F1: A velocidade ao ritmo da mente
O sucesso no
desporto motorizado exige uma conjugação de fatores nem sempre
fácil de conseguir. Mas há um ingrediente fundamental que faz a
diferença entre os grandes campeões e os bons pilotos.
A primeira vez num
carro de competição é algo inesquecível e que nos acompanha para
o resto da vida. Tudo acontece a uma velocidade tremenda, mas o que
mais impressiona é a exigência mental necessária para controlar
tudo em frações de segundo. No final da experiência chega-se ao
fim e surge inevitavelmente a questão… se isto é assim aqui,
imagino num F1.
Na verdade é
difícil para o “comum dos mortais” imaginar o que será
enfrentar as forças G em curva e na travagem de um F1, ou a força
em aceleração. A juntar a tudo isto, os pilotos têm de lidar com a
dinâmica do carro, com um volante complexo que comanda um sem fim de
funções e configurações, com a estratégia, com a sinalização
dos comissários, com os adversários… Dizer que pilotar um F1 hoje
em dia é fácil é como dizer que é fácil domar um leão; é fácil
para quem sabe, dá muito trabalho e mesmo assim pode correr mal.
Tudo isto exige
treino intenso, ininterrupto e uma dedicação sem fim. Horas e horas
no carro a aperfeiçoar a técnica. E como se isso não bastasse, há
também a componente física. A exigência física de um F1, em que
os pilotos passam praticamente 8 horas dentro do carro, numa posição
em que o corpo não está concebido para estar, sujeito a calor
extremo, forças extremas, isto durante 20 fins de semana, exige do
piloto uma preparação física a toda a prova. A frequência
cardíaca média ronda as 180 pulsações por minuto, o que durante
uma corrida de hora e meia provoca um desgaste extremo no organismo.
É por isso que vemos os pilotos a terem cuidados redobrados com a
sua forma física.
Os primeiros
cuidados
Ayrton Senna percebeu cedo que não estava preparado fisicamente para a F1 e sem a parte física apurada, não poderia ter o rendimento máximo desejado e recorreu ao preparador Nuno Cobra para ganhar a força e resistência necessária para estar ao mais alto nível de forma constante. Terá sido dos primeiros pilotos a levar mais a sério a questão física (e mental) e essa preocupação ganhou outro impulso com Michael Schumacher, famoso por levar consigo um ginásio onde treinava com uma regularidade religiosa.
Se nos anos 90 a
questão do treino físico era pouco comentada, hoje faz parte do dia
a dia dos pilotos e é inconcebível que qualquer piloto de topo não
tenha um programa de condicionamento físico, independentemente da
categoria onde compete. E as cargas físicas que a que se sujeitam em
nada ficam a dever a outros desportistas de alto nível. Jenson
Button por exemplo, tornou-se praticante de triatlo e os seus tempos
não ficavam muito longe dos feitos por atletas olímpicos.
A força mental
Toda esta dedicação,
todo este trabalho exige algo fundamental na F1… força mental.
Tudo o que foi acima referido, todo o trabalho, todo o talento só
faz sentido se o piloto tiver a capacidade mental para lidar com a
exigência. E por muito fácil que possa parecer a vida de um piloto,
a realidade é muito diferente.
Lembro-me sempre de
Tiago Monteiro quando vai a Vila Real correr. O mar de gente que
enche a capital transmontana quer ver o ídolo nacional em ação. É
impossível contar a quantidade de autógrafos, selfies,
cumprimentos que o piloto português tem de dar. Num fim de semana
tem de interagir com centenas de pessoas, nos quais se incluem fãs,
patrocinadores, representantes de várias entidades, tudo isto sem
perder o foco que é a corrida. A cada sessão de treino tem de falar
com o engenheiro e tentar afinar o seu carro, depois falar com
jornalistas, falar com fãs, falar com convidados…
independentemente do que aconteceu dentro de pista. Não há tempo
para lamentar um mau resultado ou um problema, é preciso continuar a
sorrir e alimentar a máquina de marketing que é a grande fonte de
rendimento dos pilotos e dos campeonatos.
Na F1 o cenário é o mesmo, mas com exigência e pressão a dobrar (e o mundo do WTCR já é muito exigente). Só os mais bem preparados e mais forte psicologicamente poderão singrar num desporto assim. São muito os casos de grandes talentos que ficaram pelo caminho porque não conseguiram lidar com a pressão da F1. Outros bateram no fundo, mas conseguiram recuperar. O caso de Romain Grosjean é o exemplo perfeito.
