A última entrevista de Francisco Romãozinho ao AutoSport

Por a 14 Março 2020 19:44

O desporto automóvel nacional perdeu mais um dos seus grandes protagonistas. Morreu Francisco Romãozinho, vencedor do Rali TAP de 69, e o primeiro piloto de ralis português a conduzir um carro oficial, um Citroën. Foi igualmente um grande gestor, é uma grande perda para o desporto automóvel nacional. Neste momento de pesar, o AutoSport recorda a última entrevista que fez a Francisco Romãozinho, em 2013, em que revisitámos a sua carreira. Pela ‘pena’ habitualmente fantástica do Nuno Branco…

Mais de meio século passado sobre o dia em que pegou no Mini oferecido pela avó para experimentar os dotes de pilotagem, o nome de Francisco Romãozinho continua bem presente na memória dos que vivem a história do automobilismo português. Numa longa entrevista ao vencedor do Rali TAP de 69, abrimos o baú das recordações de um dos ídolos da sua geração…

Por Nuno Branco

Fotos Martin Holmes Rallying e Arquivo AutoSport

Como surgiu o gosto pelos automóveis?

Surgiu da convivência com uma pequena tertúlia de amigos que, no final dos anos 50,viviam, como eu, em Castelo Branco. Nenhum tinha carro e poucos tinham carta, o que não nos impedia de disfrutar do ambiente nocturno que se vivia na estalagem de Alpedrinha, onde íamos com frequência, retirando discretamente o carro da garagem dos nossos pais e fazendo fé no pouco controlo policial de então.

O que o motivou a experimentar as emoções da competição?

Com 18 anos, tirei a carta de condução e, como entrei na Faculdade de Arquitectura, a minha avó materna premiou-me com a oferta de um pequeno carro, à minha escolha. Ela nem sonhava o impacto que isso iria ter na minha vida: comprei um Mini Cooper 1000 cc, optando pela versão Austin e quem mo vendeu foi o Manuel Gião, que logo aí, começou a desafiar-me para fazer o gosto ao volante…

Que memórias guarda da primeira prova que disputou?

Estávamos em 1962. No dia de São Martinho, havia um Rali às Termas de Monfortinho e eu resolvi inscrever-me. Sem qualquer experiência, fiz uma série de disparates que culminaram com a disputa de metade da última Prova de Classificação, em Monfortinho, com o travão de mão bloqueado, na sequência de um pião mal acabado. Mesmo assim, fiquei nos 10 primeiros e depois de fazer as contas, cheguei à conclusão que, sem o tempo perdido com as ‘burrices’ teria ficado no top 3.

Começa a ficar contagiado pelo bichinho das corridas?

Vários amigos e adversários, como o Giovanni Salvi, incentivaram-me a alinhar em 1963 no Critério de Iniciados, que terminei em 3º lugar na categoria GT, atrás do Américo Nunes, que já andava de Porsche. Este campeonato era a rampa de lançamento para um piloto, constituindo uma verdadeira prova de fogo às suas capacidades, já que incluía as rampas da Pena e da Arrábida, o Circuito da Granja do Marquês ou o Rali das Camélias.

Como era vivido o desporto automóvel em Portugal nesses anos da década de 60?

Era a época de ouro dos Mini Cooper S. Pela mão do Manuel Gião conseguira um contrato com a Sacor, válido para ralis e velocidade e integrava a equipa da Austin, onde havia uma grande rivalidade entre o Manuel Gião e o César Torres. O Manuel era claramente mais rápido e o César conseguia ser mais ‘rato’, sem qualquer desprimor. Quando chegava de Inglaterra um só exemplar de uma peça que fosse relevante para o desempenho do carro, o César arranjava sempre maneira de ser o primeiro a disfrutar dela e o Manuel ficava possesso! Na altura havia dois preparadores em Lisboa que consubstanciavam o outro lado da rivalidade. O Mário de Jesus, que se ocupava do carro do César e o Jaime Rodrigues, coadjuvado pelo Paixão, que se encarregava do carro do Manuel. Dadas as minhas relações com o Manuel Gião, optei por colocar o meu carro nas mãos do Jaime e assim partilhava com ele a assistência em cada prova.

