F1: A velocidade ao ritmo da mente

Por a 13 Abril 2020 14:30

O sucesso no

desporto motorizado exige uma conjugação de fatores nem sempre

fácil de conseguir. Mas há um ingrediente fundamental que faz a

diferença entre os grandes campeões e os bons pilotos.

A primeira vez num

carro de competição é algo inesquecível e que nos acompanha para

o resto da vida. Tudo acontece a uma velocidade tremenda, mas o que

mais impressiona é a exigência mental necessária para controlar

tudo em frações de segundo. No final da experiência chega-se ao

fim e surge inevitavelmente a questão… se isto é assim aqui,

imagino num F1.

Na verdade é

difícil para o “comum dos mortais” imaginar o que será

enfrentar as forças G em curva e na travagem de um F1, ou a força

em aceleração. A juntar a tudo isto, os pilotos têm de lidar com a

dinâmica do carro, com um volante complexo que comanda um sem fim de

funções e configurações, com a estratégia, com a sinalização

dos comissários, com os adversários… Dizer que pilotar um F1 hoje

em dia é fácil é como dizer que é fácil domar um leão; é fácil

para quem sabe, dá muito trabalho e mesmo assim pode correr mal.

Tudo isto exige

treino intenso, ininterrupto e uma dedicação sem fim. Horas e horas

no carro a aperfeiçoar a técnica. E como se isso não bastasse, há

também a componente física. A exigência física de um F1, em que

os pilotos passam praticamente 8 horas dentro do carro, numa posição

em que o corpo não está concebido para estar, sujeito a calor

extremo, forças extremas, isto durante 20 fins de semana, exige do

piloto uma preparação física a toda a prova. A frequência

cardíaca média ronda as 180 pulsações por minuto, o que durante

uma corrida de hora e meia provoca um desgaste extremo no organismo.

É por isso que vemos os pilotos a terem cuidados redobrados com a

sua forma física.

Os primeiros

cuidados

Ayrton Senna percebeu cedo que não estava preparado fisicamente para a F1 e sem a parte física apurada, não poderia ter o rendimento máximo desejado e recorreu ao preparador Nuno Cobra para ganhar a força e resistência necessária para estar ao mais alto nível de forma constante. Terá sido dos primeiros pilotos a levar mais a sério a questão física (e mental) e essa preocupação ganhou outro impulso com Michael Schumacher, famoso por levar consigo um ginásio onde treinava com uma regularidade religiosa.

Se nos anos 90 a

questão do treino físico era pouco comentada, hoje faz parte do dia

a dia dos pilotos e é inconcebível que qualquer piloto de topo não

tenha um programa de condicionamento físico, independentemente da

categoria onde compete. E as cargas físicas que a que se sujeitam em

nada ficam a dever a outros desportistas de alto nível. Jenson

Button por exemplo, tornou-se praticante de triatlo e os seus tempos

não ficavam muito longe dos feitos por atletas olímpicos.

A força mental

Toda esta dedicação,

todo este trabalho exige algo fundamental na F1… força mental.

Tudo o que foi acima referido, todo o trabalho, todo o talento só

faz sentido se o piloto tiver a capacidade mental para lidar com a

exigência. E por muito fácil que possa parecer a vida de um piloto,

a realidade é muito diferente.

Lembro-me sempre de

Tiago Monteiro quando vai a Vila Real correr. O mar de gente que

enche a capital transmontana quer ver o ídolo nacional em ação. É

impossível contar a quantidade de autógrafos, selfies,

cumprimentos que o piloto português tem de dar. Num fim de semana

tem de interagir com centenas de pessoas, nos quais se incluem fãs,

patrocinadores, representantes de várias entidades, tudo isto sem

perder o foco que é a corrida. A cada sessão de treino tem de falar

com o engenheiro e tentar afinar o seu carro, depois falar com

jornalistas, falar com fãs, falar com convidados…

independentemente do que aconteceu dentro de pista. Não há tempo

para lamentar um mau resultado ou um problema, é preciso continuar a

sorrir e alimentar a máquina de marketing que é a grande fonte de

rendimento dos pilotos e dos campeonatos.

