Entrevista Hannu Mikkola: Ídolo de gerações

Por a 30 Maio 2020 18:46

Hannu Mikkola faz parte daquele lote premium que moldou a evolução dos ralis, criando os alicerces sobre os quais assentam a popularidade deste desporto e o fascínio que exerce em infindáveis multidões, estando Portugal no topo dessa espécie de barómetro que mede a paixão pelos carros que impõem respeito pelo som que produzem enquanto levantam quilos de poeira ao negociar cada curva.

Mikkola deu os primeiros passos numa época de puro amadorismo, atingiu o estrelato nos anos do Grupo 4, foi um dos protagonistas do período louco do Grupo B e acompanhou a rápida escalada de velocidade das máquinas de Grupo A.

Pelo caminho, somou três vitórias em Portugal e o título de campeão do mundo ao volante do monstro que ajudou a desenvolver: o revolucionário Audi Quattro. Há algum tempo, o finlandês voltou a visitar um país que o viu ‘crescer’ enquanto piloto e, momentos antes de voltar a fazer as delícias dos portugueses ao volante do emblemático Escort, revisitou com o AutoSport trinta anos votados à competição.

Nos últimos anos temos entrevistado nomes fortes que fizeram história no Mundial de Ralis em geral, Rali de Portugal em particular.

Desta vez, o convidado de honra foi Hannu Mikkola, um verdadeiro símbolo da modalidade, cuja carreira conheceu, precisamente no nosso país, alguns dos seus mais belos capítulos. Foi no início duma tarde de sábado, após o almoço, que nos sentámos à conversa. Como se as nossas poltronas estivessem encaixadas no cockpit de um qualquer Grupo B, bastaram poucos segundos para andarmos a fundo e, a alta velocidade, viajarmos por três décadas de uma vida que marcou a geração dos que, como eu, se habituaram a ver Mikkola, Alen, Vatanen e tantos outros, em jornais e revistas a preto e branco ou a adotar os seus nomes enquanto se digladiavam em corridas de Matchbox no lancil dos passeios…

É quase obrigatório colocar esta questão a um finlandês. Que idade tinha quando conduziu, pela primeira vez, um automóvel?

Teria à volta de 12 anos e, na maior parte das vezes em que pegava num carro nessa altura, o meu pai não sabia. Vivíamos no campo e havia muito espaço para conduzir. Depois, comecei a fazê-lo com o seu consentimento. Na empresa onde ele trabalhava, havia grandes carros americanos e eu podia conduzi-los. Quando tirei a carta e fui para Helsínquia estudar engenharia, o meu pai comprou-me um Volkswagen mas eu apercebi-me que um dos seus colegas queria vender o seu Volvo PV444 e sugeri ao meu pai que mo comprasse para usar em vez do Volkswagen, que era muito dispendioso. O meu pai olhou para mim, admirado, a pensar que aquela seria, provavelmente, a primeira vez que estava a ouvir uma sugestão sensata da minha parte e acabou por concordar (risos)…

Parece-me que a preferência pelo Volvo teria um desejo escondido?

Na semana em que comprámos o Volvo, ia haver um rali em Turku e, sem o meu pai saber, coloquei o carro em meu nome e inscrevi-me. Estávamos então em 1963. Peguei no velho Volvo PV444 com 60 cv, caixa de 3 velocidades e 120 mil quilómetros e levei-o a uma oficina para reforçar algumas partes mas a verdade é que não havia peças para isso. Um amigo, que tinha um Volkswagen, veio ter comigo orgulhoso dos seus pneus Continental novos e, quando lhe disse que ia participar num rali, ele emprestou-me os pneus para a prova, com o compromisso que lhos devolveria na segunda-feira. Fomos para o rali sem o meu pai saber, dizendo-lhe que íamos passar o fim-de-semana na casa de verão. Fizemos o rali e achámos que nos tinha corrido bem, embora não tivéssemos consciência do lugar que obtivéramos. Assim que terminámos o rali, saímos imediatamente de Turku já que o dinheiro que tínhamos era o suficiente para percorrer os 160 quilómetros de volta. Quando chegámos, o pai do meu amigo, que havia sido piloto, não escondia o entusiasmo e perguntou-nos porque não ficáramos para a entrega de prémios. Dissemos-lhe que não tínhamos dinheiro e ele deu-nos algum para voltarmos a Turku e participar na cerimónia. Quando lá chegamos, estavam lá o Simo Lampinen, o Pauli Toivonen, enfim as grandes estrelas da altura, que me chamaram para entregar uma série de troféus. Tínhamos ficado em quinto lugar! Os jornalistas vieram ter comigo, perguntando quando voltaria a competir, ao que eu respondi “dentro de duas semanas, se o meu pai não estiver muito zangado”. Em casa, quando chamei o meu pai para ir ao quarto ver aquelas taças todas, ele perguntou, surpreendido, o que tinha feito. Disse-lhe que tinha participado num rali, ao que ele perguntou quem era o dono do carro? “-Eu!”- Respondi-lhe. E assim começou a minha aventura nos ralis…

