As Catedrais dos Ralis em Portugal
Por Nuno Branco
Fotos Arquivo AutoSport e Martin Holmes Rallying
Numa altura em que não se sabe ainda se e quando a caravana do Mundial de Ralis vai regressar a Portugal este ano, recordamos as Catedrais onde esperamos voltar a ver a ‘nata’ do Mundial de Ralis o mais rapidamente possível. Se Sintra há muito saiu do mapa, Fafe e Arganil estão à espera.
Depois de Fafe, em 2015, Arganil também já voltou a ser palco do reencontro do Rali de Portugal com o seu passado. Numa altura em que é aguardada com expectativa a decisão quanto ao regresso da elite mundial aos locais mais emblemáticos da história da nossa prova, recuperamos memórias de lugares que se tornaram autênticas “catedrais” dos ralis, Fafe, Arganil e Sintra, e o testemunho de quem ali viveu dias inesquecíveis, atrás do volante…
Independentemente do local, Fafe, Arganil ou Sintra, o dia da passagem do Rali de Portugal era sempre o mais longo do ano. Para a gente que ali acorria desde muito cedo para ver os seus ídolos, as fogueiras, o farnel e as bebidas eram uma companhia indispensável. No inverno de março, o cobertor tornava-se uma espécie de fiel amigo para enganar o frio quase sempre cortante. Para outros, o vinho assumia esse papel. Perante tanta animação, nem a GNR escapava a pequenas provocações.
Invariavelmente, quando surgiam os primeiros laivos de claridade e com eles, o som dos helicópteros das equipas Audi e Lancia, que começavam a sobrevoar as classificativas, com mecânicos a bordo, prontos a descer em qualquer lugar, caso um dos seus carros fosse obrigado a parar. A curta diferença entre Hannu Mikkola e Markku Alen à entrada da última etapa, em Arganil, tornava a edição de 1984 do Rali de Portugal numa das mais disputadas de sempre e 43 segundos significavam quase nada, quando os 56,5 Km de Arganil teriam ainda que ser percorridos por duas vezes. Os primeiros raios de luz também revelavam a dimensão humana que se vivia naquelas encostas. De Vale de Maceira aos ganchos de Lomba, passando pela “casa do PPD”, Mosteiro de Folques, Salgueiro ou Selada das Eiras, milhares de pessoas contornavam os demolidores caminhos do troço e se alguns ajustavam contas com o sono, muitos outros davam ainda continuidade à festa, comendo, bebendo e emprestando uma voz já rouca ao que lhes ia na alma. Às 6h32m, ouvem-se os primeiros ecos do motor do Audi Quattro de Mikkola nos Penedos Altos e minutos depois, Alen parte no seu encalço. Quem assiste, rejubila e dá força a Alen que, pilotando o Lancia 037 de duas rodas motrizes assume o papel de David contra um Golias de tracção integral. Em vários pontos da Classificativa há repórteres de rádio a recolher tempos, para dar conta dos parciais nas emissões em directo.
Percorrida mais de meia centena de quilómetros a fundo, o homem da Lancia ganhava 33 segundos a Mikkola, reduzindo a diferença para apenas 10. O melhor rali do Mundo estava ao rubro, confirmando-se os prognósticos de César Torres, que anualmente vaticinava que o vencedor não estaria encontrado até à passagem por Arganil. Antes ou depois disso, dependendo do ano, em Fafe e Sintra não era muito diferente, com os milhares de espectadores a darem um colorido fantástico às três principais zonas para se disputarem ralis em Portugal
Em mais de quatro décadas de vida do rali, locais como Fafe, Arganil, Sintra, Montejunto, Lousã, Cabreira, Senhora da Graça, Marão, Viseu, entre outros, revelaram-se importantes pilares, sobre os quais assentou o êxito, o carácter e a identidade da prova portuguesa. Pela sua morfologia, pelo espetáculo que proporcionavam e pela influência que tinham no desenrolar dos acontecimentos, alguns desses sítios tornaram-se autênticos pontos de confluência de milhares de adeptos que ali acorriam anualmente em “peregrinação”, promovendo lugares recônditos, esquecidos durante os restantes dias do ano, a autênticas “catedrais” de celebração da paixão pelo desporto automóvel. Dessas, destacamos, três, Fafe, Arganil e Sintra.