O caso Grosjean
Grosjean era a
grande esperança do automobilismo francês, tendo vencido na Fórmula
Renault francesa, Fórmula 3 Euro Series, Auto GP, GP2 e GP2 Asia
Series por duas vezes. O seu currículo nas categorias de iniciação
antevia uma carreira brilhante na F1, mas a realidade trouxe algo
diferente e o francês enfrentou muitos desafios. Muitos dirão que
nos melhores dias, Grosjean está ao nível dos melhores e os dados
mostram isso, mas é um piloto muito dado a erros. Em 2012 a sua
carreira esteve a beira do fim com o acidente em Spa a ser o
corolário de uma série de erros e acidentes que levaram a uma
suspensão. Podia ter sido o fim, mas o Grosjean reconheceu que
precisava de ajuda, procurou um psicólogo e desde então o piloto
mudou radicalmente. Desde o acidente até a sua ida para a Haas em
2017, foram praticamente inexistentes os erros do piloto francês que
conquistou 10 pódios nesse intervalo de tempo. Voltou a errar na
Haas, com a pressão mediática a ser ainda mais intensa, mas
conseguiu sempre recuperar e vai-se mantendo na F1 apesar de a cada
ano se pensar que é o último.
Kvyat Vs Gasly e o exemplo de Albon
Daniil Kvyat viu a sua carreira subir de forma meteórica e quase à mesma velocidade ficou fora da F1. Depois de uma promoção quase inesperada e uma ascensão demasiado rápida à Red Bull, o russo não conseguiu gerir da melhor forma a sua despromoção da Red Bull para a Toro Rosso, e chegou até a chorar mo rádio, o GP do Mónaco, tendo sido afastado ainda antes do fim do campeonato. Se não fosse por um golpe de sorte (falta de jovens talentos no programa da Red Bull), a sua carreira na F1 estaria acabada. Pierre Gasly passou pelo mesmo, mas conseguiu encontrar a força para se reerguer na Toro Rosso, e até conquistou um inesperado pódio e não tem a carreira em risco mesmo depois da despromoção. Esta é a grande diferença entre um piloto forte mentalmente e outro sem a mesma capacidade.
Alex Albon é outro caso que merece destaque. Esteve várias vezes perto de dizer adeus à sua carreira de piloto mas foi superando as adversidades e em 2019 teve a oportunidade de ouro na Toro Rosso, que não desperdiçou. Mais ainda foi colocado à prova na Red Bull na segunda metade do ano e conseguiu impressionar os responsáveis da equipa, quando a pressão era grande. Sem a força mental que o tailandês tem evidenciado era fácil ter falhado o objetivo.
Hulkenberg vs
Pérez
Nico Hulkenberg e Sergio Pérez são outra dupla que merece alguma análise. Hulkenberg é visto por todos como um grande talento e a sua carreira nas categorias de iniciação fazia antever um futuro brilhante. Se compararmos os feitos do “jovem Hulkenberg” com os do “jovem Pérez”… não há comparação possível. A quantidade de títulos conquistados pelo alemão superam em muito os do mexicano. No entanto na F1, Hulkenberg tem o triste recorde de ter feito 177 GP sem nunca ter subido a um pódio enquanto Pérez em 179 GP tem oito pódios em seu nome. Ambos passaram pela Sauber, ambos correram pela Force India e a sua carreira tem alguns paralelismos interessantes. A grande diferença é que quando Pérez teve oportunidade de subir ao pódio nunca desperdiçou. Hulkenberg teve as mesmas oportunidades mas nunca conseguiu materializa-las e a pressão foi aumentando.
As recuperações
de Massa, Vergne e Perera
Felipe Massa é
outro caso que merece destaque. O piloto brasileiro esteve perto de
se sagrar campeão do mundo perante o seu público mas viu o seu
sonho escapar-lhe entre os dedos, naquela que terá sido a sua
vitória mais amarga. No ano seguinte sofreu um acidente que lhe ia
custando a vida, regressou mas teve dificuldades em voltar ao nível
que tinha mostrado. 2012 terá sido um dos anos mais difíceis para o
brasileiro e nas primeiras 10 corridas apenas conseguiu por quatro
vezes marcar pontos enquanto o seu colega Fernando Alonso conseguiu
seis pódios. Massa, que ponderou abandonar a competição naquele
ano, recorreu a um psicólogo e os resultados saltam à vista: as 10
corridas seguintes foram terminadas nos pontos, seis no top5 das
quais duas no pódio.
Jean Éric Vergne perdeu a vaga na Red Bull para Daniel Ricciardo e penou para regressar ao mais alto nível. No ano seguinte em que foi colega de equipa de Kvyat arrastou-se pelas pistas sem motivação até ser dispensado, sem surpresa. Demorou alguns anos até reencontrar a forma e a alegria de correr, na Fórmula E e no ELMS.
Franck
Perera piloto da Lamborghini bateu-se com Lewis Hamilton nas
categorias de iniciação, teve um contrato com a Toyota, estando
inserido no programa de jovens pilotos mas ficou sem vaga na F1
depois do corte radical da marca nipónica no projeto o que o deixou
sem carreira e sem rumo, lutando contra uma depressão. Demorou
tempo até regressar a um nível competitivo decente, apostando nos
GT´s. Perera admitiu a dificuldade que foi recuperar mentalmente e
adaptar-se a uma realidade nova. Agora
é piloto de fábrica bem estabelecido.
