Mário Castro: Piloto vs Co-piloto: Uma visão, dois pontos de vista…
Por Mário Castro
Mário Castro goza duma situação que não é muito habitual, já que na sua vida profissional é navegador nos ralis e passa para a bacquet do lado esquerdo sempre que pode, sendo daí que vem, uma visão, dois pontos de vista. Ei-la, na primeira pessoa…
Muitas vezes colocam-me a questão de qual das posições acho mais interessante e importante, e por isso decidi de alguma forma dar o meu ponto de vista essencialmente para aqueles que nunca estiveram em nenhuma delas. Eu adoro as duas e não deixava nenhuma em detrimento da outra, a não ser claro, por motivos de força maior.
Ainda que os dois membros da equipa estejam dentro do mesmo carro e tanto as funções de um como outro sejam preponderantes para a obtenção de bons resultados, existem diferentes funções, afazeres e formas de estar antes e durante as provas por parte do piloto e do co-piloto.
Desde há seis anos para cá, tenho tido a oportunidade de estar nas duas funções ainda que de uma forma profissional como co-piloto e de uma forma amadora como piloto, mas sem dúvida que dá para perceber bem as diferenças entre cada função e cada uma delas ajuda-me a perceber melhor as necessidades da outra.
A responsabilidade é exatamente a mesma para os dois ainda que o piloto esteja mais vulnerável a erros do que o co-piloto, pois na hora da verdade (em plenas provas especiais) o piloto tem um trabalho de muito mais improviso, enquanto o navegador quase se limita (salvo raras exceções) a ditar notas.
Mas antes do rali ir para a estrada o trabalho do co-piloto é fundamental. Tem de estar sempre atento à publicação dos regulamentos e sua devida leitura para a partir daí começar a planear o rali juntamente com o piloto e restante equipa.
Falando do meu caso em particular (porque tudo depende da equipa onde estamos inseridos) eu, como navegador, tenho de delinear em conjunto com a equipa todo o programa do rali desde os testes que antecedem a prova até ao final desta.
Trabalho esse que passa por decidir (sempre em conjunto com o piloto e equipa) onde e quando testar, o que testar, marcação de estadias, planificação dos reconhecimentos, pneus a levar para a prova, etc, etc…
Já nos dias dos reconhecimentos é a altura em que é feito um dos trabalhos mais importantes para que os resultados sejam positivos. É aqui que tanto o piloto como o navegador têm de estar em plena sintonia. Normalmente são os pilotos que escolhem o tipo/sistema de notas de andamento mas é aqui também que o navegador pode e deve opinar sobre as mesmas para que estas estejam o mais perfeitas possível no dia de prova.
E digo o mais perfeitas possível porque não existem notas de andamento perfeitas, nem tão pouco sistemas de notas perfeitos.
Há realmente umas de melhor leitura/compreensão que outras, mas nunca perfeitas, e eu já andei com vários pilotos e vários sistemas de notas e em todas elas vejo coisas muito boas e interessantes e outras menos boas, e que do meu ponto de vista não acrescentam nada de positivo no andamento do piloto.
O mais importante é que o sistema de notas tenha coerência e que o piloto se identifique mentalmente com o que lá está escrito e posteriormente relatado pelo navegador.
Feito todo esse trabalho dos reconhecimentos, chegamos ao dia de prova e é aí que a forma de estar dentro e fora do carro difere mais entre o piloto e o co-piloto.