Zona-Espectáculo
Foi no ano do nascimento do Campeonato do Mundo, em 1973, que o Rali de Portugal integrou pela primeira vez uma Classificativa nos arredores de Fafe. A versão que ficaria conhecida como “Fafe-Lagoa”, depressa se tornaria uma das mais populares da ronda minhota, especialmente nos metros finais, junto ao campo desportivo de Rossas, onde os mais rápidos cortavam completamente numa direita, colocando uma das rodas no ar. A partir de 1984, com a introdução do troço Fafe-Lameirinha, as imagens de Fafe correriam o mundo. Os espectaculares saltos da Pereira e da Pedra Sentada e ainda a descida do Confurco, desenhada num anfiteatro natural, com a célebre passagem no asfalto, tornaram-se autênticos lugares de antologia, conquistando a preferência de milhares de espectadores, com uma forte presença espanhola, que atravessava anualmente o rio Minho para ver o ídolo Carlos Sainz.
No WRC Fafe Rali Sprint deste ano, é esperada novamente “casa cheia” para testemunhar o regresso do circo do WRC a um dos seus ex-libris. Na última década, os ralis alteraram-se por completo, mas para muitos, ao virarem costas a grandes “catedrais” como Fafe, Arganil ou Sintra, perderam a sua identidade. Mais do que um acontecimento desportivo ou promocional, o Fafe Rally Sprint volta a recuperar alguma da alma perdida pelo WRC, provando que os ralis actuais podem e devem manter a modernidade, sem contudo esquecer as suas raízes…
Serra das tormentas
Se os grandes nomes dos ralis do século XX forem questionados sobre os troços mais marcantes das suas carreiras, a palavra “Arganil” aparecerá certamente na resposta…
Corria o mês de Agosto de 1960, quando os participantes do I Rally a Tábua, atravessaram as ruas de Arganil com destino à rampa do Mont’alto, onde realizariam uma prova complementar. Nessa altura, a organização percebera que a Serra do Açor reunia algumas das mais desafiantes estradas florestais do país e após a primeira edição do Rallye Internacional TAP, em 1967, a fama da região, ganhou eco além fronteiras.
Durante anos a fio, pilotos portugueses e estrangeiros chegavam semanas antes da prova para intensas sessões de testes. A simbiose com a população local era perfeita. Do Café dos Arcos, à Pensão Canário, passando pelo “Peras Engraxador”, todos conheciam Nicolas, Lampinen, Alen ou Warmbold. A extensão e a dureza dos troços e o consequente desafio para carros e pilotos, depressa tornariam a passagem pelas florestais de Arganil num dos pontos altos do Rali de Portugal. Da magia de Walter Rohrl em 1980, quando ganhou mais de quatro minutos a Markku Alen, perante um nevoeiro cerradíssimo, às emocionantes lutas na era do Grupo B, várias foram as vezes em que ali se decidiu o vencedor. A diluviana edição de 2001 afastou o Mundial de Ralis daquelas paragens, mas locais como o Mosteiro de Folques, a Selada das Eiras ou a Casa do PPD, permanecerão na memória de milhares de espetadores que anualmente ali se deslocavam em romaria…
Da emoção à loucura
Quando em 1976, a equipa liderada por César Torres delineou integralmente na Serra de Sintra, a última etapa do “Vinho do Porto”, num esquema de rondas noturnas, percorrido várias vezes, estaria certamente longe de imaginar que, mais do que uma prova desportiva, a noite de Sintra ganharia contornos de um grandioso festival com três palcos – Lagoa Azul, Peninha e Sintra – onde se assistiriam a soberbos recitais de condução, como aquele que Mikkola e Alen proporcionaram em 1978. Como em qualquer evento desta natureza, o público começava a chegar na véspera com saco-cama e mochila às costas e, horas antes da primeira atuação, milhares de espectadores preenchiam já por completo o perímetro do maciço granítico. Muito da festa também acontecia horas antes dos pilotos fazerem o seu número.