É costume dizer-se que não há campeões sem sorte e, no seu caso, houve uma conjugação de acasos que lhe permitiram, nesta fase, continuar a perseguir o seu sonho…

Pouco depois desse rali, o motor do Volvo partiu e eu fiquei sem carro e sem dinheiro para poder continuar. Foi então que um amigo da família, pai do Timo Jouhki que atualmente gere a carreira de muitos pilotos do WRC, veio ter comigo e perguntou-me porque não fazia ralis. Disse-lhe que não tinha carro nem dinheiro e ele colocou à minha disposição um Volvo PV544 para correr e disse-me para lhe mandar as contas que ele pagaria! E assim voltei a competir. Os resultados foram aparecendo e, passados poucos ralis, a própria Volvo começou a ajudar-me até que me cedeu um carro para correr. Não me posso queixar de falta de sorte nesta fase inicial da minha carreira.

Em 1968 surge um convite da Ford. A sorte voltou a acompanhá-lo já que, ao que parece, o Roger Clark não gostava de fazer o Rali dos 1000 Lagos…

É verdade. Depois de uns anos a competir com os Volvo PV544, corri em 1967 com os Amazon, fazendo ainda uma ou outra prova ao serviço da Datsun. Nos 1000 Lagos desse ano, a Ford alinhou com alguns Cortina Lotus e eu fiquei à frente deles com o meu Amazon, o que deve ter chamado à atenção da equipa. Quando, no ano seguinte, o Roger Clark se recusou a participar no Rali por não gostar da prova, o Bill Barnett, da Ford, veio ter comigo e perguntou-me se queria participar com um Escort. Respondi-lhe que tinha contrato com a Volvo e que só poderia aceitar se a marca me libertasse. Fui então falar com o patrão da equipa, que me disse que o futuro era meu e era livre de o decidir. E assim aceitei o convite da Ford para fazer o Rali dos 1000 Lagos de 68. Era um carro com volante à direita, coisa que eu nunca tinha conduzido antes, pelo que tive que treinar bastante. Acabei por ter a felicidade de terminar o rali e de o ganhar, o que deixou os homens da Ford entusiasmados ao ponto de quererem assinar, de imediato, um contrato comigo.

Pelos vistos convenceram-no. Tornou-se piloto da Ford e repetiu a vitória nos 1000 Lagos nos dois anos seguintes, em 69 e 70…

E estive para ganhar também em 71 mas cometi um erro estúpido quando liderava por mais de um minuto e meio face ao Blomqvist e acabei fora de estrada, logo a seguir a um salto. Fiquei tão frustrado que ainda me lembro do sítio exato onde isso aconteceu…

Ganhar em “casa” tem um significado especial. A partir daqui, que objetivos traçou para o futuro?

Quando iniciei a minha carreira, tinha dois desejos: ser campeão finlandês de ralis e ganhar o Rali dos 1000 lagos. Em 1968 cumpri ambos os sonhos e, com 26 anos, dei por mim a pensar que, a partir dali, o que viesse era mais do que alguma vez ambicionara…

Em 1970, vence aquele que ainda hoje é considerado um dos eventos mais marcantes da história da modalidade, o Rali Londres-México que, curiosamente, passou por Portugal. Que memórias guarda dessa maratona?

