Le Mans: O fabuloso mundo da Porsche (e alguns dos seus segredos)
Do jantar no Le Mans Legend Café à oportunidade de ver a corrida a partir de alguns dos locais mais emblemáticos do circuito ou conversar com figuras como Hurley Haywood, Hans-Joachim Stuck e Jacky Ickx, há um planeta à parte a que poucos têm acesso de cada vez que a Porsche vai a Le Mans. Desta vez, é o AutoSport quem lho conta na primeira pessoa
André Bettencourt Rodrigues
Há quem diga que é o maior evento desportivo do mundo. E não é para menos: afinal, mais de 260 mil pessoas enchem, todos os anos, a pequena vila francesa de Le Mans com o fervorismo saudável dos adeptos das corridas de automóveis. Ao contrário do que acontece no futebol, aqui toda a gente pode ‘vestir’ tranquilamente as cores da sua marca favorita, seja a Porsche, Audi, Toyota ou Aston Martin (as que sobressaem em relação às demais, por andarem nisto há mais tempo, mas também por serem fabricantes, e desse modo com ‘músculo’ financeiro para terem as suas próprias tendas de merchandising), sem medo de ser escorraçado pelo vizinho do lado. E isso, parecendo que não, também explica a multidão que se forma em cada recanto do circuito, simultaneamente concentrada e dispersa pelas bancadas, o paddock e a periferia do traçado em cada piscar de olhos.
Não quero desmoralizar ninguém, pelo contrário. Mas continuo a achar que ir a Le Mans com a Porsche é a melhor coisa do mundo, e a melhor forma de se viver a prova. Sou um sortudo, bem sei. Foi a terceira vez consecutiva que tive o prazer de pisar os pés no solo sagrado da meca das corridas de resistência a convite da casa alemã, e a envolvente insiste em fascinar-me como se tratasse da primeira vez. Porquê? É o que pretendo contar nas linhas que se seguem, admitindo desde já que este não será um texto imparcial, nem o pretende ser, uma vez que isso seria camuflar o indisfarçável: andar a reboque da marca que mais vezes subiu ao primeiro lugar tem, em definitivo, as suas vantagens.
Já uma vez escrevi, ao serviço de outra publicação, que o relato não pretende provocar ninguém. Antes explicar o que se sente numa prova com este misticismo e grandeza, e o motivo para lá ir, nem que seja uma vez na vida. Se é um leitor habitual, terá reparado que não temos por hábito escrever textos na primeira pessoa no AutoSport. O protagonismo deve assentar na publicação que representamos, pois é através dela que cobrimos os eventos, e não no jornalista, que deve reportar-se aos factos. Mas há experiências tão pessoais que esse distanciamento torna-se virtualmente impossível. Daí que neste caso tenha escolhido contar-lhe o que vivi recorrendo ao discurso direto.
UM LUXO
São 23h30, mais coisa menos coisa. Se há imagem que vou guardar para sempre na minha memória é a passagem dos carros à noite no Porsche Experience Center — local onde, ao início da tarde de sexta-feira, decorreu a última conferência de imprensa, e simultaneamente a derradeira oportunidade para trocar dois dedos de conversa com os pilotos.
Quem nunca viu uma corrida com lusco-fusco, e com a estonteante tonalidade laranja do céu a transfigurar-se lentamente numa mescla escura e estrelada, está a perder uma das melhores formas de se ‘viver’ o desporto motorizado. Tudo ganha mais intensidade, com o cansaço que se abate sobre o nosso corpo após um corta-mato de vários quilómetros a andar para trás e para frente, consequência da imensidão do perímetro do circuito e dos vários caminhos que nos levam às zonas de acesso; a perceção de que também os pilotos estão a testar a sua própria resistência, e que por isso os erros de condução e de julgamento, antecipação e análise das condições do traçado de La Sarthe surgirão mais vezes; o silêncio que se abate sobre a pista com o desgaste físico de outros fanáticos e a ressonância maior do rugir dos motores, que quase sem darmos por isso clama para si toda a atenção dos nossos sentidos.
