a 22 v.; 8º Kris Nissen/Harald Grohs/Georges Fouché (Porsche 962 C-Kremer), a 23 v.; 9º Kunimitsu Takahashi/Hideki Okada/Bruno Gicaomelli (Porsche 962 C-Kremer), a 24 v.; 10º Brian Redman/Jean-Pierre Jarier/Eje Elgh (Porsche 962 C-Schuppan), a 35 v.; 11º Jürgen Lassig/Pierre Yver/Dudley Wood (Porsche 962 C-Primagaz), a 38 v.; 12º Geoff Lees/Masanori Sekiya/Kazuyoshi Hoshino (Toyota 88 C), a 43 v.; 13º Ray Bellm/Gordon Spice/ Pierre De Thoisy (Spice SE 88/Cosworth 3.3), a 43 v. (1º C2); 14º Allan Grice/Mike Wilds/Win Percy (Nissan R 88 G), a 50 v.; 15º Yojiro Terada/David Kennedy/Pierre Dieudonné (Mazda 767), a 57 v. (1º IMSA); 16º Price Cobb/Danny Sullivan/Davy Jones (Jaguar XJR 9), a 63 v.; (…). Classificados 25 carros.
Memórias trágicas
A Sauber era um dos favoritos à luta pela vitória, inscrevendo-se com dois C9-88/Mercedes-Benz, para Mauro Baldi/James Weaver/Jochen Mass (nº 61) e Klaus Niedzwiedz/Kenny Acheson (nº 62). Mas, afinal, nem sequer alinharam na corrida. “Eram 18h15 de quinta-feira, quando a Mercedes informou a direção da prova que retirava os Sauber. Tudo começou no dia anterior, quando o carro nº 62, conduzido na altura por Klaus Niedzwiedz, sofreu o rebentamento de um pneu no final da reta das Hunaudières.” A decisão não foi tomada apenas por causa disso – o problema estava em que esta era a quarta vez que tal sucedia, ao longo do ano.” Por isso, “é exatamente no fator risco que reside a maior razão desta decisão de não participar nas 24 Horas.” Peter Sauber confirmou isso mesmo, numa conferência de imprensa no dia seguinte: “O passado da Mercedes em Le Mans com o trágico acontecimento de 1955, não nos permite arriscar seja o que for. Um novo acidente trágico traria consequências funestas para a imagem da marca.”
“Velocidade furiosa”
Inesquecível. Mais conhecida como a “reportagem dos 30 mil bytes de ‘Em Poucas Linhas’”, por que quis contar tudo, foram as minhas primeiras 24 Horas de Le Mans como enviado-especial do Autosport. Sei a corrida quase de cor. Por uma vez ganhou a ‘lebre’ e a fábula de Esopo não se repetiu. Pela mão do meu ‘rival’ Rui Faria, ex-repórter desta casa, então no concorrente Volante, fui ensinado na arte de bem apreciar Le Mans. Das verificações na Praça dos Jacobinos a uma volta ao circuito de carro, passando pela feira, pelas bancas de memorabilia. Claro que não faltou a romagem, com a devoção de um crente, a todos os ‘lugares de culto’: das boxes, então ainda as antigas, a cada uma das curvas que conhecia por ‘culpa’ do filme de Steve McQueen.
Apaixonei-me pela direita da entrada de Indianapolis. Dei por mim a pensar que aquela faixa de terra, do lado direito, vindo de Arnage, seria o local perfeito para construir uma casa com alpendre virado a norte, em direção da reta que trás os carros desde a curva do Golfe. Mas foram as Hunaudieres que me marcaram mais. Não havia chicanes e o Rui levou-me para o último cruzamento, mais ou menos onde agora se encontra a segunda variante. Mandou-me olhar para o infinito e tentar descortinar os carros a quase 400 km/h. Um exercício para especialistas. Como adepto da velocidade que sempre fui, entrei em êxtase. Isso aconteceu nos treinos de 4ª feira. No sábado à noite, a mesma velocidade furiosa fez-me fugir a sete pés das boxes. O espaço entre o muro que delimitava a pista e a zona onde se faziam os reabastecimentos dava apenas para passar um carro. Como não havia limitações no número de mecânicos, centenas de pessoas pululavam por ali. E quando os Jaguar XJR9-LM saiam das boxes, logo as primeiras, começavam de imediato a acelerar ao som do seu estridente V12 de 7 litros, para chegarem ao fim desse mar de gente perto dos 200 por hora! Que isso de velocidade delimitada é coisa para meninos…
A minha primeira vez