Foi uma enorme aventura. Da passagem em Portugal, lembro-me que foi nesse rali que tive o meu primeiro contacto com Arganil e, logo aí, me apercebi da dureza daqueles pisos. Depois, enquanto os carros seguiam de barco para o Rio de Janeiro, nós ficámos alojados em Portugal, aproveitando este clima para descansar durante uns dias e ganhar forças para a fase americana da prova. O Rali foi liderado inicialmente pelo René Trautmann e nós adotámos a tática de levar o carro direito até ao México, sem cometer erros já que a prova era muito longa, com troços que chegavam a ultrapassar os 900 quilómetros de extensão e, portanto, não era um rali para se andar a fundo. A nossa estratégia resultou e acabámos por vencer.

Sentiu, na altura, o impacto que a vitória teve para a Ford e para a sua carreira?

Para ser sincero, na altura não me apercebi desse impacto. É claro que fui vendo todas as notícias que a Ford compilou e constatei a dimensão do feito mas, na verdade, eu estava ali para conduzir e, se no início do rali, a minha preocupação era encontrar o ritmo certo para competir em etapas com centenas de quilómetros, a maior das quais a obrigar a mais de 12 horas de condução, quando passei para o comando, a preocupação transferiu-se para o estado do carro e para a mecânica do Ford. Acredito que a prova tenha sido um rombo no budget do Stuart Turner mas, como ganhámos, isso passou para segundo plano (risos).Foi o rali mais duro da minha carreira e repeti-o, mais tarde, em 1995, embora numa versão reduzida. A vitória em 1970 foi sem dúvida, importante para a minha carreira mas aquela que mais contribuiu para o ponto de viragem foi a dos 1000 Lagos de 68.

Dois anos depois, oferece à Ford mais um importante troféu: a vitória no Safari. Um rali diferente, mas igualmente exigente…

Em 1971, a Ford havia tentado ganhar o Safari e fiz aí a minha estreia na prova mas problemas mecânicos impediram-nos de lutar pela vitória. Em 72, voltámos e conquistámos a desejada vitória para a Ford. Não acho que seja especialmente dotado para este tipo de provas. Simplesmente, quando comparo a minha condução com a dos meus colegas, acho que andava menos de lado, deixava a traseira menos solta e isso refletia-se no facto de chegar ao final com o Escort menos batido que os restantes. Talvez o facto de andar mais direito tivesse contribuído para atingir o sucesso…

Para um finlandês, ter que dosear o andamento nesse tipo de provas deve ser um pouco contranatura. Acredito que o Gunnar Palm, o seu navegador de serviço nas longas maratonas, tenha desempenhado um papel importante nesse aspeto…

Sem dúvida. Era um bom navegador e quando era preciso acalmar o ritmo, era ele quem me dizia para abrandar (risos)!

Depois de ter oferecido à marca tão importantes vitórias, acaba por deixar a Ford no final de 74, ano em que obtém um novo triunfo nos 1000 Lagos. A que se deveu essa saída?

Não foi propriamente uma saída. Simplesmente o Escort MKII estava em fase de desenvolvimento e a equipa iria ter um ano de 75 com pouca atividade. O Timo Mäkinen foi o piloto escolhido para fazer o desenvolvimento do carro e, com um ano praticamente sem participações em ralis, acabaram por ter que deixar os pilotos sair e prosseguir a sua atividade, o que não era, de todo, a situação que eu desejava…

No ano seguinte, em 1975, embora tenha estado bastante ativo, a verdade é que não tinha uma equipa fixa, saltitando entre a Peugeot e a Fiat, acabando por fazer os 1000 Lagos com um inesperado Corolla da recém-criada equipa Toyota de Ove Andersson…

Foi um ano em que praticamente mudava de carro em cada prova. Através da Peugeot conheci o Jean Todt, que me levou para a Fiat e assim fui fazendo provas, ora com uma marca, ora com outra. Quando cheguei aos 1000 lagos, não tinha carro para fazer o rali. O Stuart Turner tentou que eu fizesse a prova com um Escort mas não haviam tido tempo para construir um MKII e também não me queriam dar um MKI. Pouco tempo antes da prova, fui à África do Sul e encontrei o Ove Andersson, que me disse que tinha um carro, mas não tinha dinheiro. Então, a Toyota aceitou pagar metade se o importador finlandês suportasse a outra metade. O meu amigo Atso Aho, que geria a venda de modelos Toyota no norte do país aceitou o negócio e foi o meu navegador nessa prova. Tínhamos apenas 3 mecânicos, os meus amigos tratavam dos pneus e a supervisão estava a cargo do Arne Hertz, que viria mais tarde a ser o meu fiel navegador. A verdade é que, no meio de tantos Ford e Fiat, ganhámos e aceitei alinhar pela equipa Toyota nos dois anos seguintes, apesar de o Stuart Turner me ter convidado a voltar para a Ford e de eu ter, estupidamente, recusado. Durante os dois anos em que estive na Toyota, não consegui nenhum resultado de relevo. A equipa era boa mas o carro não era suficientemente rápido para lutar pelas vitórias e o melhor resultado que obtive foi um segundo lugar no RAC de 77.