O negro abate-se e é retorcido — confunde-nos os olhos à medida que os ‘holofotes’ dos carros vão dominando a paisagem. E eis que surge a sensação de extrema felicidade. A confirmação de que é real. De que estamos ali, onde se forjou a história do automóvel e das corridas, e não noutro sítio qualquer. É esta a magia de uma prova de vinte e quatro horas, e desta particular, visível nos olhos e no entusiasmo das pessoas com quem nos vamos cruzando de cada vez que damos um passo.
Desde que regressou a Le Mans, em 2014, apenas por uma vez — precisamente no ano de estreia — a Porsche não venceu a corrida. Com o dramático triunfo que lhe foi parar às mãos há três semanas atingiu a soma impressionante de 18 vitórias, mais cinco do que a Audi, que tem 13, um número igualmente incrível se nos lembrarmos que foram obtidas nos últimos… 16 anos! É fácil perceber quem lidera no campeonato das percentagens, mas enquanto a Audi terá como lendas Tom Kristensen (a maior de todas), Emanuele Pirro, Frank Biela ou Rinaldo Capello, a Porsche tem Jacky Ickx, Hans-Joachim Stuck, Vic Elford, Gijs van Lennep ou Derek Bell — verdadeiros heróis de uma era que já não volta.
Todos seriam irrelevantes caso a marca lhes passasse ao lado. Mas se há coisa que Zuffenhausen compreende, e valoriza, é o poder da sua história. E esse é o primeiro ponto que nos fica gravado na pele há medida que começamos a penetrar no seu mundo muito particular, disponível, arrisco-me a dizer, apenas para a imprensa especializada, os seus convidados e parceiros (parte do retorno de um patrocinador como a Chopard ou a Schaeffler está também na oportunidade de levar os seus representantes a uma prova deste gabarito), e um leque muito especial de clientes endinheirados, dispostos a pagar qualquer coisa entre cinco e oito mil euros para saborearem com a maior das mordomias a experiência da mais famosa corrida do mundo.
Se no primeiro ano o que é hoje conhecido como Porsche Experience Center era um edifício de um andar com uma varanda generosa e serviço de catering gourmet, utilizado também para expor a gama de veículos e para algumas entrevistas selecionadas com os membros da equipa, hoje transformou-se num aglomerado ainda maior de dois pisos, repartidos por 2600 m2, que assume cariz de concessionário assim que termina a semana mais importante do mundo motorizado.
No parque de estacionamento, a frota de serviço (muitas Volkswagen Transporter da ‘casa-mãe’, e alguns Cayenne, Cayman e Panamera) é brilhantemente coordenada para transportar as centenas de convidados de regresso ao hotel, o Media Center onde os profissionais da imprensa passam parte do seu tempo e têm a oportunidade de conviver com velhas glórias ou os pontos emblemáticos do circuito. Já o amplo rés-do-chão ‘esconde’ uma loja onde se podem adquirir os casacos, t-shirts, cintos e óculos da marca, e uma pequena oficina com a chancela do Porsche Classic Center com o objetivo de angariar futuros utilizadores do serviço.
Foi aí (no rés-do-chão), à custa dos conhecimentos (e ‘charme’) do Diretor de Comunicação e Relações Públicas da Porsche Portugal, Nuno Costa, que vimos também o Porsche n º 19 que venceu a edição de 2015, ainda com a sujidade e mosquitos desse fim de semana. Como se vê, tudo ajuda a compor a envolvente!
Em cima, O 919 Hybrid nº 19 que venceu a edição de 2015, transportado para o local 30 dias antes da prova. Em baixo, o auditório onde decorrem as entrevistas às lendas da marca, transmitidas depois nos três pisos do edifício. O facto de mais de 260 mil pessoas assistirem todos os anos às 24 Horas de Le Mans foi uma das razões para o National Geographic ter considerado a prova como o maior evento desportivo do mundo, à frente dos Jogos Olímpicos
O CÉU COMO LIMITE
Subindo as escadas para o primeiro piso, onde na base não falta uma placa comemorativa da primeira pedra do empreendimento, assinada pelo presidente do ACO e que reconhece a importância da Porsche para a prova, encontramos uma zona dedicada à diversão e entretenimento: de um lado, quatro simuladores distraem os mais aborrecidos, com a classificação dos tempos por volta a garantir um presente, em forma de experiência ou merchandising. Parece que a Porsche supera-se a cada ano que passa, sendo que desta feita até de helicóptero era possível acompanhar a ação da corrida — uma excentricidade, mais uma vez, apenas ao alcance de alguns eleitos. Mas a visita de duas horas às zonas mais famosas do traçado, como Mulsanne ou Arnage, também tinha bom aspeto.