O
exemplo
de Rosberg
Nico Rosberg enfrentou aquele que é considerado por muitos um dos melhores pilotos de sempre da F1, Lewis Hamilton. Ao nível da velocidade pura, Rosberg não estava longe de Hamilton mas o alemão dava-se mal com a guerra psicológica que o britânico provocava. De tal forma que obrigou Rosberg a dedicar-se de corpo e alma no busca pelo seu objetivo, o campeonato. Contratou um profissional para lidar com a parte mental, muitas horas ao treino mental. Desse tempo, 40 minutos diários foram usados na pratica de meditação. Resultado? Rosberg bateu Hamilton e foi campeão, saindo logo de seguida admitindo que a época tinha sido demasiado exigente e que não estaria disposto a sacrificar a sua família como fez.
Mesmo Lewis Hamilton, que agora é provavelmente o piloto mais forte mentalmente do grid, sofreu muito para chegar ao nível que atingiu. Nos primeiros anos era fácil verificar variações na sua performance e em tom de brincadeira, dizia que se ele estivesse chateado com a namorada que não valia a pena contar com ele para as apostas. Hamilton evoluiu muito nesse capítulo e agora é difícil que perca o foco, que cometa erros ou que se deixe abalar com problemas fora do seu controlo. Embora tenha sempre recusado a ideia de trabalhar com psicólogos desportivos, Hamilton beneficiou muito do trabalho de Aki Hintsa. Hintsa era especialista em Cirurgia Ortopédica e Traumatológica e trabalhou como médico e Diretor Médico no paddock de Fórmula 1 durante 11 anos. O seu interesse em melhorar o desempenho de atletas começou enquanto ele trabalhava como médico missionário na Etiópia nos anos 90. Lá, ele estudou a vida do maior corredor de longa distância do mundo, Haile Gebreselassie, e chegou a entender que o sucesso e o desempenho ideal são simplesmente um subproduto do bem-estar de uma pessoa.
Com
base nessa revelação pessoal, o Dr. Hintsa criou o
seu
método, que foi adotado por vários campeões de F1, atletas
internacionais de elite e altos executivos de grandes corporações.
Hintsa
começou a trabalhar com Mika Hakkinen depois do acidente em 1996 e
desde então ganhou ligações fortes na McLaren tendo trabalhado
também
com
Kimi Raikkonen, Lewis Hamitlon e Sebatian Vettel. A fisioterapeuta
que acompanha Hamilton, Angela
Cullen
trabalha para a Hintsa Performance, empresa criada por Aki Hintsa
para acompanhar
atletas de alta competição seguindo a sua metodologia.
Riccardo Ceccarelli médico que trabalhou com vários pilotos, tem uma clínica de alto rendimento onde estuda as várias componentes que fazem de um piloto um potencial campeão. Ceccarelli falou recentemente de Charles Leclerc que desde cedo se evidenciou nos testes de avaliação. Enquanto, por um lado, os “traços de personalidade” mencionados por Ceccarelli são usados para avaliar os talentos muito jovens, cada estrela aprendeu a cuidar de sua área sombria de forma permanente, bem como da luz que emana do seu talento.
A
combinação ideal: a dedicação à competição de campeões como
Schumacher ou Fernando Alonso (ambos em constante desafio, com
qualquer um), e o distanciamento que mostra Kimi Raikkonen, cujo
corpo raramente mostra uma tensão específica. Nesse sentido, o
campeão por excelência é Robert Kubica: “Kubica ofereceu a mais
impressionante gama de dados já vistos. Trabalhar nele não fazia
sentido: ele já estava pronto, por causa de suas próprias
características ”.
Uma
questão de sobrevivência
Não se trata apenas de uma questão de resultados ou competitividade. Na F1 uma boa saúde mental é uma questão de sobrevivência. Se noutros desportos uma distração implica um ponto perdido ou um golo para o adversário, no desporto motorizado uma distração pode ser a diferença entre a vida e a morte.
Jody Scheckter,
campeão de F1 de 1979, começou a sentir que não tinha o foco ideal
para correr na F1. O sul africano começou a cometer demasiados erros
e deixou a competição no ano seguinte a ter conquistado o título.
O piloto admitiu que já não tinha a mentalidade certa para competir
ao mais alto nível e deixou a F1 por temer que algo de pior lhe
pudesse acontecer. Ainda tentou convencer o seu amigo Gilles
Villeneuve a deixar a F1 antes do GP da Bélgica de 1982, mas o
canadiano não deu ouvidos ao seu amigo e ainda enraivecido pela
traição de Didier Pironi, foi para a pista talvez sem o foco devido
e o resultado foi um acidente fatal.
Uma mente sã,
focada, com capacidade de resiliência e uma confiança a toda a
prova são apenas alguns dos muitos aspetos fundamentais para um
piloto de alta competição ser bem sucedido. Para enfrentar a
exigência do desporto dentro e fora de pista. Para domar as máquinas
mais potentes do mundo, enquanto avalia o comportamento dos
adversários e ouve as indicações do engenheiro, isto numa corrida
em que talvez esteja sob pressão do seu chefe de equipa que lhe
exigiu um resultado bom, perante o lhar de milhões de fãs que não
hesitarão em usar as redes sociais para ridicularizar um possível
erro. Os pilotos de topo não são normais… tem uma aura diferente,
uma visão do mundo diferente e uma forma de pensar diferente. Porque
a sua profissão assim o exige.