Fale-nos um pouco desses tempos ao lado de Manuel Gião…

Tive experiências fantásticas com o Manuel Gião, que jamais esquecerei, como por exemplo, um treino para a Volta a Portugal que fiz no banco de trás do seu carro de treinos. Nessa altura, ainda não se escreviam notas de andamento e a táctica dele era curiosa: nas curvas para a direita, o seu navegador, Santos Mendonça, tinha um ângulo de visão mais reduzido e nada dizia. Nas curvas para a esquerda, acontecia o oposto, já que o navegador não se calava, gritando “anda, anda, mais, mais, trava, acelera, etc”. Integrar a equipa Austin, significava ter que estar à altura das suas ambições. O Manuel queria ser campeão nacional e, para isso, contava comigo para fazer dobradinhas, retirando, desta forma, pontos aos adversários. Foi nessa altura que ganhei o meu primeiro troço cronometrado à geral, em Salir do Porto, um troço em terra branca e lisa, com muitas rectas e muito estreito, onde era difícil manter o carro direito, mesmo nas rectas. Quando partilhámos os tempos no final, e se chegou à conclusão que tinha sido o mais rápido, os meus adversários pensaram que havia engano, até que um dos homens dos Porsche, que tinha passado antes de mim, disse aos restantes: “estão enganados. Nenhum de nós vinha tão rápido. O puto vinha depressa como o caraças!”

Como explica a enorme competitividade dos Mini?

Com apenas 1300 cc e uma potencia a rondar os 115 cv, o Mini batia, quer em circuitos, quer em ralis, carros bem mais potentes, como o Cortina Lotus. O facto de o peso não chegar a 700 kg, aliado ao tamanho reduzido, tornavam-no muito ágil e robusto. As rodas de pequenas dimensões, passavam sem dificuldade por pisos esburacados, mas para isso, tínhamos que passar depressa, em voo rasante e ter a sorte de não acertar num buraco dos grandes na aterragem!

Na época, era já possível abraçar a competição de forma profissional?

Existia um número restrito de privilegiados, como o Manuel Gião, o César Torres e mais tarde o Luís Netto ou o Henrique Burnay Bastos com vínculos profissionais à marca que representavam. A grande maioria, onde eu me incluía, tinha apenas um carro que servia para correr, treinar e para as deslocações diárias e as reparações pesavam no orçamento. Por volta dos anos 1965/66, eu era o piloto mais rápido na zona de Sintra, especialmente quando se fazia de um só folego a subida da rampa da Pena e a descida do Palácio da Pena até São Pedro. Mas a boa performance tinha um custo já que, na descida empedrada e muito escorregadia, que eu fazia em derrapagem permanente, colocava a roda da frente na valeta, no interior das curvas, para controlar a frente. Com esta técnica, segurava o carro, mas batia por baixo e, com frequência, partia ou arrancava o tubo de escape. Eram cerca de 3 km infernais.

Em 1966, venci em Espanha o Rali das Rias Bajas, que foi uma extraordinária aventura e ainda hoje recordo uma Volta a Portugal que comandei até à Covilhã. Na zona de Unhais da Serra, cheguei a descalçar-me para que o frio me permitisse resistir ao sono. De madrugada, um furo lento atrasou-nos e, apesar das loucuras que cometi, não evitámos uma penalização que nos relegou para o último lugar.

Fiz então uma subida de raiva na rampa de Manteigas, coberta de neve e gelo, e ainda me lembro de ouvir o Mocho, meu navegador (ou Moxo, como eu gosto de escrever porque sei que ele não gosta) dizer que a prioridade era chegar vivo a Lisboa! Acabámos por desistir na descida do Cavalinho, perto de Amarante, com a direcção do Mini aberta e só por milagre não caímos no precipício.

Como se deu a mudança da Austin para a Morris?

As despesas eram cada vez maiores e não podia contar com a ajuda paterna, que não apoiava mas também não hostilizava e não gostava de me ver derrapar no curso de arquitectura. Decidi então falar com o patrão da J.J. Gonçalves, o importador da Austin e reivindicar condições semelhantes às dos pilotos com vínculo profissional. Como a marca estava a reduzir o seu envolvimento em provas desportivas, o meu pedido não pode ser aceite e resolvi aceitar o convite da rival Morris. Mudei-me então de armas e bagagens para a Av. Guerra Junqueiro, onde o Engº Burnay Bastos coordenava a preparação dos carros e alinhava também como piloto. Passei a conduzir o LG-49-46 vermelho e branco, as cores da fábrica, e logo na primeira prova, o Rali 1000 km do Benfica de 1967, com o carro ainda em rodagem, ganhei, para surpresa geral, o primeiro troço, na Comenda. Curiosamente, o tempo perdido numa passagem de nível, já perto do final, à espera de um comboio de mercadorias, haveria de me relegar de primeiro para último e na distribuição de prémios, a organização surpreendeu-me com a atribuição do Prémio do Azar, uma passagem de nível que guardo com ternura.