De ano para ano subia o número de espetadores e as preocupações com a segurança levaram, em 1982, a organização a antecipar as rondas de Sintra para a primeira etapa, disputando-se em pleno dia. Mas nesta altura, os ralis gozavam de uma enorme popularidade, a que não era alheio o surgimento dos carros do Grupo B e nada fazia parar a crescente onda de entusiasmo em torno do fenómeno “Sintra”. Fazia-se “gazeta” no emprego e algumas escolas fechavam para que ninguém faltasse à festa do dia de “São Rali”. Pouco mais de duas dezenas de quilómetros acolhiam centenas de milhares de espetadores e muitos desafiavam o perigo, colocando-se na estrada, a poucos centímetros de máquinas com quase 500 cavalos. Temia-se que a loucura pudesse terminar em tragédia, o que acabou por acontecer. Após o acidente de Joaquim Santos na Lagoa Azul em 1986, o Rali de Portugal despediu-se daquelas estradas e, anos depois, a Serra acabaria por ficar órfã de provas de automóveis. Atualmente, o Rali de Portugal Histórico é a única competição a ter lugar em Sintra, constituindo um excelente pretexto para matar saudades das memoráveis noites da década de 70…
“O Público merecia espetáculo…”
De Fafe, chegam algumas das melhores memórias da carreira de Rui Madeira, que recorda com orgulho a ”vitória à geral no troço de Luilhas e um 2º lugar em Fafe-Lameirinha no Rali de Portugal de 1997, com o Subaru Impreza Wrx contra os WRC.” Para o vencedor da Taça FIA de Grupo N, “Fafe-Lameirinha era um dos troços míticos do Rali de Portugal e o público presente merecia sempre o espectáculo dos pilotos. Era uma classificativa com variação de ritmo, genericamente rápida, mas intervalada com algumas partes lentas, ao estilo da Finlândia, mas mais simples, pois tinha muita visibilidade, o que a tornava mais previsível. Mesmo com bom piso, sobretudo nas primeiras passagens, exigia dos pilotos um elevado nível de concentração. A passagem do Confurco era um dos pontos de maior espectáculo e os saltos simbolizavam um momento épico para os espectadores, exigindo no entanto alguma cautela aos pilotos, pois se algo corresse mal, seria sinónimo de desistência. Pessoalmente preferia o salto da Pereira, que era mais exigente do ponto de vista técnico. A aproximação ao salto devia ser feita com cuidado, porque se chegássemos lá pendurados, podíamos cair de bico. Era aconselhável entrar mais devagar e depois atacar com o acelerador a fundo.” O piloto não esquece o carinho do público, sempre presente, revelando que o “entusiasmo dos espectadores era vivido dentro do habitáculo com grande intensidade, marcando a diferença para os outros ralis do WRC, ou não fossemos latinos.” Das muitas histórias que ali viveu, Rui Madeira destaca um Sábado dedicado a reconhecimentos, em 1991.”Logo pela manhã, caiu um fortíssima tempestade e o dilúvio tornou os treinos algo perigosos. O Fanã (Fernando Prata), na altura co-piloto do Carlos Bica descobriu uma tasca no Pedraído, onde se comia o melhor arroz de cabidela do mundo. Conclusão: para os pilotos presentes, acabaram-se os treinos e o almoço passou a ser jantar. Posteriormente, vários amigos, entre os quais o saudoso Jorge Recalde, os membros da Ralliart , Grifone ou M-Sport provaram o famoso prato na nossa companhia.” Por tudo isto, Madeira saúda a “brilhante ideia de fazer regressar a esta zona, a caravana do WRC.”