Até que, em 1978, a Ford o convence a regressar…

Sim, o Peter Ashcroft, que entretanto tinha assumido os comandos da equipa, ligou-me várias vezes a pedir para voltar e eu aceitei. Conduzi oficialmente em 78 e 79 e, mesmo em 1980, após a Ford se ter retirado oficialmente do Mundial, a marca pagou por “baixo da mesa”, digamos assim, os ralis em que participei.

Do ponto de vista da condução quais eram as principais diferenças entre os Escort MKI e MKII ?

Nenhumas! Eram praticamente o mesmo carro, só mudava a carroçaria. As afinações eram as mesmas e a forma de os conduzir, também!

Em 1978, protagonizou com Markku Alén, aqui em Portugal, uma das mais belas páginas da história dos ralis. Conte-nos as emoções que viveu naquela épica noite em Sintra.

Antes de partir para a última etapa, não tinha muita esperança de conseguir passar o Alén. Estava a 11 segundos do Markku mas todos sabíamos que o Escort era menos rápido que o Fiat em asfalto. Lembro-me que, ao início da noite, quando saí do quarto do Hotel Estoril Sol e enquanto descia no elevador, entrou o chefe da Fiat, Daniele Audetto, que me disse: “Esta noite, vamos aniquilar a Ford!”. Eu sorri e disse: “Ok!” A etapa começou e foi a luta intensa que todos sabemos. À medida que o fim se aproximava, e à semelhança do que a Fiat fez, nós íamos tirando todas as peças dispensáveis do Escort, para o tornar mais leve. A única vez que estive à frente do Markku foi precisamente antes do último troço, em Sintra. Foi muito frustrante o que aconteceu depois. Ainda hoje não sei o que estava da parte interior da curva e não sei em que bati. Certo é que furei e, infelizmente, não pude lutar por uma vitória que, confesso, quando iniciei aquela última passagem em Sintra, achei que estava no bolso!

No ano seguinte, obteve, finalmente a primeira vitória em Portugal, à frente do seu companheiro e amigo Waldegård mas, no final do ano, perdeu o título para ele por apenas um ponto. Não foi campeão mas honrou a sua palavra…

Sim. O Waldegård era, além de um excelente companheiro de equipa, um amigo. No início do ano, combinámos que faríamos exatamente o mesmo número de provas, quer com a Ford, quer com a Mercedes. Infelizmente, tive falta de sorte em alguns ralis, como o dos 1000 lagos, em que desisti quando liderava, com problemas na junta da cabeça do motor ou o da Acrópole, onde o Escort parou numa assistência, também com problemas de motor. O Peter Ashcroft disse-me, a dada altura, que, em virtude dos azares que sofrera, e apesar de não estar previsto, devia ir ao Rali do Quebec, no Canadá, uma das provas a que o Waldegård ia. Eu disse-lhe que não o faria porque tinha assumido um compromisso relativamente ao número de provas em que participaria e não o iria quebrar.