Em 1968, o meu Cooper começou a dar mais arrelias que satisfações: travava mal, curvava mal e o motor era menos potente que o do Henrique e o do Adolfo Sampaio, que entretanto se juntara à equipa. Nos treinos para o Circuito de Montes Claros, fiz apenas uma volta, já que o carro avariou precisamente no veio de martelos, onde havia sido mal reparado poucos dias antes. Tornou-se óbvio que o meu carro não estava a merecer a atenção necessária e o meu trajecto com os Cooper S estava a chegar ao fim…

Como surge então a ligação à Citroën?

Em Fevereiro de 1969, estava ainda a cumprir o serviço militar e o jornalista Augusto Vilela, com quem partilhava um apartamento, apresentou-me a Jacques Sonnery, administrador delegado da marca em Portugal e primo do piloto francês Gerard Larrousse. Criou-se de imediato uma empatia entre nós os dois, o que o levou a desafiar-me a disputar um rali ao volante de um DS. Por sugestão do Augusto, começámos logo ali a planear a participação na Volta a Portugal, que se disputava 2 ou 3 semanas depois. Como não tinha contrato com a Morris e gostava de novas experiências, aceitei o desafio e ganhei o rali, mas num ID20. Em Julho, acedi a um convite de Sonnery para conduzir um dos 3 carros de fábrica que alinhariam no TAP. Segundo rali com a Citroën, segundo dilúvio, segunda vitória. Nesse ano, apenas o acumular de desistências com o Cooper S me impediu de ser campeão nacional de ralis.

No final do ano, aceitei o convite da Citroën para integrar os quadros da marca como Relações Publicas, trabalhando em part-time, já que ainda cumpria o serviço militar. Quando este terminou, Sonnery propôs “comprar-me” a outra metade do dia. Ao aceitar, estava, sem dar conta, a iniciar uma carreira de dirigente no sector automóvel, a colocar uma pedra em cima do curso de arquitectura e a tornar-me piloto de fábrica…

Nesse ano, não foi campeão de ralis, mas vingou-se nas pistas…

Fui Campeão Nacional de Velocidade com um BMW 2002 que entretanto comprei para correr em grupo 1. Foi talvez o campeonato mais disputado em que participei. A concorrência era grande, com andamentos muito semelhantes. Zé Lampreia, Casteliano Júnior, Jorge Nascimento e Albio Pinto, todos em BMW, aos quais se juntavam os Alfa 1750 de Peixinho e Burnay Bastos, o Vauxhall Ventora de Filipe Nogueira e o famoso Cortina Lotus do Xico Santos, que havia sido guiado por Jim Clark e que era constantemente desclassificado por ter pouco de Grupo 1!

Chegou à equipa Citroën numa altura em que a marca embarcava na aventura dos “Proto”…

Rene Cotton, o chefe do departamento de competição, estava já no leito de morte no hospital em Paris e pediu-me para ir ter consigo para me mostrar da janela do quarto, o carro que eu iria pilotar e que ele pedira para ser transportado para aquele local, para me fazer a surpresa! Era um Maserati disfarçado de Citroën com uma carroçaria em plástico de 2 portas, muito baixo, como os Alpine. Seria eu a estreá-lo e era, de facto, muito rápido. Pouco tempo depois, Rene Cotton faleceu e o departamento de competição andou um pouco à deriva, até a sua mulher, Marlene Cotton, ter sido nomeada para substituir o marido, na dependência de Jacques Wolgensinger, o director de comunicação, que não tinha sensibilidade suficiente para adaptar a resistência daqueles carros à dureza dos ralis de então.

A pouco e pouco, a carreira de gestor ia ganhando tempo à de piloto?

Os compromissos profissionais, a vontade e a paixão com que aceitei o desafio de me tornar um gestor de primeira linha no sector automóvel, limitaram a frequência das minhas participações que, de um modo geral se dividiam entre os interesses da marca e a minha própria iniciativa, embora sempre com o apoio de fábrica.