O piloto começa a acusar a pressão psicológica de estar a chegar a hora da verdade. Começamos a pensar no traçado das especiais a todos os instantes, começamos a imaginar qual a melhor forma de abordar cada especial, cada curva. Começamos a pensar se as decisões que tomamos nos testes foram as mais assertivas, começamos a pensar qual será a melhor escolha de pneus, etc…
Tudo isto também me passa pela cabeça enquanto navegador mas para além disso temos de rever tudo o que respeita ao regulamento da prova como horários, controles horários, planificação das assistências, zonas ideais para troca de pneus entre especiais, etc…
Chegados a uma prova especial (troço) é aqui que tudo é diferente ainda que estejamos no “mesmo barco”. Como piloto tento desligar-me de tudo e focar-me apenas na condução. Acho que no minuto antes do arranque consigo “visualizar” toda a especial ou pelo menos os locais mais importantes para que ao chegar a esses locais tenha uma capacidade de reação instantânea e natural. Como navegador também faço uma reflexão da especial tentando relembrar-me de quais os locais onde tenho de ser mais intuitivo na leitura das notas de maneira a que o piloto não cometa um erro. Durante a especial, os níveis de concentração são elevadíssimos para ambas as partes mas o piloto está sujeito a uma pressão muito maior. Temos de ouvir as notas, temos de confiar no que está lá escrito. Muitas vezes dou por mim a pensar… Se o Ricardo (ndr, Ricardo Cunha, navegador) me está a dar esta nota, por muito desconfiado que eu esteja relativamente à mesma, tenho de acreditar nela porque se passei lá três ou quatro vezes nos reconhecimentos e achei que era assim, porquê que agora terei de achar que não é!!!… Para além disso o piloto tem de ir atento a tudo quanto vai aparecendo na estrada pois há muita coisa que não estava lá nos reconhecimentos e então temos de tomar muitas decisões perante cada situação. Quando estou na função do piloto tento manter a calma. Não me enervo com nada e foco-me apenas e só em fazer o meu melhor e essencialmente em estar determinado. Se não estamos determinados em fazer algo, nunca vamos conseguir grandes resultados.
Na função de navegador a concentração também é a palavra de ordem tal como a determinação. Existem muitas formas de ditar/cantar as notas mas eu pessoalmente gosto de as ditar com ritmo, determinação e forte dicção. Quando digo forte dicção, não é andar aos berros dentro do carro. É sim tentar descrever a estrada e sua fluidez para um tom de voz. Um tom de voz que pode ser mais encorajador, mas também por vezes mais retractivo de maneira a que o piloto entenda em que situação está. Se está numa fase de ataque ou numa fase mais defensiva para abordar uma curva. Tento de alguma forma entender o estado de espírito do piloto ao longo da especial e perante isso tentar puxar mais ou menos por ele. Consoante a nossa posição em termos de classificação no rali temos de gerir e ajudar a gerir o ritmo de maneira a que o resultado seja o mais perto do desejado.
Chegados ao final de uma especial, para o piloto é um momento de descompressão total. Sentimento de está feito, não interessando tanto se está bem ou mal, mas sim de que fez o que foi possível perante todas as adversidades que nos confrontamos durante uma especial. Para o navegador é também o mesmo sentimento mas mal saímos do CH stop, enquanto como piloto entro numa fase de relaxamento, como navegador tenho de continuar focado no meu trabalho. Tenho de estar atento na leitura do road book, tenho de estar atento aos tempos de ligação entre cada controlo horário, tenho de ver se tudo está bem com o carro, tenho de ver pressões de pneus, etc, etc… isto até entrar novamente noutra especial.
Tanto a função de piloto como co piloto, são extremamente importantes mas há um facto a que não podemos fugir.
Como é óbvio há os bons e os maus pilotos e o mesmo se passa com os co pilotos, mas um co piloto pode conseguir fazer-se passar por um grande co-piloto mas um piloto por muito bem que se promova, se não souber conduzir não consegue fazer-se passar por um grande piloto!!!…
Espero que de alguma forma tenha transmitido algumas das diferenças…
Daniel Elena do lado esquerdo do travão de mão
Mário Castro não é caso único no mundo dos ralis, pois de tanto andarem ao lado, é natural, de vez em quando quererem ver como é com o volante na mão. Há muitos exemplos, mas quedamos-nos pelo navegador mais titulado da história dos ralis, Daniel Elena, que ao lado de Sébastien Loeb assegurou nove títulos de Campeão do Mundo de Ralis entre 2004 e 2012.
Apesar da longa passagem pelo lado direito do travão de mão, Elena foi mudando, dez vez em quando de lado, e em 2011, decidiu festejar os 100 anos do Rali de Monte Carlo, que esse ano não fez parte do WRC, na bacquet do lado esquerdo.
Foi um dos cabeças de cartaz da edição centenária do Rali de Monte Carlo e aos comandos de um Citroën DS3 R3T, o, na altura heptacampeão mundial dos ‘penduras’ (tem hoje nove títulos, tantos quantos Loeb), sem pressão competitiva, terminou a prova na 52ª posição, mostrando-se fascinado com o que assistiu: “Foi um grande privilégio, não só terminar a prova, mas correr na noite do Turini. Diverti-me imenso”, referiu Elena, que dias depois voltou para o banco do lado direito no Rali da Suécia, deixando o divertimento todo novamente para Sébastien Loeb.