Na F1 o cenário é o mesmo, mas com exigência e pressão a dobrar (e o mundo do WTCR já é muito exigente). Só os mais bem preparados e mais forte psicologicamente poderão singrar num desporto assim. São muito os casos de grandes talentos que ficaram pelo caminho porque não conseguiram lidar com a pressão da F1. Outros bateram no fundo, mas conseguiram recuperar. O caso de Romain Grosjean é o exemplo perfeito.

O caso Grosjean

Grosjean era a

grande esperança do automobilismo francês, tendo vencido na Fórmula

Renault francesa, Fórmula 3 Euro Series, Auto GP, GP2 e GP2 Asia

Series por duas vezes. O seu currículo nas categorias de iniciação

antevia uma carreira brilhante na F1, mas a realidade trouxe algo

diferente e o francês enfrentou muitos desafios. Muitos dirão que

nos melhores dias, Grosjean está ao nível dos melhores e os dados

mostram isso, mas é um piloto muito dado a erros. Em 2012 a sua

carreira esteve a beira do fim com o acidente em Spa a ser o

corolário de uma série de erros e acidentes que levaram a uma

suspensão. Podia ter sido o fim, mas o Grosjean reconheceu que

precisava de ajuda, procurou um psicólogo e desde então o piloto

mudou radicalmente. Desde o acidente até a sua ida para a Haas em

2017, foram praticamente inexistentes os erros do piloto francês que

conquistou 10 pódios nesse intervalo de tempo. Voltou a errar na

Haas, com a pressão mediática a ser ainda mais intensa, mas

conseguiu sempre recuperar e vai-se mantendo na F1 apesar de a cada

ano se pensar que é o último.

Kvyat Vs Gasly e o exemplo de Albon

Daniil Kvyat viu a sua carreira subir de forma meteórica e quase à mesma velocidade ficou fora da F1. Depois de uma promoção quase inesperada e uma ascensão demasiado rápida à Red Bull, o russo não conseguiu gerir da melhor forma a sua despromoção da Red Bull para a Toro Rosso, e chegou até a chorar mo rádio, o GP do Mónaco, tendo sido afastado ainda antes do fim do campeonato. Se não fosse por um golpe de sorte (falta de jovens talentos no programa da Red Bull), a sua carreira na F1 estaria acabada. Pierre Gasly passou pelo mesmo, mas conseguiu encontrar a força para se reerguer na Toro Rosso, e até conquistou um inesperado pódio e não tem a carreira em risco mesmo depois da despromoção. Esta é a grande diferença entre um piloto forte mentalmente e outro sem a mesma capacidade.

Alex Albon é outro caso que merece destaque. Esteve várias vezes perto de dizer adeus à sua carreira de piloto mas foi superando as adversidades e em 2019 teve a oportunidade de ouro na Toro Rosso, que não desperdiçou. Mais ainda foi colocado à prova na Red Bull na segunda metade do ano e conseguiu impressionar os responsáveis da equipa, quando a pressão era grande. Sem a força mental que o tailandês tem evidenciado era fácil ter falhado o objetivo.

Link para o vídeo AQUI

Hulkenberg vs

Pérez

Nico Hulkenberg e Sergio Pérez são outra dupla que merece alguma análise. Hulkenberg é visto por todos como um grande talento e a sua carreira nas categorias de iniciação fazia antever um futuro brilhante. Se compararmos os feitos do “jovem Hulkenberg” com os do “jovem Pérez”… não há comparação possível. A quantidade de títulos conquistados pelo alemão superam em muito os do mexicano. No entanto na F1, Hulkenberg tem o triste recorde de ter feito 177 GP sem nunca ter subido a um pódio enquanto Pérez em 179 GP tem oito pódios em seu nome. Ambos passaram pela Sauber, ambos correram pela Force India e a sua carreira tem alguns paralelismos interessantes. A grande diferença é que quando Pérez teve oportunidade de subir ao pódio nunca desperdiçou. Hulkenberg teve as mesmas oportunidades mas nunca conseguiu materializa-las e a pressão foi aumentando.