Em 1972, fez algumas provas internacionais, começando com um excelente resultado no Monte Carlo…

No Monte Carlo, consegui o 19º lugar, sendo 4º no Grupo 1. Seguiram-se as participações africanas em Marrocos e no Rali Internacional do BNU, onde liderei durante a travessia da África do Sul, até à chegada a Lourenço Marques. Aí tive mais uma vez a prova que o sexo e os ralis não são compatíveis: o meu navegador, Michel Parot, que era o responsável pela assistência de fábrica, não descansou durante as escassas horas que antecederam a partida para a última etapa, optando por ceder aos encantos de uma moça. O percurso era secreto e nós éramos os primeiros na estrada. Extremamente fadigado e com a mente desconcentrada, Parot começou a acumular hesitações e erros de percurso que nos fizeram perder a liderança para o sul-africano Jan Hettema…

No ano seguinte, voltei a Moçambique, protagonizando o maior looping da minha vida, quando ia em segundo atrás do Ove Andersson. O DS Proto deu uma volta completa no ar e aterrou sobre as rodas. Tentei de imediato voltar a pô-lo em funcionamento, sem me dar conta que estava completamente desconjuntado com portas, janelas e outros componentes desmontados…

Em 1978, participa no Rali Portugal integrando, uma vez mais a formação da Citroën. Na equipa, alinhava então um jovem chamado Henri Toivonen…

Foi a minha segunda participação com o CX de Grupo 2. Como era habitual em Portugal, eu era o 1º piloto da equipa, tendo como colegas, em carros similares, mas de Grupo 1, o Jean Paul Luc que já conhecia e um jovem desconhecido chamado Toivonen, do qual eu apenas sabia que o seu pai havia vencido o Monte Carlo. Aliás, o pai também veio ao nosso país, tendo participado activamente durante os treinos do filho, cronometrando os troços e incitando-o a ser cada vez mais rápido. O jovem Henri, tentando seguir à risca os incentivos do pai, mandou dois CX para a sucata durante os treinos, aos quais se juntou um terceiro durante a prova…

A carreira de gestor haveria de estar ligada a outras marcas e, curiosamente, abraçou outros projectos fora do mundo automóvel…

Ao longo da vida, tive que tomar decisões importantes na hora de escolher o rumo certo e as prioridades: tornar-me piloto profissional, acabar o curso de arquitectura, seguir a actividade familiar na agricultura, ou empenhar-me definitivamente como gestor no sector automóvel, eram as opções.

Decidi-me pela gestão no sector automóvel como primeira prioridade, a agricultura como segunda e, de forma intermitente, piloto de ralis. A arquitectura ficava de reserva!

Durante duas décadas, estive na Citroën, saindo quando acumulava as funções de Director Comercial e de Marketing. Aceitei então o desafio da SIVA, onde desempenhei durante 6 anos as funções de Administrador executivo, numa altura em que a Skoda acabara de se juntar ao grupo onde estavam a Volkswagen e a Audi. Finalmente, aceitei o convite para assumir as funções de presidente da Fiat Portuguesa, cargo que desempenhei até me reformar parcialmente dos automóveis. Apesar de manter uma representação da Fiat e da Alfa Romeo em Castelo Branco e na Covilhã, os carros deixaram de ser uma prioridade, já que essa pertence agora à agricultura, mais concretamente a produção de milho. E o mais recente desafio já está em marcha, estando a dar corpo a um projecto de Turismo Rural numa das margens do Tejo. Mas, sobre isso, darei notícias lá para o Verão…

O projecto “RGM”

Em parceria com José Carlos Galvão Teles, cujo pai era na altura Ministro da Educação e o mecânico da Austin, Mário Silva, Romãozinho criou em 1964 a RGM Conversions (R de Romãozinho, G de Galvão e M de Mário). O termo “Conversions” era muito usado na época em Inglaterra para designar as actuais transformações.