“Arganil, a catedral das catedrais…”
Jorge Ortigão conheceu por diversas ocasiões o doce sabor de chegar ao Estoril, terminando por 11 vezes o Rali de Portugal. Profundo conhecedor das Classificativas do nosso país, não hesita em afirmar que “Arganil, nas suas variadíssimas versões, suplantava todos as outras, não só por ser em terra, o meu terreno preferido, mas porque reunia muitos outros predicados: qualidade do piso, exigência de condução pela extensão e diversidade do traçado, condições meteorológicas e ainda a sua beleza paisagística.” A primeira experiência na Serra do Açor ocorre no TAP de 1973 e “já nessa altura, Arganil era considerado um dos pontos fulcrais do Rali, ganhando importância à medida que a extensão do traçado aumentava. Para mim, que corria na maioria das vezes com carros de menor potência, aproveitava o seu piso demolidor, muitas vezes com chuva, nevoeiro e «crocodilos» para fazer valer o meu conhecimento da zona e contrabalançar a falta de cavalos.” Ortigão não esquece a célebre versão dos 56,5 km, que exigiam “quase uma hora de mão-de-obra! Não podíamos deixar de sentir algum receio, principalmente pelos enormes precipícios existentes ao longo de quase todo o percurso. Impunha muito respeito!”
Para o piloto, cuja carreira haveria de terminar em 1988, precisamente em Arganil, com uma desistência no Rali da Figueira da Foz, muitos episódios ali vividos não serão esquecidos: “No Rali de Portugal de 79, capotámos perto do final do troço. Com a ajuda do público, e usando um pára-brisas improvisado, conseguimos ainda terminar em 9º. E em 1983, com o Starlet de Gr. 2, desistimos por falta de gasolina, motivada por um furo na bóia de um dos carburadores. Chegámos a receber gasolina de um espectador na povoação do Salgueiro, mas tal não evitou o desfecho inglório, quando estávamos bem classificados.” Ainda hoje, Jorge Ortigão não resiste a revisitar aqueles caminhos: “com quase todas as estradas já alcatroadas, é muito fácil percorrer a maravilhosa Serra do Açor, da Aldeia das Dez ao Fajão, passando pelo inesquecível Piódão. Recomendo vivamente!”
“Andávamos todos a fundo…
Ninguém previa que, naquele dia 7 de Março de 1984, um português pudesse intrometer-se na luta dos pilotos de fábrica durante a primeira etapa do Rali de Portugal. Mas a verdade é que António Rodrigues, navegado por José Cotter, rubricou uma exibição memorável, discutindo os melhores tempos nas Classificativas de Sintra com nomes como Alen, Toivonen, Mikkola, ou Rohrl, o que “era pouco comum em pilotos privados. Ainda por cima, com um carro inferior, já que utilizei um «Evolução 1» do 037, que era carro de treinos da Lancia e nunca havia sido utilizado em competição. Recebi-o nas vésperas, em Lisboa e dei umas voltas com o Giorgio Pianta, que me disse que o 037 era como um fórmula, e devia ser guiado como tal, com suavidade, sem movimentos bruscos. Era de facto formidável. Um verdadeiro carro de corridas.” António Rodrigues lembra as dificuldades da Serra de Sintra, “começando na Lagoa Azul, um troço largo e bastante rápido, ao contrário da Peninha, muito mais estreito, a impor cautela. Sintra tinha um início rápido, mas depois, na parte final, a descer, era extremamente exigente.” Os tempos do piloto português surpreendiam tudo e todos, registando 2m15s na terceira passagem pela Lagoa Azul, a apenas 1 segundo de Markku Alen. Ainda assim, “não sentia muita pressão, porque à partida, definimos com os patrocinadores que o objetivo passaria apenas por mostrar o carro, sem a preocupação de terminar. Levaríamos o carro até onde fosse possível, optando depois por desistir no final da primeira etapa.” O mar de gente que invadia Sintra não passava despercebido e “dentro do carro, percebia-se a presença da multidão. As pessoas iam abrindo como um funil, para nós passarmos. Era de facto arriscado correr naquelas condições, mas não havia outra maneira. A colocação do público impedia-nos por vezes de ter a noção do andamento a imprimir e por isso, no final de cada troço, comparávamos os tempos com os das equipas de fábrica, concluindo que andávamos todos a fundo…”