Já a comitiva ibérica da qual eu fazia parte saldou-se pelo habitual ‘jantarinho’ de sexta-feira no Le Mans Legend Café, um templo sagrado da degustação automóvel, indicado para todos os amantes de memorabilia devido aos diversos componentes, mecânicos ou da carroçaria, que pintam as paredes do espaço, quase todos oriundos de máquinas que efetivamente participaram na corrida francesa. Sem esquecer a visita às curvas Porsche, no sábado e domingo, (espaço que o fabricante tem reservado para si desde o regresso à corrida francesa, e onde monta um bar e um ecrã gigante para conforto dos presentes), embora em 2015 ainda tenha conseguido meter o olho em Indianápolis, passavam pouco das 4 horas da manhã — outra das imagens que perduram na memória.
Mais de 800 carros da Porsche já participaram em Le Mans, numa aventura que remonta a 1951 e que conta com 103 vitórias em classes, 18 à geral e mais de 1,7 milhões de quilómetros percorridos, revelou Dieter Landenberger, chefe dos arquivos
Ainda no segundo andar, mas na direção oposta, assumem protagonismo uma sala de jantar com direito a cozinha de autor e vista para as curvas Ford que se encontram antes da reta da meta, e uma área que a marca designa por Porsche Auditorium — o espaço onde, ao longo da corrida, promove entrevistas com as suas referências.
É aqui onde verdadeiramente se sente o peso do emblema; a sua história e grandeza; o enorme palmarés. Não só pela dimensão e qualidade (há dois anos que contrata um apresentador e duas das vozes mais conceituadas de Le Mans, antigos jornalistas, para fazer o relato da prova, introduzir os convidados e fazer um ponto de situação de meia em meia hora, tudo para que os tais clientes que pagaram uma fortuna possam estar a par de todas as incidências da corrida). Mas sobretudo pelos nomes que surgem no palco, de Patrick Dempsey a Derek Bell, de Hans-Joachim Stuck a Hurley Haywood — todos vencedores ou figuras que se destacaram no universo da casa germânica.
Nada contra a Audi, que é um baluarte da corrida. Mas poderia a marca de Ingolstadt fazer o mesmo, tendo em conta o que separa as duas insígnias (a Porsche, com 65 anos de fidelidade ao circuito gaulês; a Audi, com dezasseis), como questionou o britânico Derek Bell, numa conversa que tivemos o ano passado?
Enquanto pensa nisso, subimos mais um lance de escadas rumo ao ex-libris do edifício: o majestoso bar e a enorme a varanda em ‘L’ onde iniciei esta viagem sobre a profusão de cores que pintam a noite, os sons que não se esquecem e o vento que fica marcado na cara. Na Porsche, o céu é mesmo o limite…
Como já vimos, a juntar ao Experience Center há o Media Center (no primeiro ano a Porsche ainda criou um espaço para que os históricos e as suas famílias pudessem conviver tranquilamente, o Legends Lounge), sendo que a montagem dos dois espaços, em conjunto com a reserva do alojamento, obriga a um enorme esforço logístico. Franziska Jostock, responsável por essa organização, revelou que “o planeamento começa em janeiro” e que os hotéis (um deles, o Ecklo, exclusivo para os 160 jornalistas internacionais convidados, onde ficámos) são reservados para o ano seguinte logo após o final da prova. Há ainda quem fique em auto-caravanas de modo a estar mais próximo do circuito. Para a corrida, a Porsche leva cerca de 150 pessoas apenas do lado do marketing, sem contar com as equipas das agências subcontratadas.