Romãozinho recorda que “a actividade era desenvolvida na garagem pessoal do Ministro, no Restelo, onde preparávamos, não só os nossos carros, como os de alguns clientes, como o Abarth do Tony Pereira de Almeida. Esta primeira incursão na área da mecânica automóvel começou a correr mal, quando o Ministro apareceu na garagem de pijama, a mandar-nos parar de fazer barulho às 4 horas da manhã. Acabáramos de montar um motor e, curiosos, colocámo-lo imediatamente a trabalhar, ainda no banco e sem escape…

A aventura terminou abruptamente, na sequência de dois problemas: por um lado, o Zé Carlos destruiu completamente o Mini da mãe no circuito de Montes Claros, quando saiu em frente na primeira curva dos moinhos, caindo na ravina e só parando no hospital. Se bem me recordo, a mãe nem estava ao corrente da sua participação na corrida. O segundo motivo prende-se com o facto de ter sido preso pela PIDE, na altura das reivindicações e manifestações académicas, tendo ficado uma semana no Aljube, sem que ninguém soubesse de mim. Curiosamente, o meu carro, que se encontrava estacionado no Rossio, foi passado a pente fino, tendo sido confiscados os autocolantes da RGM por suspeita de conotação subversiva…”

Comunicação via Box

“Uma história rocambolesca”. É assim que Romãozinho define a sua participação no Rali das Rias Bajas em 1966. E continua: “se bem me lembro, o rali tinha uma etapa única, disputada de dia e de noite durante mais de 24horas. Nessa altura, só podíamos ter uma ideia aproximada dos tempos em cada troço, perguntando uns aos outros e, para os craques do Jolly Club, eu era irrelevante portanto, não me perguntavam nada. Mas eu ia ouvindo, fazendo as minhas contas e ganhando avanço. Só já perto do final, os italianos perceberam que o rali não estava a ser dominado por eles mas por mim! Cheguei então a Vigo com um minuto e 15 segundos de avanço sobre o segundo classificado, Paulo de Leonibus, dos quais 60 segundos eram devidos a uma penalização na estrada que entretanto misteriosamente desapareceram!

Faltava apenas o Circuito de Vigo, disputado dentro da cidade, rapidíssimo, com uma descida larga e longa onde o ponteiro chegava aos 200km hora, antes de uma curva a 90 graus entre prédios. O troço, onde não era permitido treinar nem tirar notas, era disputado em mangas com 5 carros. A ansiedade era grande. Seriam os 15 segundos suficientes? Já na linha de partida tive uma ideia e entreguei uma camisola vermelha ao António Morais, meu navegador nessa prova, pedindo-lhe que a atirasse ao ar, de modo a que eu a visse, à passagem pela meta, se o Leonibus estivesse a recuperar os 15 segundos. E foi o que aconteceu à 4ª volta. Liguei então o meu turbo cerebral e fiz uma última volta “kamikaze” tendo recuperado mais de 15 segundos e terminado encostado à traseira do Paulo. Estava ganho o Rias Bajas!”

O único sobrevivente

Pela dureza do percurso e pelo insólito episódio que marcou as etapas finais, a Volta a Portugal de 1969 está gravada na história do automobilismo português. Naquela que era a sua estreia ao volante de um Citroën, Romãozinho recorda que “ficou combinado que treinaria com o ID20 e correria com um DS21. A assistência seria prestada pelo Augusto Vilela que, por ser jornalista, tinha mais que fazer, levando consigo o Xoringas, um excelente mecânico, mas sem experiência em competição. Dias antes da partida, e na ausência de Jacques Sonnery, alguém decidira que não valia a pena estragar dois carros, pelo que teria que alinhar com o ID 20 de treinos, sem qualquer preparação. Nessa época, a Volta ainda era muito longa, percorrendo todos os cantos do país. Previa-se mau tempo durante o rali, o que era bom para mim. Na primeira etapa, que ligava Lisboa a Faro, não ficámos longe dos lugares da frente. A segunda etapa levava-nos do Algarve a Castelo Branco e durante os 40 minutos que durou a assistência antes do controlo final, o Xoringas disse-nos que a bomba central do hidráulico estava a dar raia e, como estávamos no final de uma sexta feira, ele iria tentar arranjar uma bomba nova na segunda feira! A bomba central dos ID e DS era o coração de todo o carro: suspensão, travões, direcção assistida, e até a caixa automática nos carros de competição, dependiam desse órgão vital. Contive-me e perguntei, sem muita convicção, se o Nuno Navarro (pai), do concessionário Citroën, não teria uma peça dessas em stock. Para grande surpresa, tinha, o que permitiu fazer a substituição a tempo da partida para a 3ª etapa. E aí começou a verdadeira prova! De Castelo Branco a Vila Real, ininterruptamente, durante um dia e uma noite, passámos por tudo o que eram serras ou troços demolidores, sob condições climatéricas inclementes. Debaixo de chuva e nevoeiro, nem havia tempo para parar na assistência. A organização começa então a temer que nenhum concorrente penalize menos do que o limite dos 45 minutos e planeia um aditamento que acrescentaria 30 minutos ao máximo de penalização. Esse documento teria que ser assinado por todos os concorrentes, o que nunca aconteceu porque, quando chegavam aos vários controlos para eu assinar, já eu tinha partido! Quando chegámos a Vieira do Minho, ainda o Sol não havia nascido, percebemos a hecatombe que ocorrera e tornou-se evidente que tínhamos a Volta ganha. O Luis Netto veio ter comigo, com uns óculos com lentes amarelas, dizendo-me que eram fantásticos no nevoeiro e pediu-me para eu os usar até Vila Real, desde que o deixasse ir colado na minha traseira, já que ele não chegaria lá sem ajuda. E assim aconteceu. Depois de dormirmos umas horas, fomos ver os resultados do final da 3ª etapa. Perante a estupefacção geral, apenas eu e meu navegador João Canas, estávamos abaixo do limite, com 29 minutos de penalização. Todos os outros estavam fora! E assim percorremos sozinhos uma duríssima 4ª etapa, passando por troços como Arganil, até ao Estoril, onde chegámos ao fim da manhã e, depois de um curto repouso partimos também sós para a 5ª etapa, toda ela disputada na Serra de Sintra. Não conheço outro episódio igual ou semelhante!”