Há sempre uma primeira vez para tudo. A minha, nas 24 Horas de Le Mans, foi em 1988. Fui, desde Paris, a bordo de um TGV e no outro dia de manhã, fui a pé até ao circuito. Foi fácil: bastou seguir o ruído dos motores. Já na sala de imprensa, sinto uma mão no ombro e uma voz em português fluente: “Olá! O que estás a fazer aqui?” Era o Luís Celínio, que tinha vindo, como de costume, de carro, desde a Guarda e ali estava, para a sua enésima reportagem das 24 Horas. Senti-me, salvo. E espantado, quando ele me diz: “Mas a sala de imprensa não é aqui. Já foi… agora é do outro lado!” Pois! Há sempre uma primeira vez para tudo! Passámos o túnel – o mesmo, ainda tão estreito como em 1955, o ano da tragédia, quando se revelou pequeno para tanto pânico! Finalmente em casa. Depois disso, registo rápidos flashes, de muitas coisas: os ingleses, em bandos ruidosos, a cair de bêbedos, de canecas de cerveja nas mãos e que pouco ou nada queriam saber dos seus grandes ‘Cats’, que eram a razão de ali estarem; a grande roda iluminada na ’feira popular’, que parava lá em cima, para se poder ver a pista quase toda; as mini 24 horas para os mais pequenos; as boxes, onde ainda se podia chegar sem grandes problemas; e o barulho, massacrante, incessante, infindável. Por isso, recordo também o silêncio súbito, ao cair das 16 horas de domingo: batia no cérebro com mais violência que o anterior barulho contínuo e inclemente dos motores. Era quase doloroso, esse silêncio, rematado pelas buzinas a ar dos enormes camiões das equipas quando saíam do circuito. Tal como eles, deixei o circuito pela porta maior. Logo ao lado, havia uma pista de aviação, de onde levantavam voo os aviões das equipas e dos pilotos. Fazia calor, muito: afinal, era o início do verão. Atravessei a estrada e fui para a cabeceira dessa pista. Deitei-me de costas, num monte de feno cortado, com os braços atrás da nuca. E fiquei ali a ver os aviões a passarem mesmo por cima de mim, lá no alto… mas pouco. O meu voo, esse, era só no dia a seguir E tinha muito tempo para escrever a reportagem, então para o jornal O Motor.
Voar baixinho a 405 km/h nas Hunaudières
O ano de 1988 foi o penúltimo em que a longa e famosa reta das Hunaudieres era feita a fundo, sem as famigeradas chicanes que foram depois instaladas, em situação de pânico pelas velocidades cada vez maiores ali alcançadas. Eram então 5,4 quilómetros, ou quase um minuto seguido com o acelerador totalmente a fundo. Curiosamente, esses eram momentos de relaxe para os pilotos que aproveitavam para verificar os instrumentos e todas as informações ao seu dispor. Em 1988, depois de, em 1983, o Porsche 956 de Derek Bell ter ultrapassado em pouco os 400 km/h, Roger Dorchy estabeleceu aquela que ficou como a máxima velocidade ali alguma vez alcançada: 405 km/h. O francês, então já com 43 anos, estava ao volante de um WM P88/ Peugeot – o sucessor do P87, ou P400, pois tratava-se, tão só e apenas de um exercício estilístico e de aerodinâmica feito de propósito para bater a temível fasquia dos 400 km/h.
Um “Estudo Original na WM”, assim titulou o AutoSport. O projeto tinha-se iniciado ainda em 1987: “Desde os primeiros ensaios efetuados numa autoestrada fechada ao público estava provada a validade do novo conceito. Os 400 km/h tinham sido ultrapassados por François Migault ” Depois, “nos treinos e na corrida” problemas de motor tinham inviabilizado a obtenção da marca”, adiando tudo para 1988. Para tal, a WM “duas viaturas”: “um modelo do ano anterior e um novo, o P88, baseado nas mesmas teorias.”
Mas que conceito aerodinâmico era esse? Quais eram essas teorias? Muto simples: diminuir a superfície das entradas de ar, altamente perturbadoras do bom escoamento aerodinâmico.” O que não foi uma tarefa fácil, pois havia que resolver problemas prementes, como arrefecer o motor Peugeot, que utilizava radiadores de óleo e permutadores de turbo. Porém, “os técnicos da equipa encontraram uma solução para o enigma. Nas zonas onde as pressões são mais fortes, através de um canal de arrefecimento.” Ou seja, “pegaram no ar da frente do carro”, fizeram-no entrar “por duas pequenas aberturas e levá-lo aos permutadores laterais, por uma conduta integrada de cada lado da carroçaria.” Chamaram a este sistema “fluxo interno”. Que tinha que ser corretamente evacuado. Para tal, os técnicos da WM decidiram fazê-lo… através do teto do P87/P88, local onde foi colocado o extrator. Em tudo o mais, o WM era “de um classicismo total.”
Hélio Rodrigues, In Memoriam