A relação com Waldegard era tão boa que, consta, chegaram a combinar entre si a forma como negociaram com a Mercedes para alinhar nas provas africanas…

É verdade. Sabíamos que a Mercedes queria contratar os dois e combinámos o que iríamos negociar de forma a ganharmos o mesmo. E recebemos um bom salário para guiar os 450 SLC e os 500 SLC. O meu pai sempre teve carros americanos pelo que eu tinha alguma experiência em guiar máquinas longas. O Björn era realmente um excelente colega e amigo. Nunca tivemos segredos e se um ia testar e o outro não, a primeira coisa que fazíamos era ligar ao outro a contar o que tínhamos concluído dos testes. O confronto entre nós era apenas feito na estrada. Em Portugal, nesse ano de 79, eu liderava, o Björn era segundo e tínhamos uma vantagem confortável para os demais. A certa altura, ele veio ter comigo e disse-me: “Vai com calma, a vitória é tua. Não é preciso corrermos riscos…”

Em 1980, aceita o desafio da Audi e embarca numa aventura que viria a revolucionar a modalidade. Hoje, é fácil perceber que tomou a decisão certa mas, na altura, a incerteza quanto á viabilidade do projeto devia ser enorme. Foi fácil convencerem-no a integrar a equipa?

Em 1979, Jurgen Stockmar, o chefe do departamento de competição da Audi convidou-me a ir à Alemanha. Estava em casa com a família e tinha apenas 3 dias de descanso mas aceitei e apanhei o avião. Não tinha qualquer tipo de expectativa. Quando lá cheguei, tinha um Audi Quattro de série, para conduzir numa florestal. Experimentei o carro e o Stockmar tinha tal entusiasmo que, sempre que falávamos, partilhava os planos para o futuro como se eu já fizesse parte da equipa. Disse-lhe que não havia prometido nada. E então propuseram-me que conduzisse metade da época de 1980 com o 200 turbo de tração à frente, passando, mais tarde, para o Quattro quando estivesse homologado. Disse-lhe que iria pensar e que, no dia seguinte, lhe daria uma resposta. Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço, disse-lhe que era impossível ter o carro pronto em seis meses, com amortecedores escolhidos, testes feitos, etc. Sugeri então que, em 1980, eu estaria livre para conduzir para outras marcas e comprometia-me a um determinado número de dias de testes para desenvolver o Quattro, começando a competir ao serviço da equipa no início da temporada de 81. Eles aceitaram e assinei o contrato. A Audi comprou um Escort ao David Sutton para podermos comparar o andamento e, após os 1000 Lagos de 80, testei o carro na Finlândia e comparámos os tempos. Nas estradas mais rápidas, o carro era rápido mas, nas mais sinuosas, a capacidade de curvar não estava ainda desenvolvida. Os técnicos foram evoluindo o Quattro e, quando, em Novembro desse ano, conduzi o carro zero no Rali do Algarve, o carro já era outro, completamente diferente.

Nas estradas algarvias tomou verdadeiramente o pulso ao potencial do Quattro. O que pensou quando viu os tempos que obtinha comparativamente aos carros de duas rodas motrizes?

Fiquei abismado. Ganhávamos cerca de um minuto aos restantes. Era simplesmente fantástico. Na altura, a Audi procurava ainda um segundo piloto e pediram-me que partilhasse os tempos que fiz no Algarve com o Walter Röhrl, de modo a convencê-lo a vir. Mas ele não aceitou e acabaram por contratar a Michèle Mouton.

Como reagiu quando soube que iria fazer equipa com uma senhora, num desporto dominado por homens?

Eu não a conhecia mas rapidamente deu para perceber que era uma mulher determinada. Quando foi contratada, eu estava presente na conversa que ela teve com Walter Treser e a última questão que a Mouton colocou ao chefe da equipa Audi foi: “Tu contrataste-me por ser mulher ou por ser piloto?” Ele respondeu-lhe: “Por seres piloto!”. E ela assinou pela Audi. A Michèle estreou-se aqui em Portugal e, à medida que o rali avançava, comecei a ver que os seus tempos se aproximavam dos meus e percebi que estava ali uma piloto bastante rápida.

Com a Audi, conseguiu mais duas vitórias em Portugal, em 83 e em 84, esta última depois de novo duelo com Markku Alen. E em 83, sagra-se finalmente campeão do mundo. Tinha então 41 anos. O que mudou na sua vida após conquistar o tão almejado título?