OLHOS DE ÁGUA
Quem acompanhou a última edição das 24 Horas de Le Mans reparou certamente no silêncio e nas lágrimas que se abateram sobre a garagem da Toyota quando os japoneses, a seis minutos do fim da prova, foram confrontados com a maior desilusão da sua vida desportiva. Mas não foram os únicos a verter partículas de água: na conferência de imprensa a que assisti, Frank-Stephen Wallisser, o responsável pelo programa desportivo da Porsche, não conseguiu controlar a emoção perante uma centena de jornalistas à conta das mudanças no Balance of Performance (BoP) que afetaram o desempenho do 911 antes do início da corrida:
“Tínhamos um carro perfeito. O feedback dos pilotos era fantástico quanto ao equilíbrio e comportamento dos pneus, e de repente encontras-te em oitavo, a 3,8 segundos dos carros com o ‘F’ [Ford]. Precisamos do BoP — é relevante para as corridas de GT. Mas não precisamos disto. Confiamos em que os oficiais possam tomar nas próximas horas as decisões corretas para equilibrar o plantel”, afirmou, antes de, já em lágrimas, e sob um forte aplauso, dizer: “Vamos continuar a lutar!”
Depois, já longe dos olhares curiosos, explicou-me melhor o que lhe ia na alma: “As corridas de GT são todas sobre variedade. Diferentes tipos de motor, de posicionamento, de desenho. Não é apenas a visão da Porsche, é mesmo a pensar nos adeptos. O BoP permite que este tipo de carros tão distintos possam correr muito perto uns dos outros, e agora temos duas classes separadas. Já a minha emoção faz parte do desporto”, salientou, prestes a emocionar-se novamente.
O neozelandês Earl Bamber, ‘despromovido’ para os GT após a vitória à geral em 2015, acrescentou: “São pessoas que gostam de brincar com as regras. Penso que é difícil de equilibrar o último segundo. Agora, quatro segundos…”
Apesar dos ajustes que acabaram por ser efetuados com base nos argumentos da Porsche, a Ford venceu mesmo a classe após uma luta animada com a Ferrari, reeditando um confronto com 50 anos. Mas a equipa alemã vingaria o resultado na classe LMP1 à custa de um verdadeiro ‘golpe’ de teatro — nem de propósito numa corrida que também atrai outras personalidades da sociedade civil, sejam eles atores (Patrick Dempsey, Steve McQueen, Paul Newman) ou antigos futebolistas e ciclistas olímpicos (Fabian Barthez e Chris Hoy).
O motivo, na opinião do australiano Mark Webber, deve-se ao próprio “dramatismo” da prova, enunciando não só as razões para a aura cinematográfica das 24 Horas de Le Mans, mas igualmente para que você queira marcar presença no próximo ano: “É a luz. O pôr-do-sol e o seu nascimento. O desafio do homem contra a máquina. O drama do cansaço, da privação do sono. O trabalho de equipa. E o perigo inerente.” Pelo meio, confessou que uma prova destas, na verdade, “são 30 horas”, e que ao longo desse período dorme apenas uma: “Ainda há o warm-up e levantamo-nos cedo, cerca das 7h30, no sábado”.
Após o terceiro lugar obtido na classe GTE-Am o ano passado, Patrick Dempsey, ausente em 2016 da função de piloto, referiu que estava a aproveitar a experiência como um fã: “Vejo de outra forma o esforço que toda a gente coloca aqui e o seu entusiasmo. É uma prova que exige a excelência e o melhor das pessoas, tal como a Porsche, que elevou tudo em mim e mudou a minha vida de forma profunda ao dar-me a oportunidade de correr em Le Mans com dois pilotos extraordinários, a quem estou muito grato. Desta vez a minha função é mais comunicar com os pilotos, saber do que precisam, e após ter passado pela experiência consigo compreendê-los melhor. Mas também interagir com os fãs, conhecê-los mais de perto. Sabes, Le Mans é verdadeiramente impressionante, e eu realmente adoro estar aqui. Há qualquer coisa de especial neste local.”
Sem dúvida, Patrick. Sem dúvida.
Artigo publicado na edição nº 2010 do AutoSport, 06 de Julho de 2016
Leia também:
A logística da Porsche nas 24 Horas de Le Mans
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