Link para vídeo AQUI

As recuperações

de Massa, Vergne e Perera

Felipe Massa é

outro caso que merece destaque. O piloto brasileiro esteve perto de

se sagrar campeão do mundo perante o seu público mas viu o seu

sonho escapar-lhe entre os dedos, naquela que terá sido a sua

vitória mais amarga. No ano seguinte sofreu um acidente que lhe ia

custando a vida, regressou mas teve dificuldades em voltar ao nível

que tinha mostrado. 2012 terá sido um dos anos mais difíceis para o

brasileiro e nas primeiras 10 corridas apenas conseguiu por quatro

vezes marcar pontos enquanto o seu colega Fernando Alonso conseguiu

seis pódios. Massa, que ponderou abandonar a competição naquele

ano, recorreu a um psicólogo e os resultados saltam à vista: as 10

corridas seguintes foram terminadas nos pontos, seis no top5 das

quais duas no pódio.

Jean Éric Vergne perdeu a vaga na Red Bull para Daniel Ricciardo e penou para regressar ao mais alto nível. No ano seguinte em que foi colega de equipa de Kvyat arrastou-se pelas pistas sem motivação até ser dispensado, sem surpresa. Demorou alguns anos até reencontrar a forma e a alegria de correr, na Fórmula E e no ELMS.

Franck

Perera piloto da Lamborghini bateu-se com Lewis Hamilton nas

categorias de iniciação, teve um contrato com a Toyota, estando

inserido no programa de jovens pilotos mas ficou sem vaga na F1

depois do corte radical da marca nipónica no projeto o que o deixou

sem carreira e sem rumo, lutando contra uma depressão. Demorou

tempo até regressar a um nível competitivo decente, apostando nos

GT´s. Perera admitiu a dificuldade que foi recuperar mentalmente e

adaptar-se a uma realidade nova. Agora

é piloto de fábrica bem estabelecido.

O

exemplo

de Rosberg

Nico Rosberg enfrentou aquele que é considerado por muitos um dos melhores pilotos de sempre da F1, Lewis Hamilton. Ao nível da velocidade pura, Rosberg não estava longe de Hamilton mas o alemão dava-se mal com a guerra psicológica que o britânico provocava. De tal forma que obrigou Rosberg a dedicar-se de corpo e alma no busca pelo seu objetivo, o campeonato. Contratou um profissional para lidar com a parte mental, muitas horas ao treino mental. Desse tempo, 40 minutos diários foram usados na pratica de meditação. Resultado? Rosberg bateu Hamilton e foi campeão, saindo logo de seguida admitindo que a época tinha sido demasiado exigente e que não estaria disposto a sacrificar a sua família como fez.

Mesmo Lewis Hamilton, que agora é provavelmente o piloto mais forte mentalmente do grid, sofreu muito para chegar ao nível que atingiu. Nos primeiros anos era fácil verificar variações na sua performance e em tom de brincadeira, dizia que se ele estivesse chateado com a namorada que não valia a pena contar com ele para as apostas. Hamilton evoluiu muito nesse capítulo e agora é difícil que perca o foco, que cometa erros ou que se deixe abalar com problemas fora do seu controlo. Embora tenha sempre recusado a ideia de trabalhar com psicólogos desportivos, Hamilton beneficiou muito do trabalho de Aki Hintsa. Hintsa era especialista em Cirurgia Ortopédica e Traumatológica e trabalhou como médico e Diretor Médico no paddock de Fórmula 1 durante 11 anos. O seu interesse em melhorar o desempenho de atletas começou enquanto ele trabalhava como médico missionário na Etiópia nos anos 90. Lá, ele estudou a vida do maior corredor de longa distância do mundo, Haile Gebreselassie, e chegou a entender que o sucesso e o desempenho ideal são simplesmente um subproduto do bem-estar de uma pessoa.