Bem, acho que não mudou muita coisa embora seja uma enorme satisfação sermos campeões no desporto que escolhemos para preencher a nossa vida. Depois, não escondo que teve um sabor especial porque, na verdade tinha estado em condições de o conquistar algumas vezes. Em 79, perdi-o por um ponto, depois em 81 e 82, na Audi, tivemos vários problemas técnicos na segunda metade das temporadas que nos impediram de lutar pelo título e, para ser franco, cheguei a pensar que 83 também não seria o meu ano, já que diversos problemas técnicos me impediram, a certa altura, de progredir no campeonato. Mas, no final, tornámo-nos campeões, o que foi fantástico, sobretudo porque tinha consciência que aquela seria a minha última hipótese de o conseguir já que havia comunicado à Audi que, a partir de 84, queria fazer menos provas e dedicar mais tempo à família. Nos anos anteriores tinha estado uma média de 270 dias por ano fora de casa e achava que precisava de estar mais tempo com a família, tinha filhos pequenos e por isso fiquei feliz por ter sido campeão na altura certa.

https://youtu.be/ERPEyfV0RC8

Foi campeão do mundo na era do Grupo B. Hoje, 34 anos passados sobre essa época alucinante, é possível opinar com frieza sobre o que de bom e de mau trouxe o Grupo B?

O lado bom é que os carros eram fantásticos de conduzir. Quando chegámos àquela fase em que as potências atingiram 500 cavalos ou mais, tínhamos uma sensação de controlo e de força indescritíveis. Conseguíamos virar o carro só com toques no acelerador e era no acelerador que o controlávamos já que ele reagia ao pedal de uma maneira que nos dava uma sensação de domínio e potencia que se traduzia numa enorme excitação ao conduzir. Mas, claro, as coisas atingiram proporções dramáticas. E aqui, a Audi nem foi a que mais desafiou os limites, mas alguns dos nossos concorrentes desafiaram esses limites, colocando, por exemplo depósitos de combustível debaixo dos bancos, etc.. Por princípio, a Audi dificilmente entraria nessa guerra. Uma vez, no Safari, capotei nos treinos, dei sete cambalhotas e nem uma gota de combustível veio parar ao interior do carro. Acho que era possível manter a filosofia do Grupo B, talvez reduzindo a potência mas definindo, sobretudo, regras de segurança mais rigorosas. A Audi chegou a comprar um Lancia Delta S4 e depois de o desmontar, chegou à conclusão que nunca iria construir um carro com aquelas características pois achava que devia estabelecer um mínimo de padrões de qualidade e de segurança. Mas eu achava que a marca tinha condições para voltar a dar cartas, mesmo após a chegada da Peugeot ou do Lancia de quatro rodas motrizes. Tínhamos o modelo Coupé, uma boa caixa de velocidades, boas suspensões, um bom motor, era uma questão de investir no desenvolvimento de um carro que permitisse lutar de igual para igual com as outras marcas mas, na altura, a administração da Audi estava a virar-se para as pistas e a desinteressar-se pelos ralis, e o projeto acabou.

Muitos dos seus companheiros retiraram-se dos ralis após a abolição do Grupo B mas o Hannu continuou. Depois de algumas provas com o Audi 200 Quattro, tornou-se piloto oficial da Mazda. O que o motivava a continuar a correr?

Era a minha profissão. Na Mazda, acreditávamos que ainda podíamos vir a ter um carro ganhador e ansiávamos permanentemente pela versão 2 litros do carro, já que o 323 4WD era bom de conduzir mas faltava-lhe potência. Além disso, o dinheiro que ganhava era um motivo de peso e, ainda por cima, podia escolher os ralis em que participava.

Como vê os ralis hoje em dia e a forma como evoluíram?

Infelizmente a tecnologia evoluiu demasiado e perdeu-se aquele lado dramático dos ralis. Nos anos 80 lutávamos para manter os carros na estrada, hoje os carros vão muito mais rápidos mas parecem colados à estrada, os pilotos não parecem tão excitados como nós estávamos e a filosofia deste desporto é hoje bem diferente. Não se conduz à noite, reclama-se porque está a chover, porque há pó, e caminhámos para uma competição mais próxima das corridas em pista e mais afastada da génese dos ralis. Por isso, aquelas imagens dos pilotos extenuados à beira da estrada, durante as assistências fazem parte do passado. Tecnicamente, as coisas não eram tão eficientes, e eu desisti para aí em 40% dos ralis que fiz. Hoje conduz-se em especiais que se repetem, adota-se o mesmo ritmo em todas elas e não há diferenciação entre os troços ou entre os ralis de cada país. As coisas estão definitivamente diferentes…

Por Nuno Branco

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