A vitória no TAP

A terceira edição internacional do TAP foi uma das mais polémicas de sempre. Romãozinho acabaria por ser o vencedor de um rali em que “a equipa de fábrica da Citroën, dirigida por Rene Cotton, alinhou com três carros: um protótipo para Lucette Pointé, tão rápida como os homens mais rápidos, e dois DS 21 de grupo 2, um para o austríaco Bochnicek e outro para mim. Apesar dos lobbies da imprensa francesa em favor dos seus pilotos, acabei por ser o escolhido e tornei-me piloto oficial da Citroën.

O TAP era duríssimo, tal como a Volta, mas a concorrência era de outro gabarito, com um grande número de pilotos de fábrica, bem montados e assistidos.

Desde o início que vinha sendo o mais rápido da equipa. As condições climatéricas e as estradas, na etapa Porto-Lisboa estavam piores que na Volta a Portugal e quase não havia tempo para reabastecer, mudar os calços de travão ou fazer qualquer intervenção de emergência. Na serra da Cabreira, ultrapassei um sem número de carros e muitos outros bateram forte, como foi o caso do Tony Fall. Quando passei por ele na assistência, a frente do Lancia Fulvia estava de tal maneira mal tratada, que pensei que ele iria desistir. A noite estava terrível. A lama, o nevoeiro e as dificuldades técnicas eram cada vez maiores. Depois da Cabreira, tínhamos a Senhora da Graça, o Fridão e uma ligação difícil até ao troço Arouca-Alvarenga. Quando cheguei a esta zona, há muito que as luzes avisadoras da falta de calços e combustível vinham acesas. Parei na assistência apenas para dizer que não havia tempo para fazer nada e pedi para levarem gasolina e calços para depois do controlo, mas teriam que ir a pé, já que ali não era permitido ir o carro de assistência. Mesmo às escuras e nos três minutos que tinha, entre o controlo e a partida do troço, conseguimos ser assistidos. Na altura, fomos informados que a liderança estava a ser decidida entre nós e o Tony Fall, o que era pouco compreensível atendendo ao estado do Lancia na Cabreira e ainda ao facto de não o ter visto durante toda a noite. Percebi finalmente o que se passava quando eu e o meu navegador, o João Canas aguardávamos a hora de partida para o troço da Lousã. Já de dia, aparece o Lancia do britânico, sujo de lama, mas sem quaisquer sinais de ter batido, continuando pela estrada de alcatrão até deixar de estar visível. Minutos depois, o Fulvia regressava e, à nossa frente estava um carro impecavelmente lavado e com uma forte batida na frente. Obviamente não era o mesmo carro. Antes do último troço, Fall retomava o volante do carro inscrito, entretanto reparado para chegar a Lisboa. No meu entender, alguém ligado à organização terá dado com a marosca e alertado a direcção de prova para a desclassificação e possíveis sanções disciplinares. A ideia de meter a namorada no carro resolvia o problema airosamente, ainda que seja ridícula.”

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