Com

base nessa revelação pessoal, o Dr. Hintsa criou o

seu

método, que foi adotado por vários campeões de F1, atletas

internacionais de elite e altos executivos de grandes corporações.

Hintsa

começou a trabalhar com Mika Hakkinen depois do acidente em 1996 e

desde então ganhou ligações fortes na McLaren tendo trabalhado

também

com

Kimi Raikkonen, Lewis Hamitlon e Sebatian Vettel. A fisioterapeuta

que acompanha Hamilton, Angela

Cullen

trabalha para a Hintsa Performance, empresa criada por Aki Hintsa

para acompanhar

atletas de alta competição seguindo a sua metodologia.

Riccardo Ceccarelli médico que trabalhou com vários pilotos, tem uma clínica de alto rendimento onde estuda as várias componentes que fazem de um piloto um potencial campeão. Ceccarelli falou recentemente de Charles Leclerc que desde cedo se evidenciou nos testes de avaliação. Enquanto, por um lado, os “traços de personalidade” mencionados por Ceccarelli são usados para avaliar os talentos muito jovens, cada estrela aprendeu a cuidar de sua área sombria de forma permanente, bem como da luz que emana do seu talento.

A

combinação ideal: a dedicação à competição de campeões como

Schumacher ou Fernando Alonso (ambos em constante desafio, com

qualquer um), e o distanciamento que mostra Kimi Raikkonen, cujo

corpo raramente mostra uma tensão específica. Nesse sentido, o

campeão por excelência é Robert Kubica: “Kubica ofereceu a mais

impressionante gama de dados já vistos. Trabalhar nele não fazia

sentido: ele já estava pronto, por causa de suas próprias

características ”.

Uma

questão de sobrevivência

Não se trata apenas de uma questão de resultados ou competitividade. Na F1 uma boa saúde mental é uma questão de sobrevivência. Se noutros desportos uma distração implica um ponto perdido ou um golo para o adversário, no desporto motorizado uma distração pode ser a diferença entre a vida e a morte.

Link para vídeo AQUI

Jody Scheckter,

campeão de F1 de 1979, começou a sentir que não tinha o foco ideal

para correr na F1. O sul africano começou a cometer demasiados erros

e deixou a competição no ano seguinte a ter conquistado o título.

O piloto admitiu que já não tinha a mentalidade certa para competir

ao mais alto nível e deixou a F1 por temer que algo de pior lhe

pudesse acontecer. Ainda tentou convencer o seu amigo Gilles

Villeneuve a deixar a F1 antes do GP da Bélgica de 1982, mas o

canadiano não deu ouvidos ao seu amigo e ainda enraivecido pela

traição de Didier Pironi, foi para a pista talvez sem o foco devido

e o resultado foi um acidente fatal.

Uma mente sã,

focada, com capacidade de resiliência e uma confiança a toda a

prova são apenas alguns dos muitos aspetos fundamentais para um

piloto de alta competição ser bem sucedido. Para enfrentar a

exigência do desporto dentro e fora de pista. Para domar as máquinas

mais potentes do mundo, enquanto avalia o comportamento dos

adversários e ouve as indicações do engenheiro, isto numa corrida

em que talvez esteja sob pressão do seu chefe de equipa que lhe

exigiu um resultado bom, perante o lhar de milhões de fãs que não

hesitarão em usar as redes sociais para ridicularizar um possível

erro. Os pilotos de topo não são normais… tem uma aura diferente,

uma visão do mundo diferente e uma forma de pensar diferente. Porque

a sua profissão assim o exige.

Subscribe
Notify of
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
últimas Autosport Exclusivo
últimas Autosport
autosport-exclusivo
últimas Automais
autosport-exclusivo
Ativar notificações? Sim Não, obrigado